sábado, 10 de junho de 2023

O que interessa

Vi dezenas de milhares de minutos de Marítimo nos Barreiros ao longo dos últimos 25 anos. Ganhámos às vezes, perdemos muitas. Gosto de dizer que fui muito feliz com pequenas vitórias e que o resto foi carácter, e quem lá cresceu sabe o que isso é. Um maritimista aprende cedo o que são semanas ganhas e estragadas por causa de 90 minutos de futebol. Esquecer é um dom de outros, quem dera ir à bola e esquecer. O Marítimo é outra coisa. Um maritimista não se esquece, porque o Marítimo sai-nos de dentro. O maritimismo é uma forma de estar, de acreditar e de ser representado. É o passado, o presente e o futuro de gente orgulhosa do seu lugar, das suas superações e dos seus sonhos. É saber o que somos, aonde pertencemos e o longe que podemos chegar juntos. Imaginem a sorte que isso é. Quando joga o Marítimo, jogo eu, o meu pai, os meus amigos, a minha família, a minha rua, a minha cidade, a minha ilha, imaginem o que era ir a jogo e esquecer a seguir? Imaginem ir a jogo por eles, como se isso não representasse tudo, sempre? Há muitos clubes que são só clubes. O Marítimo é uma ideia. É a gente e o lugar que a tornou possível, contra a extraordinária maior parte das probabilidades, em 700km2 de terra a flutuar num oceano inteiro. Onde quer que esteja um madeirense, se estiver o sonho, também está o Marítimo. 

Já nasci sócio desta ideia, tratar disso no próprio dia foi só uma formalidade, porque código genético não é coisa que se assine numa folha. E tenho bilhete de época desde o meu 9° aniversário, como se tem uma casa. Sinto que já vivi muitas vidas nos Barreiros, porque o Marítimo é como a pele, vai connosco, faz parte de nós. Vivi ali vidas minhas, do clube, da nossa gente, da Madeira e da nossa História. Já vivi muitas vidas nos Barreiros, mas nunca pensei viver uma assim. A última década preparou-nos para isso, é verdade, mas nada nos prepara para um jogo como o de amanhã. Nada nos pode nunca preparar para a possibilidade de o Marítimo poder não ser "clube de 1a Divisão", como foi desde o dia em que nasci. Já vivi muitas vidas nos Barreiros e, quis o destino, amanhã não vou conseguir lá estar. O destino prega-nos sempre umas partidas e, desta vez, vai-me desencontrar de um jogo onde eu nunca quereria ter estado. Isso lá terá a sua ironia poética. Nestes 25 anos, houve muita coisa que nos foi arrancada das entranhas, mas nunca jogámos assim pela vida, e não faço ideia se é mais suportável sofrer de perto ou sofrer de longe. Sei que amanhã queria, afinal, lá estar e não vou poder. Passei uns dias absorto nessa ideia, até ao meu pai ter-me dito "isto não é sobre nós. Não interessa se vamos ou não vamos estar lá, não interessa quem vai estar lá. O que interessa é o Marítimo ganhar." 

Não é sobre nós, de facto. O que interessa é o Marítimo ganhar. Amanhã, nos Barreiros, vão estar 11 em campo e 11 mil nas bancadas, mas fora dos Barreiros serão incontáveis os milhares de onzes que vão estar em casa, nos bares, nas ruas, no Funchal e pelos caminhos da estrada regional, do Tourigalo ou do Barreirense até ao outro lado do mundo, a torcer para que corra bem. E saber a quantidade de pessoas que vai ficar feliz se correr, enche-me a alma. Essa esperança incondicional no Club Sport Marítimo, num ano em que fizemos tudo mal, num ano em que merecemos estar onde estamos, num ano em que o mais lógico seria cair, a pureza dessa esperança é a razão de ser da nossa enormidade, que terá amanhã a acreditar em si desde um miúdo funchalense de gema até um empresário na África do Sul, desde um agricultor nos Canhas até uma avó na Venezuela, desde um pescador em Câmara de Lobos até uma médica no Reino Unido, desde um gerente na costa norte, até um investigador na Austrália. Podemos ter falhado tudo este ano, mas nunca vamos falhar a esperança de que, no fim, ainda vai correr bem. De que no fim, ainda vai dar Marítimo. Em 25 anos de Barreiros, mesmo nos piores dias, mesmo quando estivemos mais desiludidos, tristes e frustrados, mesmo quando queríamos nem acreditar, sempre foi mais forte do que nós. O Marítimo é e sempre foi mais forte do que nós.

Se calhar não merecemos ficar, fizemos tudo para não ficar e, ainda assim, amanhã a esperança será uma vez mais tão grande como nos dias maiores. Amanhã, onde quer que estejam, acreditem. O que interessa é o Marítimo ganhar.

domingo, 21 de agosto de 2022

A realidade


O Marítimo foi 10° classificado da última edição da Liga. No Verão, perdeu três titulares, incluindo o seu melhor jogador, num onze onde as debilidades já eram bastante evidentes. Os reforços não só chegaram tarde (metade depois do estágio já ter acabado), como nenhum veio titular de caras, o que se veio a confirmar. Em boa consciência, as expectativas só podiam, por isso, ser absolutamente modestas para arrancar a época: já antes disto ter começado, há três semanas, que o único objectivo realista do Marítimo era lutar pela manutenção. O 10° classificado do ano passado começou a época mais fraco, pelo que a lógica era vir para baixo disso. 

A realidade do Marítimo é esta e estava à vista para quem quisesse ver. A partir deste ponto prévio, há duas observações que me parecem essenciais neste momento. A primeira é a questão da gestão de expectativas por parte do clube/SAD. Não vou discutir aqui se era possível ter trazido jogadores melhores e mais cedo, porque assumo que não. Agora, a partir do momento em que o clube não tem capacidade para investir no reforço objectivo de um plantel que ficou em 10°, e que perdeu três titulares, a partir do momento em que começamos pior do que já estávamos, tem de haver a frontalidade de dar a cara, assumir as dificuldades com todas as letras e números, e ter a sensibilidade de pôr todos os adeptos no mesmo barco. Na pré-época, a única coisa que ouvi foi o Presidente dizer que o Marítimo não pode ficar para baixo de 7°. Ambição é boa e recomenda-se, mas ambição distante da realidade estraga mais do que galvaniza.

A um departamento de futebol, não calha sempre o engenho de contratar bem, e para o imediato, sem ter dinheiro. Contratámos um suplente do Guimarães, um suplente do Gil (que passou o ano lesionado), um miúdo da nossa 2a Liga, dois miúdos suplentes na 2a Divisão Espanhola, outro miúdo da 3a Divisão espanhola e um da 2a Divisão mexicana. Com certeza não foram as primeiras, nem as segundas opções, pelo que resta dar o benefício da dúvida e esperar. O que não faz sentido dizer é que os reforços seriam cirúrgicos, e que se demoravam, era porque só viria gente para fazer a diferença. Acho que faltou, e porventura continua a faltar, tratar os adeptos como adultos. Acho que todos os maritimistas percebem se lhes disserem que não temos dinheiro para mais e que vai ser um ano de dificuldades. Fingir outra coisa qualquer é natural que acabe em histeria. 

A 2a questão é a técnica. O treinador está sempre condenado a trabalhar com o que lhe dão. Neste sentido, até há três semanas, o Vasco Seabra seria dos menos culpados pelo desenrolar dos acontecimentos. Tinha um onze deficitário no ano passado, ficou com uma equipa ainda mais fraca no Verão, teve de fazer uma pré-época quase sem reforços e não chegou ninguém que disfarçasse a situação. O cenário estava longe de ser animador, mas até para um cenário pouco animador, o início de época foi desastroso. Sinceramente, não lhe critico a opção de ter começado com os jogadores que já conhece e que fizeram a pré-época, acho que é uma questão de coerência e de balneário. Por outro lado, a pavorosa falta de agressividade, mínimos de concentração e organização colectiva, isso é impossível não criticar. 

Um treinador está condenado a trabalhar com o que lhe dão, mas também tem de mostrar trabalho com o que lhe dão. A sensação que esta equipa dá é que o treinador queria que ela fosse outra coisa qualquer, que manifestamente não tem capacidade para ser. A equipa de Vasco Seabra é uma equipa lírica, como ele próprio muitas vezes tende a ser, que quer sair a jogar desde trás, mesmo se for contra o Porto no Dragão, que joga sem carregadores de piano no miolo e não faz faltas, que desiste do jogo quando começa a perder de 2 ou 3 para cima, que só joga se for bonito e se não sujar os calções, e essa é a linha para lá da qual qualquer maritimista adoece. Porque há muitas formas de perder. Levar 7 na Luz, ou 5 no Dragão e em Braga, ou perder metade dos jogos nos Barreiros, não é a minha forma de perder. Dou ao Vasco o mérito por nos ter salvo no ano passado. Mas desde Março que o futebol e os resultados do Marítimo são, no mínimo, sofríveis, e às vezes vergonhosos.

O treinador queria que esta equipa fosse outra coisa qualquer, o Presidente com certeza também, a SAD também, e os adeptos também. Mas esta equipa é o que é, e vai ter de ser com ela, e sem milagres, que se vai lutar novamente para não descer. Cada dia que passe sem que toda a gente aceite isso, e seja mais competente a fazer a sua parte em função disso, é um dia perdido, e o Marítimo não se pode dar ao luxo de continuar a perder muitos mais. Num momento em que as hostes estão compreensivelmente desiludidas, não poderia deixar, no entanto e por fim, de sublinhar o óbvio: ninguém no seu perfeito juízo pode estar a desejar um regresso ao passado bafiento, onde havia problemas iguais, e depois outros muito piores. O caminho do Marítimo é em frente, sempre, e se é para sofrer, que seja com todos presentes ao leme, e nunca mais pelo leme do homem só.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

A viagem moral de um povo


[Texto escrito há 4 anos, sem saber o que nos esperava. Texto recuperado hoje, um fim do mundo depois, dia em que a Viagem recomeça]

Mais do que uma estação, o Verão é um estado de espírito. Na Madeira, é ainda mais do que isso: é uma experiência psicotrópica, na medida em que é um estado de espírito que veio aos trópicos. E os trópicos são um bom investimento.

Acredito que se pode ser feliz em muitos sítios onde esteja o mar, mas querer ser feliz fora da Madeira em Agosto é abusar da sorte. Porque a ilha pode não ter petróleo, mas em Agosto carbura. Pode não ter diamantes, mas em Agosto, até o calhau que reluz é ouro. Não somos uma Riviera, mas em Agosto tudo é uma praia, porque temos fajãs de coragem para dar e vender. E se nos faltar o champagne ou os iates, garanto que, em Agosto, temos sangria, suor e lágrimas de rir, para navegar. Mas sobretudo, temos os arraiais.

A Madeira não é um paraíso deserto como nos filmes, é um paraíso cheio de arraiais, e onde estão os arraiais, estão as histórias, e os santuários de romeiros que recebem como ninguém, porque esta terra tem o dom de oferecer como ninguém, e de nos oferecer uns aos outros. É isso que distingue os nossos arraiais de qualquer outro festival de Verão, ou festa de aldeia ou baile de paróquia. Não é o tamanho físico, é o tamanho moral. O grau de compromisso, de generosidade e de familiaridade, o genuíno despudor de quem acredita que, na ilha, nascemos todos da mesma rocha, e somos todos filhos da mesma festa e do mesmo mar, o desapego de quem pratica que, nas praias da costa sul ou nos penhascos da costa norte, no álcool como na vida, quanto mais graus, quanto melhor.

Os arraiais são a nossa forma de partilhar com os outros o mais que nos damos a nós próprios. Com mais vertigem, mais vontade, mais quilómetros, mais entusiasmo, mais litros, mais noite, mais conversa, mais encontros e mais reencontros, mais memórias e mais novas memórias, num turbilhão de energia em estado puro, em que se vive um ano num mês, como se ele durasse uma vida.

Os arraiais são um fenómeno natural, feito de uma superação sempre surpreendente, seja na logística de quem se faz semanalmente ao caminho sem nunca olhar para trás, seja nas histórias impensáveis, mesmo as que nunca vamos inteiramente recordar, mas sempre ao lado dos que nunca vamos inteiramente esquecer, seja, por fim, na lenda dos desconhecidos, que temos depois a honra e o privilégio de imortalizar até ao fim dos tempos. Na grandeza despojada dos que se criaram nesta terra, podemos todos ver o cordão umbilical com que ela nos liga uns aos outros, e que temos o dever e a responsabilidade de renovar todos os anos, do Porto Moniz aos Lameiros, do Seixal a São Vicente, à procura do maior sonho que pode existir numa noite de Verão, que é reencontrarmos a ilha mística, mas também a nós próprios e uns aos outros.

O Verão na ilha é uma regeneração imersa em eterna juventude, uma terapia, mas em mais rápido, uma mente sã, mas em corpo de expiação. E está bem assim. Porque se o Verão eventualmente acaba, há outra viagem que começa. E se há rotina que nos leve, precisamos que haja sempre arraial que nos encontre. Vemo-nos lá.

domingo, 17 de outubro de 2021

Tá na Hora


A minha geração não se apaixonou pelo Marítimo. A minha geração apaixonou-se por uma ideia do que tinha sido, e do que podia ser, o Club Sport Marítimo. Em retrospectiva, 22 anos depois da primeira vez em que entrei nos Barreiros, é cruel a realização de que quase tudo o que sonhamos, foi um sonho adiado. Os que vieram antes de nós, viveram muitas coisas: nos anos 20, fomos Campeões de Portugal; nos anos 50, fizemos as grandes campanhas além-mar; nos anos 70, chegámos à 1ª Divisão; nos anos 90, chegámos à Europa. Os que vieram antes de nós, viveram muitas coisas; a nós, tocou-nos sobreviver a coisas demais, e não me parece que em circunstâncias piores do que as dos fundadores, ou de todos aqueles que dobraram os nossos marcos históricos.

Na próxima sexta-feira, dia 22 de outubro, os sócios do Marítimo serão chamados a escolher, pela primeira vez num quarto de século, entre duas visões distintas para o futuro do clube. Todos terão as suas razões e motivações para votar, e é fundamental que o façam. Não me parece, contudo, que nenhum tenha como ignorar que o atual projecto desportivo do clube está completamente esgotado. Isso pode não ser suficiente para votar na mudança, mas essa será, em todos os casos, uma escolha perfeitamente consciente, e de acordo com a forma como cada maritimista olha para o seu clube e projecta o futuro do seu clube.

Quem aprecia o Marítimo de serviços mínimos, completamente esvaziado de ambição, mística e identidade, não só divorciado dos adeptos, como confortável com essa distância, não só gerido como uma empresa sem alma, mas propositadamente gerido para decapitar terceiros e sanear expectativas, está no seu direito. Aos outros, aos que se apaixonaram pela ideia de um clube feito de carne, osso e esperança, para o qual não havia apenas limitações, mas infinitas possibilidades, compete-nos, uma vez mais, estar à altura da nossa História, e ser o que o Marítimo foi a vida toda: não o que nos dizem que podemos ser, mas a transcendência daquelas que sempre foram as nossas circunstâncias.

Uma das primeiras imagens que tenho do Rui Fontes, em cassete, é vê-lo em comoção nos Barreiros, na primeira vez que nos qualificámos para a Taça UEFA. Que loucura, que euforia pura, que feito extraordinário. Que alegria. Já não somos esse Marítimo, mas tenho a certeza de que muitos, como eu, gostavam de ser. Eu gostava de começar uma época, ou duas ou três seguidas, sem que ninguém me dissesse o que é que não seremos capazes de fazer. Eu gostava de ir a jogo, em casa e fora, sem estar preparado para perder ou empatar, e gostava de perceber, por uma vez, quais os valores da minha equipa em campo ou o que raio queremos ser. Isto é tão básico e, de perfil aleatório em perfil aleatório, dos treinadores aos jogadores, não sabemos há tanto tempo. Eu gostava de olhar para a tribuna, e ver um Presidente que acredita como nós, que festeja como nós e que se afecta como nós. 

Alguns poderão dizer que isso não vale nada, que gestão não se compadece com militância e emoção, que é preciso ter os pés enterrados na terra, património e garantias bancárias. Eu, pessoalmente, nunca vi património e garantias bancárias a encher estádios de gente e a ganhar jogos de futebol. Se o Marítimo tivesse sido, ao longo da sua História, uma construtora civil ou um banco, nunca teria sido o Marítimo. Sem gente, sem a paixão e a ilusão das pessoas, não temos, nem nunca teríamos tido razão de ser.

O Marítimo precisa de propósito, precisa de objectivos, precisa de uma filosofia consentânea com a nossa História e a nossa identidade, precisa de voltar a querer ser alguma coisa para além de uma SAD tecnocrata, que serve de entreposto a uma mercadoria chamada jogadores. Um clube de futebol não é uma sociedade anónima desportiva, um clube de futebol é uma comunhão dos sonhos, das vontades e das ambições de pessoas reais, e se não for isso, não é coisa nenhuma.

Ninguém quer ser mediano e sofrível a vida toda. O Marítimo tem de voltar a ser Domingo no Caldeirão com um sorriso na cara, a entrar e sair orgulhoso, porque ganhamos e perdemos com as nossas ideias. O Marítimo é sofrer, mas precisa de voltar a sofrer com propósito, acreditando que, por mais conscientes que estejamos das nossas limitações individuais, regionais e institucionais, juntos não há superação que não seja possível. Sozinhos não somos grandes, mas juntos, o Marítimo pode ser.

Aconteça o que acontecer na próxima sexta-feira, o futuro do Marítimo depende de mudar muita coisa. O clube precisa de uma estrutura desportiva que não seja um devaneio de poder unipessoal, precisa de muito mais competência, critério e profissionalização, precisa de gente que goste de futebol e que perceba de futebol, gente que goste do Marítimo, mas que, acima de tudo, perceba o que é o Marítimo. Podemos ter todos a certeza de uma coisa: não é possível ter resultados diferentes, se continuarmos a fazer tudo igual. E que não nos equivoquemos: a atual Direção até poderá voltar a ganhar, mas a mudança é irreversível. Neste momento, enquanto prosseguimos a via sacra do 4º ano seguido de humilhações a jogar para não descer, a única coisa que ainda podemos decidir, é como, e em que divisão, queremos que essa mudança aconteça.

As eleições da próxima sexta-feira vão confrontar duas propostas muito diferentes, mas vão sobretudo representar uma decisão histórica entre aquilo que nos conformamos a ser, e aquilo que já fomos e que podemos voltar a ser. Claro que não é fácil e que nada mudará sem dificuldades, como num passe de mágica; mas o problema do Marítimo é que deixámos de ser muitos a sonhar aos poucos, para ser cada vez menos a morrer aos poucos.

Quando surgiu a primeira notícia de que o Rui Fontes poderia regressar, enviei-a por whatsapp ao meu pai de madrugada. Quando acordei na manhã seguinte, a resposta era: "este é maritimista". É um reconhecimento tão simples, como sagrado para o meu pai, que ele reserva de forma quase marcial para aqueles que lhe merecem o mais alto respeito. Não me disse se o Rui era um bom gestor, ou um bom empresário, não me falou do dinheiro do Rui ou dos contactos do Rui, não me disse se o Rui é que recruta os jogadores, ou se dá a táctica ao treinador. Disse-me que o Rui é maritimista, e isso basta-me. Na próxima sexta-feira, votarei pela primeira vez na minha vida numas eleições do Club Sport Marítimo e depositarei os meus 20 votos no Rui Fontes, consciente de que ele já cometeu erros, e que voltará a cometê-los, mas com a certeza de que nunca precisamos tanto de ser maritimistas em primeiro lugar, como agora. 

domingo, 25 de abril de 2021

Óscares 2021 - Preview


Top 10 do Ano

1. Nomadland

2. Sound of Metal

3. Tenet

4. Promising Young Woman

5. Da 5 Bloods

6. Another Round

7. Pieces of a Woman

8. Mank

9. News of the World

10. One Night in Miami


Os melhores

FILME: Nomadland

REALIZADOR: Chloé Zhao (Nomadland)

ACTOR: Riz Ahmed (The Sound of Metal)

ACTRIZ: Vanessa Kirby (Pieces of a Woman)

SECUNDÁRIO: Paul Raci (The Sound of Metal)

SECUNDÁRIA: Glenn Close (Hillbilly Elegy)

ARGUMENTO ORIGINAL: Promising Young Woman

ARGUMENTO ADAPTADO: Nomadland


As apostas

FILME: Nomadland

REALIZADOR: Chloé Zhao (Nomadland)

ACTOR: Chadwick Boseman (Ma Rainey's Black Bottom)

ACTRIZ: Viola Davis (Ma Rainey’s Black Bottom)

SECUNDÁRIO: Daniel Kaluuya (Judas and the Black Messiah)

SECUNDÁRIA: Youn Yuh-jung (Minari)

ARGUMENTO ORIGINAL: Promising Young Woman

ARGUMENTO ADAPTADO: Nomadland

sábado, 20 de fevereiro de 2021

O Marítimo que esta geração nunca foi


Nunca vi o Marítimo descer. Espero sinceramente que não seja preciso descer de divisão para que se mude o que é preciso mudar.

Escrevi há três meses que, pela terceira época consecutiva, íamos jogar para não descer e, pela terceira época consecutiva, não vamos apenas vaguear no ocaso humilhante da segunda metade da tabela; vamos literalmente jogar pela vida enquanto ela sobrar, com o estádio vazio, sem rumo e com o peso da inevitabilidade às costas, maior a cada ano que passa. O povo diz que tantas vezes vai o cântaro à fonte, que um dia já não volta, e esta vertigem de morte que se apoderou do clube começa a ser demasiado abissal para nos tentarmos convencer do contrário. No fundo, é apenas lógica: não nos podemos colocar sempre numa situação-limite, e achar que vai sempre haver um milagre; não podemos fazer sempre a mesma coisa, e esperar resultados diferentes. Nos últimos 20 anos, desceram de divisão o Guimarães, o Boavista, o Setúbal, a Académica, o Belenenses e o Nacional, e na verdade, é óbvio que já nos podia ter acontecido nas últimas duas épocas, que pode acontecer este ano, e que acontecerá inevitavelmente em breve, se continuarmos assim.

Às vezes, gostava simplesmente de acreditar que o problema é a bola que vai ao VAR e entra, e a bola que vai ao VAR e sai. Que o futebol é só o universo a jogar aos dados, que uns dias se ganha e uns dias se perde, que o jogo é sorte e azar, e que no fim vai correr tudo bem. É que pelo Marítimo, já sofri a vida toda. Costumo dizer que ser adepto do Marítimo nos prepara para quase tudo, porque, tal como na vida, há menos finais felizes do que dos outros. Ser do Marítimo dá-nos estofo para lidar com o desterro das maiores derrotas, e dá-nos carácter para ficar felizes com a beleza das pequenas vitórias, e aprendemos todos a viver com isso, mesmo com as prioridades que se sacrificam pelo caminho, seja tempo com quem gostamos, seja qualidade de vida a fazer algo mais saudável. Seja como for, ser do Marítimo é o maior orgulho da minha vida. Vou ser do Marítimo até morrer, aconteça o que acontecer, e até ao fim do mundo, onde quer que estejamos. Portanto, o problema não é sofrer; é a absoluta falta de razões para continuar a sofrer assim.

Este ano, é mais real do que nunca a possibilidade do Marítimo descer, e perturba-me que tenha sido preciso chegar a isto, quando os sinais foram tantos e tão evidentes. E perturba-me ainda mais que, se calhar, nem esta situação seja suficiente para que toda a gente perceba a necessidade de mudar. Este ano, é mais real do que nunca a possibilidade do Marítimo descer, e não é porque estes jogadores surpreendentemente estão em sub-rendimento ou não correm em campo; não é porque este treinador, ou o anterior, surpreendentemente não conseguiram dar conta do recado; na verdade, não há nada de surpreendente, ou sequer de misterioso, sobre o estado atual do Marítimo. Surpreendente é não ter acontecido nada ainda mais grave, ainda mais cedo.

O atual projecto desportivo do Marítimo falhou, porque já não há projecto nenhum há muito tempo. Quando o atual Presidente entrou em funções, era preciso salvar as contas do clube. Depois, a prioridade foram as infraestruturas. Na verdade, e não querendo ser ingrato, o futebol foi sempre um projecto desportivo adiado no Marítimo. Normalmente, a sobrevivência não é um assunto linear, pelo que me parece que todo o maritimismo aceitou que tínhamos de saber esperar. Não sei, na verdade, se haverá outra base associativa tão significativa como a nossa, e tão extraordinariamente paciente. No último quarto de século, tivemos consolidação financeira, consolidação estrutural e alguns bons resultados, mas sobrevivemos sobretudo à conta de migalhas desportivas, enquanto vimos, por exemplo, o Braga tornar-se no quarto grande, o Guimarães ganhar uma taça, o Paços de Ferreira chegar à Liga dos Campeões e o Nacional fazer dois quartos lugares.

A tudo subsistimos, firmemente agarrados à convicção de que a vida é difícil, e de que talvez um dia chegasse a nossa vez, mesmo que as prioridades dissessem sempre o contrário, ao vender urgentemente os melhores jogadores, contratar futebolistas às centenas e sem critério, na esperança de lucrar com a economia de escala, como noutra empresa qualquer, e rodar perfis de treinadores de forma completamente aleatória, como se alta competição fosse a roleta russa. O problema do Marítimo não é evidentemente a bola que bate no poste e sai, nem o facto de 99% dos profissionais que cá chegam não cumprirem as "expectativas", porque se calhar temos azar; o problema do Marítimo é que quem tem a responsabilidade de decidir, há muito descarnou o clube, porque é mais fácil e mais rentável gerir uma empresa de retalho, onde só interessa cumprir os mínimos, não dar prejuízo e sobreviver. O problema do Marítimo é que estamos fartos de sobreviver, porque sobreviver não é vida para ninguém.

A este Marítimo falta quase tudo. Falta visão, ambição, projecto e identidade. Falta brio, coerência, humildade e a mais elementar noção para reconhecer que aquilo que temos vivido, não é nada num clube de futebol, e que é preciso mudar e saber porquê. Como se isso não bastasse, falta até o discernimento para saber dar o valor ao mérito, quando ele é mais evidente. De vez em quando acontecem-nos fenómenos como o Daniel Ramos, um homem sozinho que fingiu que era um projecto desportivo, e que inventou dois anos de esperança. Fizemos 97 pontos nessas duas épocas, as últimas duas em que lutámos pela Europa. Chegámos lá uma vez, e ficámos mais de um ano sem perder em casa. O Presidente despediu-o, porque não podia ser o treinador a mandar no futebol do Marítimo. Desde a saída do Daniel, tivemos 6 treinadores e, em duas épocas e meia, 6 treinadores conseguiram fazer menos pontos juntos do que ele sozinho. É este o cúmulo em que vive o Marítimo há muito tempo.

Ao fim de 35 anos, o abismo da descida está iminente, e este é o derradeiro momento para lembrar que nunca ninguém esteve, nem nunca ninguém estará acima do Club Sport Marítimo. Há, por isso, duas coisas que para mim são fundamentais neste momento. A primeira é reconhecer que a equipa precisa de todos nós mais do que nunca, porque esta será uma luta brutalmente dura até final da época, com tudo em jogo. Espero que ninguém se afaste do Marítimo nesta altura porque não se revê na liderança, porque isto não é sobre nós, é sobre algo maior do que nós. Hoje e sempre, mas especialmente até ao final da época, não podemos desistir do Marítimo, e o clube só passará por isto se ninguém ficar indiferente.

Finda esta época, e aconteça o que acontecer, a atual Direção não tem condições para continuar. O que espero de quem está no poder há 25 anos, perante este momento determinante, não é negação, absolutismo e amargura, não é dizer que quem assina manda, nem chamar a polícia para intimidar adeptos, muito menos intitular-se donos da História e alimentar a narrativa de que não existem alternativas.  Neste momento, o que não existe no Marítimo é futuro. Se quem está no poder ainda quer honrar o que de bom ficou para trás, só lhe resta não ser um obstáculo, mas uma solução, pelo bem do clube.

O Club Sport Marítimo é demasiado grande para não ter alternativas. Esta era do Marítimo acabou e será a História a julgá-la. Agora é preciso dar lugar a outros, é preciso fazer uma transição responsável, e fazer a ponte entre o passado e o futuro. Acredito que o destino do Marítimo depende de todos, inclusive dos que ainda lá estão a mandar, e que a atual Direção deve ter um papel importante a desempenhar, dignificando o próximo capítulo na vida do clube. Tem é de perceber imediatamente, com seriedade e compostura, que uma coisa é chegar ao fim da linha, e outra é levar o clube consigo.

Quando a História julgar este quarto de século, começará pelo fim. Quem ainda não o percebeu, vai percebê-lo mais cedo ou mais tarde. Os jogadores, os treinadores, os presidentes e até os adeptos passam, mas o Marítimo fica. Só o Marítimo é que nunca acaba. Não sei se teremos de começar do zero, mas eu ainda gostava de ser o Marítimo das grandes campanhas, o Marítimo da alegria, da pureza e da mobilização popular única, o Marítimo da altivez, da ambição e dos sonhos da nossa gente, o Maior das Ilhas, a bandeira da Madeira atlântica e ultraperiférica pelo país e pelo mundo, o Marítimo temido, o Marítimo do dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio, como o fizemos tantas vezes ao longo destes 111 anos.

Eu ainda gostava de ser o Marítimo que o meu pai viu por entre a multidão no tartan dos Barreiros e para o qual não havia limites, só infinitas possibilidades. O Marítimo que se fez grande na Liga, ou o primeiro Marítimo que foi à Europa e ao Jamor. Está na hora de sermos o Marítimo que esta geração nunca foi. Está na hora.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

La vida es una tómbola

Não sei se Deus existe. Sei que se existisse, havia de ser como ele. Custa bastante escrever isto hoje, porque custou bastante a acreditar. Se Deus existisse, não havia de morrer. Custa bastante escrevê-lo já, porque parte de mim ainda acredita que ele pode voltar, que há sempre tempo para mais um drible, que quem já ganhou um Mundial e uma guerra sozinho, pode bem ganhar à morte. Custa bastante escrevê-lo enfim, porque se nunca estivemos à altura do que ele foi em vida, jamais estaremos à altura do que ele é agora. Custa bastante escrevê-lo, como teria custado a outro apóstolo de outra religião qualquer. 

Custou a aceitar, mas como noutra religião qualquer, percebi que este seria provavelmente o seu último milagre. Nunca tinha visto tanta gente a falar em Deus numa rede social. Muita gente leu, e não compreenderá o exagero, não compreendendo que o exagero não é nosso, era dele. Não sei se Deus existe. Sei que se existisse, havia de ser assim. Puro, omnipotente, benigno, genial. Perfeito nunca, porque perfeito nenhum de nós é, e teríamos sido feitos à sua imagem.

O que o tornava único era a sua verosimilhança. Era ser intuitivamente genuíno em tudo o que fazia, sem fazer de propósito, nunca com lições de moral, mas sempre do lado certo. Lutando a luta certa, enquanto nos mostrava, a nós comuns mortais, que é possível fazê-lo mesmo se tropeçarmos em todas as armadilhas da vida, sem que isso tenha de beliscar aquilo que somos. Ele mostrava que até os deuses são humanos na maior parte do tempo e que, se calhar, todos podemos tocar em Deus de vez em quando, mesmo sem todo aquele talento, mesmo com todas as nossas falências. 

Para alguém que respira futebol desde que se lembra de respirar, custa bastante despedir-se de Diego Armando Maradona, porque ninguém devia ter de se despedir da pedra sobre a qual construiu a sua Igreja. Ele é o mais importante de todos, ainda que, tal como a Deus, se ele existir, nunca o tenha visto ao vivo, ou em directo. O bom da fé é que não precisa de ser mundana. Somos tantos os que não o viram, mas sentiram, que é fácil constatar que Maradona não é só o futebol que jogou. Maradona é um herói que, por acaso, foi o maior futebolista de todos. 

É um herói pela forma como ganhou, e como perdeu. Um herói real, de carne, osso e alma perante todas as suas extraordinárias circunstâncias, que arranjou sempre forma de fintá-las e de se agigantar, e ser maior do que o jogo, e maior do que a vida. Uma vez li que qualquer comparação era escusada entre ele e os nossos dias, porque mais ninguém seria capaz de carregar a cruz daquele talento como ele carregou. Mais ninguém seria capaz de ganhar sozinho como ele ganhou, transformando equipas banais em equipas extraordinárias, só com um pé esquerdo, uma mão divina e uma aura em forma de juba. 

El Diego até podia ser Deus, mas antes disso era Povo. Era um ídolo popular único, um ícone anti-sistema, sempre a ferver com a bola colada ao pé ou o coração colado à boca, sempre pronto a tomar as dores de quem precisava de ser defendido, como se as suas não bastassem. Ser indiferente é a pior coisa que se pode ser na vida. Maradona tomou sempre partido. Vestiu sempre a camisola. Enfrentou sempre o politicamente correcto, custasse o que custasse. E custou, porque aquilo que nunca lhe perdoaram não foram os erros, foi a rectidão. Sempre que o tentaram derrubar, tentaram pelo carácter, sem perceberem que por aí nunca haviam de lá chegar. Tal como à bola, no carácter ele chegou sempre primeiro.

Fê-lo pelo povo da Argentina, após a guerra das Malvinas, ganhando em campo o que mais ninguém podia ganhar lá longe nas trincheiras, em horário nobre e aos olhos do mundo, quando o mundo não queria ver; fê-lo pelo povo de Nápoles, ganhando em campo o que a Itália pobre do Sul jamais poderia ganhar fora dele; e fê-lo pela gente comum, atirando-se contra o imperialismo e contra os poderes instalados, como a FIFA corrupta, que nunca o absolveu, mas que nunca o pôde ignorar.

Fê-lo, acreditarei sempre, consciente da fragilidade da condição humana, da sua e da nossa, consciente de que tudo isto é demasiado curto para torcer em vez de quebrar quando se acredita nalguma coisa, consciente de que a vida é uma lotaria e que coragem é ter medo, mas ir na mesma. Consciente de que ele podia ir até ao fim do mundo sozinho, para que nós não tivéssemos de ir, como naquela descolagem cósmica no dia 22 de Junho de 1986, quando Victor Hugo Morales narrou o golo do século numa epifania como não houve outra igual, enquanto clamava ao céu, "de que planeta vieste, para deixar pelo caminho tanto inglês?", tanta injustiça, tanta opressão, tanta desigualdade, tanta provação, tanta imperfeição, tanta falha? É sempre possível encarar os nossos obstáculos e ir mais longe. Deus é acreditar nalguma coisa, mesmo se formos os únicos.

Não sei se Deus existe, mas se existir, não morreu hoje. Se existir, talvez tenha só voltado para o seu planeta.