sábado, 26 de janeiro de 2013

50 anos do treinador do século


Cresci com muitos grandes jogadores. Cresce-se sempre. Com a bola no pé, Zidane, ainda hoje num altar, acima deles todos, sem comparação. Mas também Rivaldo, Del Piero, Maldini, Roberto Carlos, Giggs, Pippo, Nistelrooy, Pirlo, Ronaldinho, Drogba. Portugueses, Rui Costa, sem pensar duas vezes. Nem todos os maiores dos maiores, mas um miúdo gosta de quem gosta. E eu gostava destes. Gostava, mas como quem admira. Nunca gostei o suficiente para ser da equipa deles, para ganhar com eles. Isso foi depois.

Gostei de ver o Porto limpar a Europa, mas cá entre portas há uma coisa sagrada, e não há vitória que me possa dar muito gozo se não vestir de verde e vermelho. No momento em que ele aterrou em Londres, porém, tudo se conjugou. Foi quando comecei a ver a Premier League como louco. "Yes, I think I'm special", e um tanque de azul a chocar a Velha Albion. Esses títulos do Chelsea sim, festejei como se fossem meus, e contra Ronaldo, porque era assim que tinha de ser. Terry-Lampard-Drogba, vi nascer essa Santíssima Trindade, que o universo, ingrato como ele é, só celebraria Campeã da Europa uma vida depois. Os dez mil derbies inigualáveis, pejados das histórias mais históricas, a cabeça levantada em Anfield, naquelas meias-finais de derrotas metafísicas, as batidas de frente com Wenger e Benítez, e o vinho com Ferguson, cada um no seu lugar.

Acabou, ironia das ironias, num dia das mentiras. Reza a lenda que Drogba chorou no balneário como uma criança. Foram feitos um para o outro, e, no entanto, acabou. Milão viria a ser o segredo mais mal guardado desse Verão, num histórico esquecido por deus. "Speciale", começou a falar italiano limpo na conferência, as primeiras palavras de outro bicampeonato recheado de histórias dolosas da Máfia e dos padrinhos, das algemas invisíveis, que só poderiam desembocar nessa epopeia verdadeiramente inigualável até à final de Madrid, no ano seguinte. O que eu festejei essa vitória do nosso Inter. A melhor defesa do espaço sideral, senhoriada por um tal de Zanetti, puto de 20 anos, certamente, tal era o fulgor. Mais o cérebro de Cambiasso, as botas aladas de um Pequeno Genial holandês, a rebeldia explosiva de um soldado reconvertido dos Camarões, e as finalizações de algodão de El Principe. Ainda hoje fico estarrecido com aquele jogo no inderrotável Camp Nou, o maior de todos os seus impossíveis. Tal como me contagia a comoção espectacular do pós-Champions, ainda no relvado, e, claro, aquele abraço a Materazzi nos fundos, que veio lá do sítio onde a alma começa.

A melhor equipa da História era, no entanto, o Golias que se queria voltar a enfrentar, e a consequência só podia mesmo ser o supremo dos desafios. Ressuscitar o maior dos gigantes, e torná-lo ao seu lugar, no balneário dos galácticos, o mais impessoal e o menos carismático de todos os que teve. O 5-0 no primeiro jogo falou pela macieza da tarefa, mas a História fundia ali muita coisa, fundia, sobretudo, os dois predestinados deste canto em que a Europa acaba, e há coisas que têm de ser. Aconteceram na melhor Liga que os livros já viram, e o campeão fez-se estratosférico, com recorde de pontos, recorde de golos, e a bandeira poeticamente roubada no castelo do inimigo, pelo tal que levava o 7 às costas, claro. Quase tanto como as do Marítimo, só rejubilei com as vitórias dele.

Não fiquei adepto do Chelsea, nem do Inter, e não ficarei do Real, quando ele (e o outro ícone) saírem finalmente de lá. É que o meu clube internacional, é bom de ver, sempre teve o mesmo nome. Não gosto de tudo o que ele faz, e muita coisa é defeito mesmo, mas acho estapafúrdio que, ainda hoje, achem que há mais arrogância do que personagem. O despeito que tanta gente lhe devota cá, o torcer que perca, dá-me vontade de rir. É a pequenez portuguesa no seu estado mais inalterado. Odiar o que ganha, porque ele ganha, odiar o melhor, porque ele é o melhor. Odiar de graça porque, no essencial, ele é exactamente isso, um de nós, mas melhor do que nós, não uma coisa fina do estrangeiro, que o povo saloio possa gostar sem lhe fazer sombra nenhuma. Nessas cabeças, não entra a sua excelência tão absurdamente extrema, a sua capacidade de liderança tão grosseiramente contagiante, e a cultura de vitória com um nano-milésimo da qual podíamos todos fazer deste país uma potência de qualquer coisa. Ver Mourinho e não ver a inspiração, não ver o desafio omnipotente à transcendência, é uma tragédia.

50 anos, idade bonita. Falta a outra metade, em anos e em vitórias. Fico contente de pensar que se até hoje tive um ídolo no futebol, esse ídolo foi ele.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Tarantino faz acção, os outros fazem outra coisa qualquer


Nenhum filme de Tarantino poderia ter sido feito por outra pessoa qualquer. Há filmes melhores que os dele, e esses filmes poderiam ser concretizados por um punhado dos melhores realizadores. Ninguém, porém, poderia fazer os de Tarantino. Tudo ali é tão plasmado do seu génio abusivo, das particularidades do seu imenso talento, da sua leitura e gosto inacompanháveis, que é como se o víssemos assinar cena atrás de cena. Foi assim há 20 anos, quando o colossal Reservoir Dogs lhe deu o pontapé de saída, e é assim hoje. Tarantino continua a ser o homem à parte, ele e os outros, e a inteligência do seu cinema gore de acção é um culto sem grande coisa que se lhe compare.

Como acontece, se calhar, com os mais especiais, não é para toda a gente. É preciso entranhar primeiro, deixar-se levar, beber o todo. Para quem estiver disposto, no entanto, Django é mais um filme estupendo, com o único defeito de estender-se para lá do que devia (dura 3 horas, e a própria história ressente-se). À parte disso, é um prato cheio do melhor humor retorcido, do texto mais politicamente incorrecto, da mais fina perversão, de uma amoralidade carismática, uma tensão surda e uma loucura e uma violência exagerantes e espectaculares, num western pré-Guerra Civil, sobre um escravo que surge no caminho de um caçador de recompensas, e que com ele fará par nos negócios, até que esse o apadrinhe na sua busca por vingança e pelo resgate do passado que lhe arrancaram. No fundo, gostar ou não de Tarantino é o pormenor que vem depois de reconhecê-lo como um mestre.

Se o Argumento Original é mais uma pérola da sua gloriosa galeria, que o empurra para o 2º Óscar da carreira na categoria, a Realização não fica atrás, e é impensável que tenha ficado fora das contas da Academia. Tarantino não é nem argumentista, nem realizador, é um criador na suprema acepção da palavra, e Django é um trabalho do mesmo quilate nas duas dimensões. Tarantino tem uma ideia para todas as cenas, acrescenta sempre mais um ângulo, mais um efeito, mais uma carta tirada da manga, e proíbe-as todas à vulgaridade. Em Django, como que coseu o filme a uma cena cheia de cada vez, explorando toda a riqueza visual que se possa imaginar, na sua criatividade sem paralelo. A par de Spielberg, é ele o Realizador do Ano, e é um crime que tenha ficado de fora da corrida. Além do poder da imagem, o filme ainda é pautado por uma banda sonora decalcada do melhor estilo dos spaghetti westerns e que é, no mínimo, perfeitamente sensacional, para ir sacar a correr, e que celebra um conjunto quase perfeito.

O elenco brilha todo à vez, dos principais aos secundários, o que é pouco usual. Di Caprio é o maior entre os maiores. Que poder tem o seu Calvin Candie, com o brilho dos alucinados, a envenenar de tensão todas as suas cenas, esteja dormente, com o seu sorriso falsamente pacífico, ou possuído nas suas descargas electrificantes. É absurdo que, também dele, os Óscares se tenham esquecido. Christoph Waltz é a personagem paradigmática de Tarantino. Uma espécie de joker que incendeia tudo à sua volta, sentimental sem o ser, estranhamente normal na sua anormalidade. E o austríaco volta a ser magnífico, bendita a hora em que Tarantino o descobriu.

Mas também Jamie Foxx merece mais reconhecimento do que tem tido. É ele o protagonista, afinal de contas, e nunca se secundariza. Tem estofo para ser a cara daquilo a todas as horas, não emocionalmente, como se poderia pensar, e como o papel nunca lhe pede, mas com um pragmatismo e uma agressividade impagáveis, potenciadas por um texto delicioso. Nos secundários mais fundos, L. Jackson faz o melhor papel em anos, na figura enervante e caricatural de um mordomo negro que idolatra brancos. Tem expressão e influencia a acção, não é só decorativo. Kerry Washington, mesmo com menos visibilidade, é um enganche feminino com sumo, não apenas simbólico.

Como qualquer filme de Tarantino, a materialização da acção em Django Unchained poderá ser coisa só para os apreciadores. O resto, porém, qualquer um deverá admirar: a realização, as interpretações, as nuances geniais do texto. 3 anos depois, ele voltou, e voltou a fazer um dos filmes do ano. Não sabe fazer de outra maneira.

8/10

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A CAN é sempre especial, mesmo quando acaba 0-0


Níger 0-0 Congo

Ver a CAN é prescrição para um livre arbítrio feliz, mesmo quando acaba 0-0, e o espectáculo não foi tão grande como nos habituaram. A CAN, sobretudo nos Níger-Congo deste mundo, quase incontaminados pela Europa, é a alta competição sem as responsabilidades da alta competição. É jogar à bola sem pensar se aquilo é táctico o suficiente, é recusar defender ostensivamente, é entrar sempre a pés juntos, fazer cortes malabaristas, só jogar parado ou a sprintar, atacar, de preferência, com todos os jogadores da equipa, e ter vida a ser celebrada nas bancadas. A CAN é uma espécie de jogo de playstation em mais radical, um non-sense para gozar tremendamente, mesmo quando os jogos até são mais ou menos cinzentos como este.

O Níger, um dos países mais grosseiramente pobres do mundo, foi quem saiu feliz, ao conquistar o primeiro ponto da sua História na CAN, nesta sua terceira presença. E o Níger fala bem da poesia da competição: a única forma da equipa pagar a presença na prova, foi o Governo instituir um imposto extra no país. Coisas de outro universo. Sem talento para oferecer, vale a pena reconhecer o mérito de Gernot Rohr. O alemão que, no ano passado, fez um trabalho notável no espectacular Gabão, metodizou a equipa dentro do possível, e isso notar-se, é revelador e tanto. O Níger conseguiu ser relativamente arrumado e disciplinado a defender, mostrou ideias para sair a jogar e mostrou vontade, mesmo que, na prática, e irremediavelmente, tenha existido sempre um buraco negro de critério no último terço. Aquela que é, de longe, a equipa mais fraca do grupo teve, mesmo assim, 3 ou 4 grandes oportunidades, incluindo a última, já nos descontos, e merecia ter sido feliz.

Favorito na partida, com individualidades claramente mais capazes, o Congo acabou por fazer má figura. A defender, então, a pobreza foi constrangedora, e com outro adversário, tantas bolas perdidas teriam necessariamente acabado em derrota. Com um Níger macio, o Congo lá viveu para poder ganhar, no seu 4-4-2 puro, a canalizar todo o futebol pelas alas, e sem forçar, criou o suficiente para o fazer. A equipa, contudo, nunca foi agressiva como se exigia, foi parca em instinto, e foi quase sempre dolosa, e agora será forçada a bater o Mali para poder seguir em frente.

NÍGER - O melhor em campo foi o guardião Kassaly (29 anos, Chippa United, da África do Sul). Com duas defesas excepcionais, à queima-roupa, e frente à estrela adversária da companhia, foi ele o grande responsável pelo dia histórico da sua Selecção. Moussa Maazou (24 anos, também do Chippa Utd, depois de ter andado desde novo pela Europa), é o capitão, e o mais talentoso do conjunto. Na extrema-direita, em diagonais para o meio, foi ele a referência, e a solução crónica para arrastar a equipa para a frente.

CONGO - Mbokani (27 anos, Anderlecht, eleito ontem melhor jogador da Liga Belga!), é um futebolista de outro nível. Chamou-se sempre a jogo, e é verdade que esteve em quase todas, mas não pode falhar os golos feitos que falhou. Kabangu (27 anos, TP Mazembe, do Congo, o bi-campeão africano em 2009 e 2010) deixou excelentes referências, na meia-direita. É rápido, atlético e põe a bola onde quer. Incompreensível a sua saída logo no início da segunda-parte, num conjunto de opções que não abonam a favor do histórico Claude Le Roy (vencedor da CAN em 1988, com os Camarões).

O pai, a mãe, o tio e a avó do regresso aos mercados


Duas versões para o dia todo. A Esquerda quase vomitou na Assembleia. Grande nojo que foi este regresso aos mercados. Coisinha enganadora, que não vai servir de nada, e que só foi possível porque a Europa passou a mão pelo pêlo do nosso Governo incendiário. Atenção que não é ser uma coisa má; é só merecer despeito e desconsideração... exactamente porque a Esquerda já defendia desde sempre que só assim é que se pagava a dívida, e os porcos maltrapilhos vieram agora saquear os louros. Como se atrevem? A ideia foi da Esquerda! Peçam desculpa! Dêem palmas à Esquerda!

Já a Direita, só por sorte deve ter cabido na Assembleia, com um ego daquele tamanho. Os peitos estavam tão inchados que deviam ter derrames. Aquele sucesso tão arrebatador só foi possível pelo sangue, suor e lágrimas, pela visão iluminada de uma Direita profética, que é responsável, e que sabe o que as coisas custam. Não a Direita que faz contas às pessoas como se fossem mercadoria, para a qual é tudo uma folha gaspariana do Excel; mas a Direita que, na verdade, sabia melhor, a Direita que queria prazos piores e juros maiores para disciplinar este antro de bandalhos gastadores, e que agora até recolhe a simpatia da Europa, na grandeza do seu estadismo. Sejam crescidos, oh rapazolas de Esquerda, soavam os pavões pela Assembleia.

Neste circo das vaidades, feito de clubismo e propaganda para parolos, começa e acaba a nossa elite política. Devemos ter mesmo qualquer coisa de extraordinário. O país anda aí a descarnar aos bocados, a ver se se esconde nas cavernas da vida, que não sabe com que raio pode contar no mês que vem, mas no dia em que conseguimos a primeira das 10 milhões de pequenas vitórias que são necessárias para nos tirar da fossa, só interessa verdadeiramente uma coisa: quem é que leva o osso para casa.


P.S. - Honra lhe seja feita, Maria de Belém Roseira foi a única socialista que ouvi saber estar hoje. Disse que o país precisa é de "uma oposição construtiva", que o PS "não pode estar a pensar se ou quando vai ser Governo", e rematou que, independentemente dos caminhos que celebraram o regresso aos mercados, "se é bom para o país, não poderia estar mais contente." Na Assembleia, devem pensar que ela é um extra-terrestre.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O dia em que o ciclismo morreu


Later in the taped interview with Oprah Winfrey, Lance Armstrong was shown a clip after his record seventh Tour de France win, in which he said, "To the cynics and skeptics, I’m sorry you can’t dream big and believe in miracles."

Armstrong foi o ídolo que qualquer miúdo de 11 ou 12 anos gostaria de ter. Por muitos anos que viva, nunca me esquecerei daquelas tardes sagradas de Julho, no sofá velhinho de casa, com os olhos grandes na Eurosport. Perder a praia era um privilégio. Afinal de contas, não é todos os dias que se pode ver super-heróis em directo. O Tour daqueles anos era isso, era banda desenhada. Era a história dele e dos outros, a história de um contra todos, uma odisseia das aventuras, mas a dar na televisão. Era como se ninguém o pudesse bater. E ninguém podia. Dia sobre dia, semanas, anos, sete. Por muitos anos que viva, nunca me poderei esquecer. Armstrong de amarelo no primeiro letreiro da USS Postal, camisola aberta pelo peito, a levantar-se na bicicleta e a fazer um último esforço, todos os dias um último esforço, só para cumprir a formalidade de ir ser melhor do que os outros. Era como se ninguém o pudesse bater. E ninguém podia.

Para o grosso da opinião pública, hoje desapareceu uma marca. Um símbolo que já diabolizavam, uma mentira mal guardada, uma fraude consumada, mesmo que ainda não fosse. Para o grosso da opinião pública, era só uma questão de tempo. Eu acreditei nele até ao último dos segundos. Acreditei que era possível enganar a morte, fazer quimioterapia e voltar para ser o melhor de sempre. Acreditei que era possível sem nunca se ter dopado, acreditei que o perseguiam e que mentiam, e acreditei todos os dias. No fundo, talvez soubesse, mas tinha de acreditar. Não era teimosia, não era ingenuidade, era a convicção de que, simplesmente, não se pode pôr tanta coisa em causa. Só quem o viu correr poderá compreender.

No fundo, talvez não soubesse mesmo, ou ler a entrevista de hoje não seria tão estupidamente avassalador. Vê-lo dizer que "ciclismo era encher os pneus, encher as garrafas, e aquilo também", que se tornou num "bully para perpetuar a história... porque ganhar era importante", e que "ultrapassar a doença, vencer o Tour e ter um casamento feliz era mítico, era a história perfeita", é absolutamente atordoante. Vê-lo falar com tamanha falta de vergonha, e com tão grande falso arrependimento ("arrependo-me de ter voltado, se não, não estava aqui"), do esquema doentio que criou, feito numa figurinha escarrável e caricatural, uma fraude sem assomo de dignidade, um vazio humano e de carácter, é como ter adorado um psicopata e idolatrado uma mentira de todos os dias. Aqueles anos de ouro foram uma brincadeira, uma falsa memória, um grande nada. Armstrong é uma tragédia para o desporto, é um cancro muito maior para a sociedade do que alguma vez foi para ele.

Do mal que conseguiu concretizar hoje, dificilmente algum dia o ciclismo se poderá recuperar. Isso é o mais insuportável de tudo. Como escreveu Nolan, às vezes as pessoas merecem mais do que a verdade, porque a verdade não é boa o suficiente. Armstrong afundou tudo consigo. Expiação não é este lixo de mea culpa, era ter ficado calado, e poupado as pessoas ao que elas não mereciam ouvir. Que até ao fim dos dias, ao menos, essas pessoas o tratem como ele merece.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Guardiola. O caminho mais fácil ou a democratização do futebol europeu


Apostava que não acontecia. Na Europa hispano-inglesa, só parecia haver verdadeiramente um destino para Guardiola: a Premier League, e de azul, fosse na capital ou em Manchester. O futuro de Pep era o segredo mais desejado e, ainda assim, o mais mal guardado do Verão. Ao jeito dos velhos saques bárbaros, porém, veio um gigante da Baviera, e raptou o par mais concorrido da festa.

Ainda custa a crer nesta bomba de Janeiro, mas não estamos a falar nem de um clube, nem de um campeonato qualquer. A Bundesliga tem a melhor média de assistências da Europa, um poderio económico ao nível dos maiores, e o seu nível qualitativo actual fica patente no facto das três equipas alemães na Champions terem todas ganho os respectivos grupos. O Bayern, claro, dispensa propriamente apresentações. Basta mirar a ficha do plantel, e o cartão a identificar Munique como sede de um tetra-campeão europeu (e bem vivo, ou não tivesse estado em 2 das últimas 3 finais da UCL). 

Quando chegou a hora, o Bayern podia pagar tanto como os outros, podia oferecer um plantel tão bom como os outros, e tinha uma Liga a pulsar de vida, com tudo para crescer. No plano mais lírico, Guardiola muda-se de uma lenda europeia para outra, averso às perniciosidades dos novos ricos, e abraça o desafio de cruzar um paradigma futebolístico inteiro, indo do toque espanhol, que ele próprio reinventou, até à pujança germânica. Também nesta perspectiva, custa-me a crer que o catalão vá tentar fazer do Bayern o tiki-taka 2.0. Os treinadores não rasgam a sua filosofia quando mudam de casa, mas Guardiola parece exactamente o tipo que terá a sensibilidade histórica-estilística-contextual para recriar a equipa onde chega, mas sem nunca deixar de ser ele próprio contaminado por ela. O Bayern não ficará igual, mas também não passará a ser um projecto de Barcelona. O que será, é uma das questões cheias do próximo ano.

Claro que nada disto faz da Alemanha o lugar mais entusiasmante do mundo para jogar à bola.  Guardiola fugir de Inglaterra (e do Brasil...) é um desfecho agreste para o que é o futebol de hoje, e parece mesmo uma decisão de quem se quis proteger de alguma coisa. Na verdade, terá mesmo sido, e isso não é segredo para ninguém. Na Alemanha, Guardiola terá tempo, e poderá gerir melhor a pressão com a qual, nunca escondeu, lida a custo. No momento de escolher, não acho que o móbil tenha sido o caminho mais fácil; Guardiola escolheu o sítio em que achou que se sentiria bem, onde poderia usufruir mais e contribuir melhor, e isso não é coisa que o deva julgar. Damos mais se gozarmos do que fazemos, e Pep tem muita coisa para dar, mesmo que agora não queira viver da adrenalina e dos jogos mais selváticos que o mundo quer ver.

Pelo caminho, e como, se calhar, já merecia há muito tempo, a Bundesliga arrisca-se a furar a ditadura mediática hispano-inglesa que ordena no futebol europeu. Quem sabe, Ronaldo ou Mourinho até se mudam para Paris, e acabam a nascer duas Ligas num Verão só.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O derby. Vítor Pereira ganhou antes, ganhou durante e foi pequeno depois


"Vítor Pereira é um treinador com imensa qualidade. Sabe muito do jogo e sobretudo sabe que é bom. Sabe que sabe. É por certo muito difícil para o treinador do FC Porto não ter o reconhecimento dos media que sabe merecer. Tal não seria especialmente grave se Pereira soubesse lidar com o facto. Não sabe."

Aqueles primeiros 20 minutos entram de chofre para uma galeria especial. Se dúvidas houvesse, o futebol português de hoje é mesmo aqueles dois e os outros. Toneladas de qualidade, individual e colectiva, intensidade e altura para estas coisas. 20 minutos à Premier League, a correr sem olhar para trás, com as veias quase a estalar e futebol a rodos. Se não acontecer nada de estranho, haverá mesmo Liga até ao fim, e com ambos a jogarem certos de que a vão ganhar. O que é bem menos comum do que parece.

Ganhou o Porto. Porque o Benfica parecia sinceramente melhor e jogava em casa, porque eram os azuis quem vinha sem o seu melhor e mais preponderante jogador, e porque, por mais ingrato que isso possa ser, Jesus é uma certeza, Vítor Pereira ainda não.

A antevisão que o treinador do Porto fez ao derby impressionou. Falou grosso, sem pejo nenhum, quase a anunciar aos sete ventos que ia ganhar o jogo mais crítico do ano. Não é para todos, e também não são todos que conseguem vender tamanha confiança. Sinceramente, para Vítor Pereira, maldito estigma que o assombra, pareceu que estava com medo de qualquer coisa. Não estava, muito pelo contrário, e a equipa provou-o para lá de todas as dúvidas. Pela adultez que espalhou no campo, pela confiança que emana cronicamente e pela capacidade táctica com que condicionou o futebol adversário. Não estava, mas pareceu, e esse tipo de percepção, infelizmente para ele, não é coisa contra a qual se possa lutar.

Certo é que este Benfica também é uma grande equipa, com um poderio temível, soluções intermináveis e um sustento estratégico que lhe permite jogar nos excessos de Jesus (praticamente com um único médio, mais uma vez), e segurar-se mesmo assim. No fim de contas, o espectáculo foi altíssimo, o empate é adequado e é isso que devia passar à História.

Percebo a indignação pelas não expulsões de Maxi e Matic, que podiam ter acontecido, sobretudo na entrada assassina do uruguaio. Mas são casos, e não era futebol se não acontecessem. O jogo, porém, foi muito maior do que eles. Jesus disse, no fim, que ambos mereciam ter ganho, e é isso que o jogo merecia que se tivesse dito. Não merecia, por certo, o espectáculo de Vítor Pereira na sala de imprensa (acompanhado, depois, por um Pinto da Costa ainda pior na zona mista). Porque o resultado foi melhor para o Porto. Porque o que tinha para provar, a equipa provou superiormente em campo. Porque não se fazem tamanhas birras por arbitragem, muito menos em clubes grandes, ainda menos nestes jogos. E porque, acima de tudo, toda a gente percebeu que o problema não era o suposto roubo de igreja. O problema foi o complexo de inferioridade de Vítor Pereira, por mais injustamente motivado que possa ser, materializado naquele "o Benfica é isto, pontapé para a frente no Cardozo", e que o post do Lateral Esquerdo desmonta tão bem.

Vítor Pereira é bom treinador, provou-o a pulso. No futebol, como na vida, porém, o reconhecimento vem com o tempo, e para uns, demora mais do que para outros. Não estar à altura das ocasiões, como ontem, naquela sala de imprensa, é exactamente o tipo de coisa que não fará nada por ele.

O assalto a Lincoln, o banquete de Homeland e um hosting quase a fazer esquecer Gervais. Globos 2013


Algo de muito estranho se passa com uma cerimónia na qual Lincoln é o grande derrotado e Argo o grande vencedor. O filme de Ben Affleck sobre o resgate de diplomatas americanos de Teerão, em 1979, tinha perdido alguma fé no fim da semana, quando o próprio Affleck ficou fora das Nomeações para os Óscares, mas ontem levou a noite, com Drama e Realizador. Gosto sinceramente de Ben Affleck, e a sua realização até será uma das coisas boas de um filme que, no entanto, fica irremediavelmente à margem do que poderia ter sido, mercê de uma adaptação de argumento que o faz sempre plástico, insuflado e com suspenses de 3ª categoria. O filme tem muita gente boa envolvida, viu-se ontem o quanto acarinhada no meio, mas torná-lo no melhor do ano é uma infelicidade imperdoável.

Lincoln, por sua vez, todo ele excelência, ficou com o Globo de Day-Lewis, que de jeito nenhum lhe poderia fugir, mas acabou como o patinho feio da festa. Por comparação, a realização de Spielberg é um tratado, uma senhorialidade, e o argumento de Tony Kushner é brilhante, emprestando-lhe uma majestade absolutamente reverenciável (como o próprio Day-Lewis fez questão de reconhecer quando subiu ao palco). Vi 3 dos 5 nomeados, e achar que Lincoln não iria ganhar parecia-me, no melhor dos casos, um disparate. Esperemos que nos Óscares, e porque a Associação de Imprensa Estrangeira tem por gosto marcar diferenças para a Academia, se emende a mão a este desterro.

Les Misérables foi o outro grande vencedor da noite, aproveitando a cisão dos Globos entre Dramas e Musicais/Comédias. Levou Filme, Actor e Secundária, fazendo uso natural do seu estatuto. Ainda não vi, portanto dou um pequeno benefício da dúvida, mas não me parece que, por mais majestático que possa ser, seja realmente melhor do que uma pérola tão imensa como Silver Linings Playbook, e do que o seu nível desmedido de história e interpretações. É criminoso que tamanho filme não tenha tido reconhecimento nem nos Globos, onde o caminho era bem mais desimpedido. Felizmente, a espantosa Jennifer Lawrence colheu o primeiro grande troféu da carreira, e ainda alimenta um fio de esperança para os Óscares, apesar de Chastain, que também ganhou ontem, como esperado, já ter uma mão na estatueta.

Quem também não saiu com muitas razões de queixa foi Tarantino e o seu Django. Quentin levou para casa o segundo Globo de Melhor Argumento, e isto quando a categoria, ao contrário dos Óscares, funde os Originais e os Adaptados, precipitando notoriamente a concorrência. Num ano de grandes textos, é um prémio notável, que aguça ainda mais a curiosidade para o filme. Também Christopher Waltz venceu o segundo Globo de Secundário em quatro anos, consolidando o filme (e derrotando um Tommy Lee Jones de luxo, também por Lincoln...).

Nas séries não houve, felizmente, muito pano para mangas, e Homeland passeou-se com toda a pompa que merecia, ganhando Drama, Actor e Actriz. É o reconhecimento justificado à qualidade mais suprema do ano que passou, e uma vez mais. Bisaram a série e Claire Danes, Damien Lewis redimiu-se da derrota injusta no ano passado, e só ficou a faltar Mandy Patinkin, como Secundário, para a festa da série do ano ser total.

Em Comédia, com vitória para Série e para Lead feminina, emergiu um nome para olhar em breve: Girls, de Lena Dunham, pelo ano de estreia, e a destronar Modern Family. Também Game Change, um telefilme sobre a candidatura republicana à Presidência, em 2008, deu seguimento às vitórias nos Emmys, e venceu Mini-série, Actriz e Secundário.

Duas últimas notas: a primeira, o Globo de ouro mais do que justificado para a brilhante Maggie Smith (Downton Abbey), num papelão que já lhe tinha dado dois emmys, mas nenhum globo; a segunda, a consternação pelo pior Pixar de sempre ter ganho Animação à mesma. Era obrigatório exigir muito mais.

Tina Fey e Amy Poehler fizeram um hosting belíssimo. Não sigo de perto o trabalho de nenhuma delas, mas toda a gente estava a confiar, e brilharam as duas, com uma química farta e uma certa omnipotência em palco. Por mim, Gervais teria um contrato vitalício para estas coisas, mas foi uma aposta perfeitamente feliz da AFP, e fazia falta ter mulheres deste nível a fazer estas coisas.

Para momentos da noite, Jodie Foster, necessariamente, na recepção do Cecil B. DeMille Award, a falar com uma altitude reverencial da vida pessoal que até foi tema de gozo na cerimónia do ano passado, e que a coroou como a grande senhora da noite. A vitória candelar de Adele, em Música Original, a marcar o ponto de honra do injustiçado Skyfall, foi outro dos momentos bons, secundado pelas subidas de um quase nobiliárquico Day-Lewis e, apesar de a contra-gosto para mim, de um Ben Affleck que foi the coolest guy around.

Grosso modo, é ficar a contar agora com boas surpresas no que me falta ver (Django e Miseráveis, sobretudo), e esperar que, nos Óscares, os prémios sejam quase todos ao contrário.

sábado, 12 de janeiro de 2013

E se uma comédia romântica for o filme do ano?


Anteontem, quando foram anunciados os Nomeados aos Óscares, partiu o chão aos mais atentos: uma comédia-drama romântica tinha acabado de ser nomeada, não para uma ou duas, mas para todas as sete categorias mais emblemáticas da Academia. Não é que isso aconteça poucas vezes; a última que aconteceu foi há 31 anos (Reds, 1981), e quem o chancelava era um filme de requinte do Panteão de Hollywood. Restava, pois, ir ver. Depois de ir, e depois de crer, ainda lhe estou a dar graças: pela sombra das hiper-produções, e contra todas as probabilidades, uma comédia romântica está mesmo no cume do que de mais excelente se fez em 2012.

David O. Russell realizou e adaptou o livro do americano Matthew Quick (2008). O seu trabalho é extraordinário a todos os níveis, e vale, num género que não é treito a este tipo de consideração, um dos dois ou três trabalhos que marcarão mais pronunciadamente a sua carreira. Não se pode tirar mérito à obra-mãe, mas tê-la concretizado a esta altura, é tarefa de um argumento cuja adaptação nunca estaria ao alcance de qualquer um. A isso, junta uma realização eléctrica, que gosta de pormenores, com tanta vida e peculiaridades como o filme, com sensibilidade, bom gosto e grandes momentos, a que soma uma banda sonora espectacular. Por mérito próprio, O. Russell é um dos nomes grandes do ano.

Silver Linings conta a história de um ex-professor que está a sair de um hospital psiquiátrico. A sua jornada para subsistir às circunstâncias, inseguro, sozinho e perdido da realidade, até sarar-se e redescobrir-se, é um textos mais genuinamente bons que já vi. Pela forma como replica a essência das pessoas, as anormalidades que todos temos, a comiseração das relações, a nossa insustentável leveza, e o termos de nos aguentar pelos próprios pés, quando não há mais sustento nenhum, até termos a felicidade de descobrir um caminho qualquer. E o filme conta isso com uma pureza desmedida, desconcertante até, do protagonista que não tem nada a que se agarre, mas para quem "o final feliz" há mesmo de acontecer, se acreditar nele o suficiente. Até porque, para ele, é pensar assim ou morrer.

O filme cruza, digamos, três géneros, e é notável em todos eles. A matriz é a comédia, e o humor é impagável e imparável, psicótico, constrangedor, provocante, eminentemente inteligente, repleto de situações realisticamente estranhas, magicadas com dose e predisposição para nos porem a rir a tempo inteiro. No drama, tem uma subtileza magistral, omnipresente sem estar sempre a pesar, mas capaz de partir o filme em cacos nas suas descargas, materializadas em cenas verdadeiramente intensas, para dar um nó na garganta.

O romance, finalmente, é tão inortodoxo quanto profundamente sedutor e empático, com duas personagens perturbadas, mas nunca caricaturadas, a conhecerem-se no equilibrismo sem rede que é as suas vidas, a tocarem e a chocarem, e a passarem a ser alguma coisa juntos, mesmo que ainda não o fossem. Silver Linings é um filme adulto, inteligente e despretensioso, com a conclusão bonita de que toda a gente é fodida da cabeça à sua maneira, e de que a vida não é normal, não é senso comum, é tão estranha e retorcida como se possa imaginar, mas, que no fim, se quisermos fazer o certo dela, ela dá-nos qualquer coisa.

Bradley Cooper é excepcional, e faz o seu grande papel da carreira, coisa que já era só mesmo questão de tempo. É um deslocado da realidade, ora melhor com a vida, ora desfeito da cabeça, ora simplesmente a correr obcecado pelo que nunca poderia voltar a ter, com um jeito desleixado, quase sempre triste, mas abnegado e desafiante. Seria uma estampa por si só, mas a química estapafurdiamente natural que consegue ter com Jennifer Lawrence, a chama envergonhada dos dois, a recusa da atracção mútua e o toque da dança, levam tudo ao nível seguinte.

Jenny Lawrence é, para mim, a lead do ano, a meter num caixote ao fundo da despensa Jessica Chastain (Zero Dark Thirty), que parece, por esta altura, a grande favorita ao Óscar. Tem uma personalidade incontornável, uma presença que agarra e palpita em todas as cenas, e é perfeitamente cativante, entre a dureza áspera e uma delicadeza frágil e desconcertante (a que alia o facto de ser um total deslumbramento). Não é propriamente um acaso que, aos 22 anos, esteja já seja a sua segunda Nomeação.

Nada menos do que 20 anos depois, também o enorme De Niro vai voltar aos Óscares, e com toda a propriedade. A caminho dos 70, foi numa comédia romântica que um dos mais explosivos e icónicos de sempre se reencontrou, como um pai com uma capa forte, sem muito jeito, mas a fazer pelo melhor para cuidar de um filho que vê a fraquejar.

Silver Linings Playbook reinventa as comédias românticas. É um filme estupendo de uma ponta à outra, com um coração e uma riqueza intrínseca, sobredotado na fusão da comédia, do drama e do romance. Até agora, é o melhor que vi, de 2012, e tenho a certeza que virá a ser o filme mais unanimemente apreciado do ano.

9/10

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Nomeações 2013


Óptima notícia a confirmação do estatuto de Lincoln. Do que já vi, é, de facto, o filme de excelência do ano, e as 12 nomeações, incluindo todas as grandes categorias, dão-lhe um empurrão passível de fazer a diferença quando chegar à hora. Spielberg, Day-Lewis e Sally Field dão-se ao luxo de olhar todos para o terceiro Óscar da carreira, e colocam-se a postos para entrar numa galeria muito restrita da História.

Verdadeiramente espectaculares foram as 8 nomeações de Silver Linings Playbook, uma comédia-drama sobre um ex-professor de saída de um hospício, que cometeu a proeza praticamente rara de ser nomeada nas quatro! categorias de interpretação, a que junta nada menos do que Melhor Filme, Realizador e Argumento Original (estes dois acumulados por David O. Russel). Estreia esta semana em Portugal, e o apetite disparou.

Logo de seguida, na lista de surpresas, Beasts of the Southern Wild. O drama de uma jovem menina que vive com o pai, um doente terminal, no interior dos Estados Unidos, e que ganhou Sundance, garantiu quatro nomeações de peso - Filme, Realização, Actriz e Argumento Adaptado -, destacando a estreia de Benh Zeitlin em longas-metragens, e fazendo da pequena Quvenzhané Wallis, de 9 anos!, a nomeada mais nova da história da categoria. O outro inesperado foi Amour, a celebrada história de amor na terceira idade, de Michael Haneke, que já tinha ganho a Palma de Ouro em Cannes. Sabia-se, de antemão, que o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro estava reservado mas, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, nos Globos, a obra invadiu as outras categorias: Melhor Filme, Realizador, Argumento Original e Actriz, fazendo, diametralmente, de Emmanuelle Riva, 85 anos, a nomeada mais velha da História. Uma categoria especial a de Melhor Actriz, este ano.

De entre os pesos pesados, Life of Pi ficou com a prata das Nomeações (11), recolhendo Filme, Argumento Adaptado e Realizador, onde o taiwandês Ang Lee passa a estar de olhos na 2ª vitória da carreira, depois de Brokeback Mountain. O filme falha, porém, todos os prémios individuais.

Os outros gigantes - Les Misérables, Django Unchained, Argo e Zero Dark Thirty - levaram um golpe de asa: correm todos para Melhor Filme (o que acumulam com mais 2 outras nomeações-chave), mas nenhum para Melhor Realizador, o que não era minimamente expectável. Nos Globos, por exemplo, Tarantino (que pode ganhar, contudo, o seu segundo Argumento Original), Affleck e Bigelow estavam entre os cinco. Já vi os últimos dois, e foram uma desilusão, mas se a ausência de Affleck é indiferente, Bigelow talvez justificasse mais consideração.

Num ano francamente instrumentalizado ao nível das categorias importantes, sobressai a ausência de The Master para Filme ou Realizador, quando tem três indicações interpretativas - Actor, Secundário e Secundária. Flight, com Denzel e Argumento Original, fecha os destaques.

Pessoalmente, do que vi nos últimos meses, choca-me a absoluta desconsideração por Skyfall. Vale a pena lembrar que, em 2010, a Academia decidiu alargar propositadamente o número de nomeados a Melhor Filme dos tradicionais cinco, depois dessa ter sido uma das razões para que o icónico e "comercial" The Dark Knight tivesse ficado de fora, no ano anterior; acho, assim, completamente injusto que o blockbuster do ano, que é muito mais do que isso, tenha ficado restrito a Melhor Música Original, ainda por cima quando só foram indicados 9 do máximo de 10 candidatos a Melhor Filme. Sam Mendes também merecia absolutamente estar entre os melhores realizadores, e Javier Bardem não estar nos Secundários é uma aberração. Há preconceitos que nunca se curam.

No resto, gostava que tivessem estado Michael Caine como Secundário (pela performance, e numa justa homenagem ao fim da saga Batman), os argumentos de End of Watch e Trouble with the Curve, e a banda sonora de Howard Shore, no Hobbit. Fica a faltar um mês e meio para pôr tudo em dia, e para poder implicar com tudo no dia. Como entrada, há Globos já neste Domingo.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Ganha o Messi ou alguém que peça desculpa


Vingou, nos últimos dias, a ideia de que, para o Ronaldo ganhar a Bola de Ouro, só por favor. Que se ele ganha, o Messi continua a ser o melhor à mesma, e parece que ele roubou alguma coisa. Que, para ele ganhar, as pessoas tinham de condescender e dar-lhe um rebuçado, só porque os brinquedos não podem ir todos para o filho favorito. Um frete, como se o Ronaldo, no fundo, não merecesse a filha da puta da Bola de Ouro.

Um gajo que marcou 70 golos no ano oficial, e ganhou o campeonato à universalmente denominada melhor equipa de todos os tempos, ao fim de 4 anos de um tormento de seca que não parecia alguma vez ter fim, tal era o abismo que separava ambos os rivais. Um gajo que, ainda por cima, foi jorrar de golos todas as visitas que fez ao Camp Nou, e desequilibrar esses jogos todos, coisa que mais ninguém na equipa dele, e quase no mundo, seria capaz de fazer, avacalhando o mito de que não era grande o suficiente para os jogos verdadeiramente maiores. Um gajo que, como a época até tinha sido curta e revigorante, ainda chega ao Verão com fogo nas botas para ir ao Leste empalar quem apareceu à frente de uma Selecção, convém não esquecer, de uma merda de país com 10 milhões de habitantes, que quase todas as potências continentais tiveram de ver outra vez pelas costas, e que a universalmente denominada melhor selecção de todos os tempos só conseguiu eliminar com postes benzidos nos penalties, no que eles próprios consideraram a maior vaca que tiveram nestes anos todos.

Um gajo a quem se exige 100 vezes mais do que a qualquer outro, que não tem imprensa favorável, não tem imagem favorável, nem está num clube favorável, onde toda a gente cague arco-íris, cure doenças, seja amigo de infância e viva feliz para sempre com fadas e com elfos. Um clube infinitamente mais difícil de trabalhar, que leva um dia de cada vez, por oposição a quem tem o mesmo projecto desportivo há 20 anos, um clube no qual a diferença entre o sucesso e o fracasso é um finíssima linha de equilibrismo, porque para bater o adversário é preciso ser transcendental, e para ser batido, basta fazer uma carreira mais ou menos normal. Um gajo que, mesmo numa nova época tormentosa, coisa que o outro sabe lá o que é, na cama quentinha em que sempre viveu, continua a ser o mais admirável e imprescindível jogador da equipa, fruto de uma capacidade de trabalho, uma mentalidade e um carisma verdadeiramente ímpares, que o metem em Marte, quando comparado ao baixinho para quem, como li há tempos, "ser genial é divertido e tem piada."

Quem sabe, o Messi até ganha as Bolas todas até morrer. Bom para ele. Mas uma coisa é certa: se o Ronaldo ganhar, não é por comparação. Fodam-se com a comparação. Não é porque o outro já tem muitas, e porque até fica bem na fotografia. É porque ele se matou por isso de todas as vezes, ele, sozinho, sem lhe darem nada, nem nunca lhe passarem a mão pela cabeça. Só um demente é que poderia achar que, depois de jogar o que ele jogou, e depois de ganhar um campeonato à melhor equipa e ao melhor jogador de gerações, ele não seria a porra do Jogador do Ano porque mereceu.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Zero Dark Thirty


Teve ângulo, mas falhou com ele.

A crónica toda a gente sabe: a década que espaçou o 11 de Setembro e a morte de Bin Laden. A profética caça ao homem, o investimento humano, os falhanços, a desorientação e a consumação. Ao contrário do que se poderia pensar, o filme não assenta só nos eventos do ano passado, vai fundo, vai atrás, é cronológico, e isso fica-lhe bem, dá-lhe uma profundidade interessante, pese mal aproveitada depois.

O fracasso de Zero Dark Thirty começa e acaba na Maya de Jessica Chastain. Não necessariamente na sua performance - que, de qualquer maneira, é quase sempre plástica e pouco convincente -, mas na forma como a projectam. O filme quis explorar um carácter pessoal, distanciar-se da epopeia mediática, e humanizar a história, o que era lógico. Para isso, contudo, meteu as fichas todas na sua protagonista, a figura supostamente verídica de uma agente da CIA, retratada como uma mulher-ícone, uma agente-modelo e uma referência incontornável daqueles anos, obcecada com o trabalho, com o caso, e, muito especialmente, com Bin Laden. Essa opção, infelizmente, saiu bastante mal, quer porque Chastain não teve estaleca para tanto, quer porque toda a lógica da sua personagem é perfeitamente abusiva.

"Maya" acaba por canalizar de forma enjoativa o tradicional herói americano, num texto pretensioso que nem tem nada a ver com ela, e que torna o filme, não na "maior caça ao Homem da História", como anuncia a tagline, mas numa obsessão pessoal empolada, incapaz de ter, alguma vez, um pouco de empatia ("acho que me pouparam para que fosse eu a desvendar", etc.) Então se a compararmos com outra lead feminina assombrada pelo 11 de Setembro e pelo terrorismo - Claire Danes, em Homeland -, é corrosivo. Depois da história elegante do vício tormentoso pela guerra, em Hurt Locker, que lhe valeu o Óscar para Argumento Original, Mark Boal foi infeliz: no que tinha de se distinguir - isto é, na recriação do contexto e das pessoas paralelas ao que já todos sabíamos que ia contar -, este seu original é uma história insuflada e indigesta.

Para ser sincero, o filme só é verdadeiramente bom nas fases em que a acção não é contaminada pela omnipotência da protagonista: no desconforto avassalador e na violência torturante dos interrogatórios, no capítulo inicial, com Jason Clarke, dormente e destruidor ao mesmo tempo, e, principalmente, o francês Reda Kateb, perdido em sofrimento, a serem as melhores interpretações do filme; e, depois, na majestosa e inevitável sequência final, executada com requinte e um poder total, em visual, em suspense, em silêncio e a cada passo, e onde Kathryn Bigelow pôde concretizar plenamente a capacidade que tem para estas coisas.

Para contar a história da caça a Bin Laden era inevitável investir nas personagens, fazer com que aquilo também fosse a sua história. Zero Dark Thirty decidiu apostar tudo numa, fazendo dela uma qualquer messias incansável, intrometida demais, maçante demais, cheesy demais, e carismática de menos. Vale a História, a Realização e o ambiente, mas sabe a pouco.

6/10

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Flight


Drama consistente, com um excelente lead e uma bela realização.

Depois de uma última década dedicada ao motion capture e à Animação, Robert Zemeckis voltou à live action, 12 anos depois de Cast Away. E fê-lo com sucesso. Em Flight, o oscarizado realizador de Forrest Gump deixa a sua marca, tanto ao nível dos óptimos efeitos especiais (o decurso do acidente chega a ser abismal), quer, depois, pelo estilo atraente a filmar, recheado de boas chapas, com vida, swag e sem tempos mortos, sempre absolutamente exponenciados pelo extremo bom gosto da banda sonora, que inclui desde Rolling Stones e Red Hot Chili Peppers, a Joe Cocker, Bill Withers ou Marvin Gaye.

Sobre o argumento de John Gatins (carreira mais ou menos discreta, donde saliento o interessante Coach Carter), há mais reticências. Flight é uma boa história original sobre excessos, auto-destruição e expiação, mas, mesmo rendendo um filme de qualidade, parece ficar à margem do que poderia ter sido. Desde logo, a trama é adivinhável quase de princípio a fim, o que lhe tira brilho. Depois, o carácter do texto de alguns dos personagens, em determinadas situações, é mais ou menos delirante, acabando por trazer um certo ruído desnecessário, como se sem aquelas tiradas que nem fazem grande sentido, o filme não fosse intelectual o suficiente (a excepção são os 5 minutos geniais de monólogo de James Badge Dale, numa escadaria de hospital). Também é pena que a relação do protagonista com a ex-mulher e com o filho não tenha sido mais explorada, porque havia potencial (a cena com os três é brilhante); já o caso de ocasião entre viciados não funciona, por falta de química.

Denzel é muito bom, e depois de uns quantos filmes mais comerciais (este ano também já tinha brilhado em Safe House), escancara a sua candidatura à Academia, de cujas nomeações anda arredado, imagine-se, há nada menos do que uma década. Dele não há muito a dizer, a não ser que continua a estar na extrema elite de leads da actualidade. Em Flight, o seu Whip Whitaker alcoólico é verdadeiramente dormente, destrutivo, irremediável. Um papel duro, sem luz, sem feelgoodness, entre momentos de corpo sem vida e assomos de lucidez, que Denzel maneja consumido, com uma naturalidade desconcertante, típica de outro campeonato. Não sei se dá para ganhar o Óscar (pessoalmente, Day-Lewis está na frente), mas será um regresso inevitável à cerimónia, como os Globos já deixaram antever.

John Goodman assina mais um excelente papel, ele que é, possivelmente, o melhor secundário do mercado. Notável a competência, a áurea e, sobretudo, a quantidade de papéis sólidos em filmes de nomeada, ano após ano: em 2012, além de Flight, esteve em Argo e em Trouble with the Curve. Kelly Reilly, por sua vez, sendo lindíssima, foi insegura e insossa, e acrescentou pouco à acção.

Flight é um belo filme sob qualquer prisma. Deixa só a sensação de que poderia ter sido ainda melhor.

7/10