quinta-feira, 12 de junho de 2014

Mundial 2014, antevisão: decadentes, Ronaldodependentes, mas mais vale pagarem para ver


12 de Junho de 2000. Foi aí que tudo começou. Nesse Portugal-Inglaterra para todo o sempre maior do que a vida que, ironicamente, à mera vintena de minutos já fazia ruir pela base a ilusão de ouro de uma geração inteira, tão boa como jamais tínhamos visto. Foi aí, prestes a perder o nada que tínhamos, que tudo começou, naquele pontapé ridiculamente perfeito com que Figo siderou David Seaman e, em boa verdade, qualquer ser vivo que um dia tenha querido ser guarda-redes. Ainda hoje não conheço melhor prova do livre arbítrio do que esse torpedo cósmico, que não só nos dobrou a sorte de um jogo e o destino de um torneio como, muito mais bestial que isso, nos fundou uma dinastia. Até ao Euro-2000, Portugal jogara quatro grandes competições internacionais em 70 anos; daí para cá jogou o dobro, não voltando a falhar uma qualquer. Orgulhosamente, a minha foi a geração dos que não falharam. Todavia, numa idade não propriamente bíblica, passar dos grupos não era um dado adquirido e ganhar às duas eliminatórias não era a medida do sucesso. O privilégio era sequer lá estar.

Esta é uma oportunidade tão boa como qualquer outra para lembrar que tudo o que conseguimos nesta Era, fizemo-lo por oposição a todas as nossas circunstâncias. Não fomos tocados pelo Céu, nem apareceu talento nas árvores, nem a vida acordou um dia mais fácil. Claro que há Ronaldo, e que à esmagadora maioria das casas não calhará nenhum Ronaldo na vida. Mas quando nos engalanamos no acto de definir metas mínimas, autoritária e irremediavelmente ambiciosas, esquecemos quase sempre de onde partimos. Esquecemos que, de uma forma vagamente romântica, a Selecção dos 10 milhões é uma improbabilidade. A única verdade é que temos mais talento do que podíamos, muito mais do que era lógico e que, como se isso não bastasse, ainda o aprendemos a usar melhor do que os outros. Ontem, hoje e sempre, as nossas condições não são remotamente comparáveis às das potências, que nos multiplicam em tudo aos dobros: população, recursos, capital, estrutura. Cada grande campanha nossa é um respeitoso desafio estatístico, um orgulhoso teste ao racional que, acredito, a maioria de nós não reconhece quando o vê. Cada meia-final, cada gigante derrubado, não é obrigação, é inteiramente superação. Vale a pena pensar nisto porque é a verdade, não porque é bonito. Mas também é.

Ao fim e ao cabo, indiscutível é que estamos mal habituados. Mas estar mal habituado costuma ser muito bom. Hoje, uma vez mais, não temos o direito de exigir outra grande jornada, mas temos a necessidade de o fazer. Menos do que isso será um fracasso, mesmo que não faça sentido assim. Portanto, por uma campanha mais, lá estaremos a ser melhores do que devíamos, imbuídos de fazer necessariamente mais do que era suposto, nessa vertigem surda que ou não reconhecemos ou ignoramos, só para depois nos rirmos do caos como mais ninguém. A minha meta são as meias-finais. É realista? Não sei, mas é, pelo menos, tão difícil quanto gostamos.


Antes de mais, o Brasil. Naquela noite de Solna, no Inverno passado, quando ainda não sabíamos ir ver a melhor performance nacional da nossa vida, fomos todos atormentados pelo mesmo prenúncio de morte, algures pela hora em que Ibrahimovic marcou o segundo da Suécia. Seria mesmo possível que, de todos, falhássemos exactamente o primeiro Mundial lusófono dos tempos modernos? Não passariam realmente mais do que cinco minutos até que o extraterrestre ridicularizasse esse nosso fraquejo de fé. Claro que ele o fez nas suas proporções monstruosas, mas o essencial estava lá. Um bocado da nossa alma mora nesta Copa do Mundo, morou desde o Início. O Brasil é o Mundial onde sempre estivemos. Na História e na diáspora, evidentemente. Mas também nas ruas, nas praias, no calor, nos costumes, na bebida, na memória, nas noites longas, no saber viver. O Brasil é irmos ver a família, é fazerem-nos sentir parte, o que é único e pode ser impagável. A Copa tem um organizador e trinta convidados. Já nós, somos de casa. Acho que se tivéssemos perdido o play-off tínhamos sido convocados na mesma. O Mundial português sem Portugal, não era um Mundial. Era um estropio.

Ao 5º parágrafo, acho que é introdução que chegue para falar do tabu. Confio sinceramente no que vamos fazer a partir de amanhã, mas nem com toda a boa vontade do mundo poderia relativizar o joelho de Ronaldo. Desde o primeiro jogo em que Ancelotti o puxou ao banco que estamos todos a pensar na mesma coisa e não pode ser um drama reconhecer algo que me parece puramente elementar: o melhor jogador do mundo não estará no Brasil em pico de forma. Isto não significa, contudo, que vá estar mal. Afinal de contas, é de Ronaldo que estamos a falar. Não significa, sequer, que abdique dos galões de um #1. Mas uma das poucas certezas em futebol é que não há borracha para lesões. Alguma diminuição, algum défice de explosividade, alguma humanidade são, tão só, inevitáveis. O que faz parte e, de resto, afectou quase como um trovão transversal a esmagadora maioria das esquadras. Apesar de tudo, não sei se mais por fé, mais por julgamento, confio que Ronaldo vai mesmo fazer a diferença, uma vez mais. Porque me parece ter sido bem protegido, porque há tempo, porque, aos 29 anos, é o seu Mundial nuclear, e porque, se há alguma coisa que define o seu calibre, é a transcendência sobre a adversidade. Quando lhe perguntaram as maiores qualidades da equipa, Moutinho respondeu que 'somos solidários e temos Ronaldo'. Escusado será dizer que a sorte do capitão será também a nossa.


Num paradoxo às vezes inexplicável, a nossa imagem de marca é exigir muito, mas dizer, quase sempre, que somos maus. Esta última referência foi particularmente impingida no último ano, diagnosticando-se esta Selecção como um grupo em curva descendente, mais exposto, por isso, às suas insuficiências, e com parcas alternativas, porque não se soube renovar. Parte das críticas terá razão de ser. Algumas figuras, por exemplo, estão teoricamente pior do que há dois anos. A equipa não tem uma matriz propriamente fantasista e o banco é, de facto, escasso. Ninguém pode dizer, em consciência, que somos candidatos declarados ao que quer que seja... mas, de novo, alguma vez fomos? Nunca menosprezando o que acabei de reconhecer, mas o que vejo é uma equipa tremendamente experimentada e calejada, que joga junta há quatro anos, chegando brilhantemente a uma meia-final continental, que só perdeu nos penalties para o futuro campeão.

Num torneio curto, poucas coisas são mais valiosas do que as rotinas, e basta um olhar ligeiro por outras selecções importantes para vermos que, na verdade, esse está longe de ser um trunfo vulgar. Para além disso, não convivemos com quaisquer casos, ao que se acrescenta um treinador que os jogadores respeitam, o que proporciona um ambiente tão saudável como se poderia desejar. Em paralelo, continuo a identificar-nos alguns dos melhores jogadores do continente (Pepe, Coentrão, Moutinho, Nani) que, pese oscilações da carreira, devem ser analisados num contexto emocionalmente inestimável, numa competição curta e com níveis de motivação estratosféricos. O onze completa-se de forma competitiva e equilibrada (Bruno Alves, Meireles, Postiga), até com um par de soluções frescas para duas posições historicamente difíceis - William e Éder. Menosprezar-nos será um erro grande, como, de resto, costumamos provar por passatempo.


Infelizmente, desengane-se quem acha engraçado dizer que o calendário é difícil no papel. A Alemanha é tão brutal como sempre e é difícil estar optimista para esse tipo de começo a frio. Para além disso, se os Estados Unidos me parecem, a larga distância, um adversário frágil, já o Gana só não impressiona quem não estiver atento. Vamos ter a primeira final logo ao segundo jogo e é bom que estejamos todos bem conscientes disso. Seja como for, não somos pior equipa e, na linha do que já me demorei, seria impensável uma despedida nos grupos. No pior dos casos... temos de passar. A partir daí, não melhora, com a larga probabilidade de apanharmos a idolatrada Bélgica nos oitavos e nada menos do que a Argentina nos quartos, tanto num caso como noutro, onde será pacífico dizer que temos menos soluções. No entanto, a partir dos grupos também é um torneio diferente. Um que, ao contrário dos nossos prováveis adversários, conhecemos bem. Não era escandaloso cairmos nos grupos, muito menos perdermos qualquer uma das eliminatórias referidas. No balneário, contudo, não duvido que as meias-finais também são a medida pela qual todos se esperam provar.

Na antecâmara, não consigo pensar no Brasil sem um final feliz. Vale o que vale, mas não está mal para começar.

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