quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Nightcrawler. A frieza como virtude e como senão


Não é um filme impressionante. Não escala, não vai buscar um zénite onde não estávamos à espera, não tem alcance suficiente para nos arrebatar. Ao mesmo tempo, também não é previsível ou vulgar. É como que uma anestesia, uma carga venenosa que nos deixa adormentados. Não nos mata, não nos exalta, deixa-nos, em vez, como que paralisados com a sua frieza cirúrgica, com a limpeza crua do seu pragmatismo. Nightcrawler é uma história do "jornalismo" sanguessuga, do freelancing abutrificante da 25ª hora, que leva repórteres avulsos a perseguirem a polícia madrugadas a fio, em busca das tragédias onde possa gangrenar o pior sensacionalismo televisivo.

Acho que o maior mérito do filme é o seu carácter desapaixonado. A forma como se auto-repudia, evitando, por todos os meios, ser estético, moral ou remotamente empático. Nightcrawler é um trabalho sujo. Não tem entrelinhas, não tem redenções, é exactamente o que parece. Sugere-nos o contrário, sugere-nos um desenlace mais óbvio, mas afinal, e de certa maneira, não tem sequer "ficção". Não raras vezes é mais difícil ser realista do que criativo e é incontornável a forma como o argumento se despe desse protagonismo fácil, garantindo uma experiência quase documental ao espectador. O californiano Dan Gilroy é quem assina, na qualidade de argumentista a estrear-se como realizador . A nível técnico, a competência também transparece na direcção. O sumo visual do filme é o resultado de um trabalho próprio de uma régie televisiva - curiosamente omnipresente à própria acção -, com a cadência, o ângulo e a desmultiplicação de uma grande emissão. Os momentos de "grande reportagem", sejam no acto, sejam na transmissão, são irrepreensíveis e agarram-nos a essa vertigem do directo.

O problema de um trabalho nestes moldes é que está cronicamente limitado à partida. Condenado a que se enalteça o rigor fílmico, a técnica, a interpretação, quase todos os subprodutos, mas com aquela distância que separa os filmes bem feitos dos que absolutamente nos roubam. A Nightcrawler faltou génio e reflexão. Faltou uma finta que fosse, faltou ser mais provocador, negro ou delirante. Faltou desequilíbrio, febre, sal. Aquele tipo de retrato, acabado como o foi, é ázimo. É um filme que estará sempre incompleto, desconfiado de que aquilo não pode realmente ser e acabar só assim.

A nível de performance, Nightcrawler é o one man show por definição. Jake Gyllenhaal não tem sequer uma sombra nas entranhas da sua noite, enquanto sujeito descarnado, deslocado e sociopata, que tropeça num rumo por acaso e faz da sua negritude a carreira que nunca poderia ter. Já o escrevi mais do que uma vez ao longo dos últimos anos e, desta feita, parece que a época dos prémios vai finalmente fazer-lhe jus: Gyllenhaal é um dos mais notáveis protagonistas da sua geração e, sem lugar a dúvidas, uma das certezas mais sustentadas da actualidade. A sua mutabilidade e a compleição intensa que lhe imprime sempre colocam-no num nível especial e é isso a que assistimos mais uma vez. A alienação do homem que retrata, a sua resposta na aparência, os seus modos autísticos, a sua descolagem social, tudo compõe notavelmente uma das personagens do ano. Se não acho que o filme vá morar nessa elite, pois ele sim.

Nightcrawler não é para qualquer disposição, nem para qualquer estilo, mas o grande lead, a frieza e a competência técnica transversal serão, contudo, razões suficientes para justificar a oportunidade.

7/10