terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Uma terra de deslumbramento


Haverá sítios em que se vive mais rápido, e sítios em que se vive maiores, mas não estou certo de que haja sítios onde se viva mais intensamente. Numa década definida pelo regresso a casa, ao contrário de muitos outros da minha geração, de antes e depois, que não tiveram a mesma sorte ou a mesma oportunidade, este é o momento justo de reconhecer que provavelmente não poderia ter sido de outra maneira.

É provável que a ilha nos destine a todos à sua maneira, uns com a missão de ir, outros com a responsabilidade de ficar. É, decerto, impossível que alguém lhe fique indiferente e é garantidamente impossível qualificar com palavras a comunhão mística que existe entre um ilhéu e o mar e a rocha que o viram nascer. Esta terra corre-nos no sangue. Nascer ilhéu é, na sua própria acepção, cumprir uma profecia que transcende o tempo e o espaço, as partidas e as chegadas, a natureza e as pessoas, os encontros e as despedidas, o calor e a água, e todos os excessos e todas as provações, todos os vícios e todas as estações.

Não sei se um madeirense vive tanto porque um dia escolhemos ser assim, ou porque simplesmente já nascemos a ser assim. Desconfio que a forma como se vive nesta rocha olímpica e tropical é indissociável da ultra-periferia dos primeiros insulares, que nasceram nos limites do mundo conhecido, e de todo o gigantismo moral que é preciso para viver longe, numa ilha pequena, num mundo deste tamanho. Desconfio que no nosso próprio ADN já vêm marcadas as tempestades no mar, os ciclones no ar e as insolações em terra, e que por isso há demasiada energia cá dentro para ficar guardada, na ilha, como em cada um de nós. E é por isso que corremos tanto, festejamos tanto, excedemos tanto, vivemos tanto. Podia não ser assim?

Disse Tolentino Mendonça, numa entrevista no início da década, que "a ilha é um universo onírico. A dimensão da insularidade e a relação com os elementos é muito forte, é uma coisa da qual nunca mais nos livramos. A ilha não é o lugar do crescimento, mas sim da exposição radical ao mundo. A experiência da Madeira é, de facto, uma experiência de universalidade."

A Madeira estará sempre onde cada madeirense estiver. E haverá sítios em que se vive mais rápido, e sítios em que se vive melhores, mas não estou certo de que, ao fim de mais uma década, haja sítios onde o deslumbramento possa ser vertiginosamente maior do que isto.

Bom ano a todos, deste lado do mar.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Marriage Story: uma honestidade comovente


Parafraseando uma frase Cruyffiana, fazer cinema simples é a coisa mais difícil do mundo. Contar as relações mais básicas entre as pessoas, provavelmente também. Marriage Story é um filme simples, porque retrata-se de uma forma muito tangível e quase mundana, sem efeitos e sem ter de inventar quase nada; e é garantidamente um filme brutal, como consequência do seu próprio realismo.

O filme é uma das peças mais singulares da temporada, desde logo pela aparente arrogância e crueza da proposta. É um filme sem tempero, mesmo que perante uma digestão muito difícil, dando-se a isso com aquilo que parecia ser, à partida, uma certa sobranceria estilística. Confesso que tinha muitas reservas, porque fazer um filme destes aparentemente a frio, sem pára-quedas e sem fazer concessões a ninguém, normalmente rotunda, e sendo muito sincero, num testemunho pouco tragável. Não é comum resultar num filme notável, mas Marriage Story é isso mesmo: um filme, a todos os títulos, surpreendentemente notável, sem jamais ter falta de noção de si próprio ou perder-se na sua própria angústia.

O que impressiona mais, numa obra sobre perda e desencarnação plenas, é nunca ser demasiado fechado sobre si mesmo; pelo contrário, é a sua notável capacidade para falar connosco, para nos deixar todas as pistas humanamente assimiláveis pelo caminho, e garantir que, enquanto caía, fazia-o com uma empatia intocável para com o público. Marriage Story instiga-nos uma atenção, um cuidado e uma curiosidade permanentes, não de uma forma exploratória, mas antes, quase altruísta, é sempre cativante, e quase sempre impressionante, até na fidelidade para com as pequenas coisas, a partir de um argumento absolutamente invejável, daqueles que às vezes é preciso viver muitas vezes para sonhar escrever (cortesia todo-o-terreno de Noah Baumbach, que produziu, escreveu e realizou), e de um elenco absolutamente extraordinário, com um colosso chamado Adam Driver, definitivamente no topo do mundo, e com a melhor Scarlett de sempre, a parecerem ambos ali genuinamente insubstituíveis e na plena expressão de todas as suas capacidades, rematados, por fim, com um admirável leque de secundários, onde jamais poderia menosprezar o rescaldo de alma que foi rever Alan Alda.

Marriage Story tem o dom de nos fazer viver um processo extremamente doloroso de uma forma sempre razoável, justa e corajosa, e essa honestidade emocional, tantas vezes tão difícil, no ecrã e fora dele, sem melodramas, nem espectáculos, é justamente aquilo que nos arranca todo o respeito que lhe é devido. Porque podia ser connosco, porque se calhar já todos andamos naqueles mesmos lugares e já todos pisamos aqueles mesmos abismos da vida, e porque sobreviver à vida é, muitas vezes, o que nos faz seguir em frente. A vida não é cinematográfica, e o grande cinema tem a responsabilidade de ser mais como a vida, do que como a arte.

Mesmo no fundo, depois de tudo o resto já ter falhado, só há uma excepção que confirma a regra: Marriage Story é romântico até ao fim, mesmo se não puder ser feliz. Essa falência está-nos no sangue, essa esperança é o que nos salva mesmo se não houver salvação, e não somos ninguém para dizer que não é legítimo que assim seja. Era muito difícil fazer de algo feio e complicado, algo simples e honestamente justo, comovente e bonito. A carta final está lá para provar-nos que é sempre possível. É provavelmente a cena mais bonita do ano.

8/10

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

The Irishman: uma homenagem ao Cinema


Era ainda uma simples ideia e já não havia forma de nos tirar o sorriso da cara. Scorsese, De Niro, Pacino e um filme de gangsters saído das nossas memórias mais felizes, como se já todos o tivéssemos vivido em vários momentos e de muitas formas, ao longo dos anos. Uma equipa de sonho saída directamente da História da Arte, não por dinheiro, fama ou devaneio, nem sequer por eles, mas por reverência ao cinema e a tudo o que ele representa para todos os fiéis discípulos desta enorme viagem. Um filme que foi buscar o Pesci à reforma, minha nossa senhora. Mesmo se não fosse muito bom, The Irishman saberia provavelmente muito bem. Mesmo se não fosse o marco que é. Não pelo que tem de passado, mas pela sua intemporalidade para o presente e para o futuro.

The Irishman é um all in de Scorsese. Honra lhe seja feita, é mais um, na verdade. É uma antologia imensa e imensamente ambiciosa, quer na profundidade e na delicadeza da fórmula, quer na largura da narrativa, em que o velho Mestre arrisca tudo, porque ao fim de todos estes anos, essa continua a ser a sua única maneira de o fazer. Uma distribuidora normal provavelmente não lhe daria 3h30 de filme, porque não haveria tempo, mas The Irishman é exactamente a antítese da urgência dos dias em que vivemos: é um filme para esperar e para desfrutar, para afligir e para envelhecer connosco aos poucos, como as nossas histórias preferidas, as nossas maiores provações ou os nossos melhores amigos.

É essa a grande vitória de Scorsese: triunfar com um filme feito exactamente nos seus termos, mesmo numa plataforma inédita, mesmo num formato que nem sabíamos que gostávamos e com as suas velhas glórias, todos agora nos idos dos 70, mesmo sem sabermos se ainda podiam voltar a sê-lo. The Irishman é essa redescoberta permanente, é a restituição do mais puro deslumbramento e da elegância com que o cinema reinventou o último século, um épico de filigrana, como uma fotografia de pasmar, e tempo para conversar e para partilharmos tudo, o lusco-fusco e os gestos, as personalidades que não se substituem e as decisões difíceis que mais ninguém pode tomar. Um filme de Mestre, de um dos maiores de sempre, que volta a usar a mística e os mistérios da Máfia para falar dos nossos próprios vícios, das nossas falências e dos nossos destinos, e ainda assim, do código que nos distingue e do carácter que nos aproxima uns aos outros. Um trabalho fantástico que contou obviamente com a contribuição habitualmente impagável de um argumentista como Steven Zaillian.

The Irishman é um filme de alto quilate, que nos perturba e nos comove mesmo quando não nos apercebemos logo disso. Poder fazer esta viagem com a coragem e a alma do melhor De Niro, que se supera aqui com uma generosidade e uma humildade interpretativa até onde porventura nunca tinha ido, com a fúria e o génio do melhor Pacino, que será vertiginoso até morrer, e com o carisma e a classe do melhor Pesci, todos, por deus, já nomeados para os Globos de Ouro, é demasiado bom para ser verdade. O epílogo do filme deixa-nos com o coração pequenino e liberta-nos nas veias uma nostalgia difícil de controlar. Espero que The Irishman não seja a despedida de nenhum deles, muito menos desta forma de fazer cinema; mas em tudo o resto, é um monumental e arrepiante mausoléu de carreira para a melhor geração de sempre. De uma coisa podemos ter a certeza: se isto é uma homenagem, os homenageados somos nós.

8.5/10

sábado, 23 de novembro de 2019

Venha a nós o Vosso Reino


Final inacreditável, depois de uns meses inacreditáveis, com um impacto inacreditável, aquém e além mar. Este é um feito que vai levar o nome de Jesus mundo fora, mas é especialmente um feito com o condão de tornar um dos treinadores portugueses mais realmente notáveis, num homem um pouco mais unânime no seu próprio país. Como acontece muitas vezes em Portugal, é preciso que nos mostrem de fora o que as palas militantes não nos deixam ver cá dentro. O que aconteceu esta noite, com famílias e amigos de toda a parte a torcer genuinamente por um dos nossos lá longe, nos confins de uma final na América Latina, foi bonito de se ver e foi do tamanho dos verdadeiramente maiores, dos que chegam ao topo pelo seu próprio pulso e pelo seu próprio génio. Ninguém pode dizer que, depois de todas as partidas que o jogo já lhe pregou, não tenha sido do tamanho que ele merecia. Glória Jesus, por mais uma noite somos todos fiéis, somos todos desta religião chamada futebol.

sábado, 9 de novembro de 2019

LULA LIVRE


Qualquer dia com menos um preso político no mundo, é um dia de mundo um pouco mais encorajador. No caso do Lula, a coragem e o mundo são só muito maiores do que nós. Hoje é o início do fim de um assalto ao poder que nos deve assustar a todos, porque expôs a sangue frio a fragilidade e as perversões do sistema em que vivemos, o início do fim de um golpe palaciano contemporâneo, que nos ensina a jamais baixar a guarda, porque o tempo passa, mas a História volta sempre para nos assombrar, e a putrefacção do Brasil conservador, corrupto e saudosista voltou para engolir de volta um Estado de Direito inteiro. Aos fachos, as duas garantias de sempre: estavam certos, a democracia mete medo; estavam certos, mas não passarão. LULA LIVRE!

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Obra-prima.


Um Joaquin Phoenix de outro mundo, entre os melhores dos melhores da actualidade.

Uma narrativa genial, na ambição, nas referências e no risco, no carácter e na caracterização, e na insustentável e assustadora fragilidade da condição humana.

Uma estética de sonho, na direcção, na fotografia, nos compassos e na banda sonora.

Um filme sem rede e um pontapé no estômago. Mais do que heróis ou vilões, um filme de gente e do que às vezes sobra da gente nos farrapos da vida.

Obra-prima.

9/10

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

A alternativa ao medo

Foto: André Gonçalves

No próximo domingo, dia 22 de setembro de 2019, a Região Autónoma da Madeira poderá ter, pela primeira vez em 43 anos de Democracia, um Governo que não é governado pelo Partido Único.

Não sei se já toda a gente parou para pensar no tamanho deste abismo da História que tem à sua frente. No próximo fim-de-semana, daqui a menos de quatro dias, todos os madeirenses, pais e filhos, homens e mulheres, avós e netos, terão nas suas próprias mãos, num ato tão gloriosamente singelo como o do sufrágio universal, a oportunidade mais real da nossa vida para garantir, pela primeira vez, uma alternativa democrática no governo desta terra.

E o que raio é a democracia, se não a alternativa? Se não a ideia de que é legítima a governação de qualquer homem, venha ele de onde vier, desde que eleito em igualdade de circunstâncias? O que é a democracia se não a ideia de que nenhum poder absoluto é legítimo? Nenhum partido pode ficar no poder 43 anos seguidos como se isso fosse normal, razoável ou, sequer, remotamente são. Reiterar isto, por mais básico que seja, é tanto mais extraordinário se pensarmos que na Madeira nunca houve igualdade de circunstâncias, e por isso nunca houve alternativa: porque as pessoas, adormentadas, enganadas ou mesmo coagidas, aceitaram a ideia de que não podia haver.

Até hoje, a democracia no Governo Regional da Madeira é isso: é a premissa, que o PSD continua incrivelmente a defender até hoje, no ano 2019, de que não há, nem poderá nunca haver alternativa. A democracia na Madeira foram, por isso, 43 anos de poder absoluto sobre poder absoluto, de um enorme monstro que se alimentou a si próprio e sufocou tudo à sua volta, socorrido do mito das “eleições ganhas”, como se num casino a casa não ganhasse sempre. Qual é a legitimidade de tanta maioria absoluta do regime, quando sabemos que as eleições do PSD foram, historicamente, a vitória do nosso atraso sócio-cultural, a vitória do betão sobre a educação, a vitória do culto do chefe e do partido-Estado, a vitória dos empregos da máquina e das obras megalómanas para os amigos, a vitória da perseguição e da descredibilização de quem pensa diferente, a vitória do medo.

O mesmo medo que o PSD continua a instigar, 43 anos depois, com as mesmas fórmulas bafientas de qualquer cacique, as mesmas mentiras e o mesmo vale-tudo constante, a mesma insuportável e insuperável prepotência de uma casta que acha que é ungida por deus, e que segreda às pessoas que o inferno desce à terra se o PSD descer à terra, que a ilha afunda, o mar acaba, que vamos ser todos Cuba e a Venezuela, que vão todos perder o seu emprego, o seu salário, o seu tecto e o seu prato de comida, quando os socialistas, comunistas, bloquistas, esquerdistas, anarquistas chegarem ao poder para lhes devorarem as criancinhas. Porque não há alternativa ao saber, aos quadros e à experiência de um partido cujo único know-how em meio século foi investir na sua própria sobrevivência, à base do atraso humano e pensante dos madeirenses, porque um povo amarrado a não pensar pela própria cabeça, é um povo que nunca vai ser perigoso, porque um povo ameaçado, é um povo que não ameaça.

Isto não é uma piada, é a dialéctica do PSD Madeira, ou melhor, é uma piada que já nos custou muito caro e que hoje, mais do que nunca, nos devia envergonhar a todos. Este PSD é a carcaça que sobra de um regime falido e esgotado, que já não tem por onde fugir. Ouvir Albuquerque dizer que vai pavimentar florestas “quer queiram, quer não”, que vai fazer campos de golfe em promontórios, “quer queiram, quer não”, que as alterações climáticas não existem, enquanto se desmantelam leitos de ribeiras inteiras, já é só humilhante, como será quando ele disser que também quer construir um túnel até ao Porto Santo, a ver se é desta que tem uma overdose de betão, paga com dinheiro público, como de todas as outras vezes.

O Presidente do PSD é um homem doente, rodeado de demagogos febris, cegos e incendiários, que continuam a achar que o partido é uma entidade plenipotenciária qualquer, e resta o dó de constatar a forma como o PSD parou mesmo no tempo, vociferando cartilhas empoeiradas de qualquer ditadurazinha de algibeira, e deixando-se ficar, no limite da sua demência, a brigar contra os inimigos imaginários, ou a República, a ver se, ainda hoje, os iscos de pão, berros e circo são suficientes para enganar um povo humilde, que sucumbiu a tanta década de chantagem, porque esta é uma terra de vidas sofridas e difíceis o suficiente, para ainda ter de suportar tanto medo assim.

Mas 43 anos são muitos anos, até para ter medo.

Pode ter demorado 43 anos, mas a Democracia chega sempre a tempo e hoje, felizmente, há alternativa na Madeira.

E se há, é graças aos próprios madeirenses que, tal como em tantos outros momentos dos seus 600 anos de História, foram capazes de ultrapassar todas as suas espectaculares contingências, seja a rasgar pedra, o mar, ou os seus próprios fantasmas, até darem a volta por cima, e terem melhores condições de vida para si e para os seus, e terem, afinal, o direito a sonhar que é sempre possível ser um pouco melhor, por piores que sejam as nossas circunstâncias. Que é sempre legítimo viver com esperança no que pode ser o amanhã.

Não sei se já toda a gente parou para pensar no tamanho deste abismo da História que tem à sua frente. Mas hoje, 43 anos de Democracia em 600 anos de vida depois, a Madeira tem alternativa porque os madeirenses tiveram, como sempre, a coragem de fazer por isso. O PSD é a cruz que nos calhou um dia; mas o futuro é, definitivamente, fazer o que ainda não foi feito. O futuro não é chantagem, nem prepotência, não são as elites bacocas, nem as negociatas do regime, não é a emigração, nem a falta de educação, de saúde, nem de oportunidades, o futuro não é o medo; o futuro é a esperança de mudar para melhor, de ter uma governação humanista e progressista, educadora, moderna, inteligente e sustentável, de que nos possamos orgulhar aqui dentro e lá fora. O futuro é uma autonomia de resultados, uma insularidade de sonhos, uma ultraperiferia de ideias e de soluções e de globalização, com melhor qualidade de vida, e sanidade democrática de primeiro mundo. O futuro é a busca pelo que esta gente merece, toda a gente, cada um de vocês, e não o quinhão a que aqueles que se julgam donos da Madeira nos condenaram.

Em democracia, não há governos de partido único para a vida toda e é doloroso ainda ter de lembrar isso hoje. Mas se nunca tivemos coragem para fazer diferente, nem engenho, nem oportunidade, há quem tenha tido coragem por nós, e é por isso que agora temos a responsabilidade de retribuir, porque há momentos na vida em que temos a responsabilidade de estar à altura daquilo que gostávamos de ser. Este domingo, não se conformem, não se escondam, não se desculpem, não fraquejem, não falhem àquilo que sabem que está certo e que precisa de ser feito. O voto necessário não é num homem, nem sequer num partido, é um voto na vossa própria consciência. Um voto que prove que há sempre alternativa e há sempre esperança, que honre que mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não. Domingo é a vossa vez. É a vez de serem vocês a resistir. É a vez de serem vocês a mandar.

Se o Paulo não está preparado para governar a Madeira, nunca ninguém estará. Ele não teve medo. Agora é a nossa vez. A alternativa ao medo somos nós.

terça-feira, 11 de junho de 2019

Campeões


Há 15 ou 20 ou 40 anos havíamos de rir de quem dissesse que íamos andar a ganhar competições de selecções a cada três anos. Este é um final feliz de muita gente, mas acima do talento que nunca faltou, é o final do carácter que nunca tinha chegado. Além do melhor jogador português de todos os tempos, pelas óbvias razões, um obrigado de coração ao Fernando Santos. Pela fé, pela mentalidade e por essa enormidade que é ter acreditado, quando acreditar era difícil. "Não somos favoritos, mas vamos ganhar", disse ele há exactamente três anos no Parque dos Príncipes, antes do jogo mais importante da nossa vida. Havemos de viver para sempre nessas palavras. O Ronaldo mostrou-nos que é possível ser maior do que a vida, o Engenheiro mostrou-nos que é sempre possível ser maior do que as nossas circunstâncias. Já não somos gerações de talentos; somos uma geração de campeões.

terça-feira, 21 de maio de 2019

A jornada foi a recompensa


No fim de contas, talvez fosse impossível cumprir as expectativas.

Não era só uma das maiores séries da História; era Game of Thrones, e isso significa que já tínhamos visto tudo, menos impossíveis. Essa foi, porventura, a sua última perversão: falhar-nos justamente no adeus, onde havia de doer mais, quando estávamos preparados para qualquer surpresa, mas nunca para uma desilusão. Com a sua falência, GoT provou afinal, na última partida, também a sua humanidade, dando-nos não o fim com que sonhámos, mas a derradeira angústia entre o adeus ao que fomos, e acima de tudo, o adeus àquilo que talvez nunca voltaremos a ser.

Tínhamos demasiadas expectativas, e a última temporada lembrou-nos que Game of Thrones sempre foi, afinal, um exercício de perda para todos. E mesmo assim, nesta última hora, teríamos perdoado tudo, e voltado e recuperado tudo, e nem o pior argumento teria custado mais do que o adeus. Uma década são muitos anos, muitas vidas. A minha começou na Faculdade, incrédulo com o Pestana a ver os episódios segunda à tarde, com as cortinas da sala corridas nas Águas Férreas, como se aquilo fosse uma máquina do tempo ou o nosso próprio teletransporte. Estivemos lá. Aquela mística, as lições e as memórias vão connosco para sempre. Crescemos com aquelas personagens, ganhámos e perdemos, viajámos e lutámos, vivemos e morremos com aquelas personagens, e nenhum argumento me poderia tirar o nó no coração de me despedir de cada uma delas uma última vez naquela última hora.

A jornada foi a recompensa. O auge foi o que vivemos ao longo de tantos anos, arrebatados, esmagados, tantas vezes aterrados e sem palavras para dizer, ou para agradecer. Consolados com a dignidade das pequenas vitórias, deslumbrados com o rasgo das maiores derrotas, sem nunca sair do lugar. Uma série pode ser isto. Um lugar aonde vivemos dentro, um lugar que nos desafiou, impressionou e nos cumpriu plenamente. No fim, estivemos, afinal, longe do auge, como era suposto se pensarmos bem, o que só prova que as nossas memórias foram realmente boas demais para hoje serem verdade. O auge foi tudo o que vivemos desde que éramos pequenos em Winterfell. Ontem, às 3 da manhã, a cumprir aquela última humilde homenagem, era essa a imagem que não me saía dos olhos, todos juntos com crias de lobo ao colo no Norte profundo, como a imagem dos pais a olharem para os filhos, sempre pequenos em tamanho, e muito grandes em recordações. Game of Thrones será sempre do tamanho que nos lembrarmos deles. Foi tudo verdade, o privilégio foi tão enorme.

No fim de contas, talvez fosse impossível cumprir as expectativas para a despedida. Fico-lhes grato por, mesmo numa temporada em que se permitiram falhar, termos podido despedir-nos à altura no episódio que faltava. Talvez o que nunca esperei foi poder fazer o luto em paz.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

The North Remembers


A duas horas de ver em directo a estreia da última temporada, é inevitável pensar na década que passou e no que foi a construção do primeiro fenómeno televisivo verdadeiramente universal, porque vivido na mesma medida, por todos e ao mesmo tempo. Na antecâmara surreal do que foi esta despedida, de uma coisa podemos ter a certeza: Game of Thrones reinventou a forma de fazer televisão e a forma de contar histórias ao mundo. E derrubou todas as muralhas, seja no tempo, pela sua monumental longevidade, como se nunca pudesse parar de ser cada vez maior; seja na militância, pelo entusiasmo, o respeito e o unanimismo incomparáveis; seja no espaço, por ter-se tornado nesta experiência submersiva planetária difícil de descrever. Não sei como será daqui a pouco, mas sei que na História das Séries, haverá sempre um antes e um depois de Game of Thrones. Não sei se algum dia voltaremos a esperar anos a fio para poder ficar de pé noite dentro, a ver o fim de uma série em directo, durante dois meses. Mas espero que sim, que um dia possa voltar a Westeros e que voltemos todos a partilhar um património deste tamanho.

quarta-feira, 13 de março de 2019

Uma questão de fé


O mais difícil não será contar aos nossos filhos que vimos estas noites com os nossos próprios olhos, à mesa com os nossos melhores amigos e com a nossa mais honesta esperança; o mais insuperável será contar-lhes de todas as vezes em que nos vimos também no meio de desconhecidos, em bares que mais pareciam igrejas, numa romaria de almas que tinha a certeza de que ele ia mesmo fazê-lo.

Mesmo aos 34 anos, mesmo no enésimo desafio da vida a começar do zero, mesmo a depender de um hattrick à melhor defesa do mundo.

Há muito tempo que deixou de ser uma questão de militância, e passou a ser uma questão de fé. O mais difícil não será contar aos nossos filhos que o Ronaldo era maior do que um clube; o mais insuperável será contar-lhes que o Ronaldo acabou maior do que uma religião.

quinta-feira, 7 de março de 2019

Sonhos de carne e osso


Três semanas depois de um banho de realidade no Teatro dos Sonhos, o United foi a Paris provar que, na Champions, os melhores sonhos ainda não se compram; os melhores sonhos são escudos de carne e osso, que levaram muito tempo a construir.

quarta-feira, 6 de março de 2019

Era uma vez


Em sete dias, o Real perdeu três vezes seguidas em casa, foi eliminado de tudo e acabou a época na primeira semana de Março.

A obra magna de hoje, com a espectacular humilhação do tricampeão europeu por um punhado de miúdos, em pleno Bernabéu, pode ser registada tragicamente de muitos ângulos; o mais sintomático foi, porventura, ver o Navas e o Marcelo a assistirem àquilo do banco, onde também começou o Bale. Com o Ramos castigado, o Cristiano em Turim e o Zidane a viver dos rendimentos de uma das decisões mais felizes que tomou na vida, o Real de hoje foi uma imagem perigosamente fidedigna da falta de identidade e de respeito pelas suas próprias referências que o clube, no fundo, sempre se habituou a instigar, encegueirado pelo escudo monárquico e pela doentia projecção de omnipotência que tem de si próprio.

Os exemplos de destratamento são incontáveis, de Casillas a Raúl, de Ozil, trocado porque James tinha marcado um golo bonito no Mundial, a Di María, posto fora porque Bale era a maior estrela da Premier League, até à cara do Navas hoje, um tipo que ganha três Ligas dos Campeões seguidas e perde o lugar, porque o Courtois fica melhor na fotografia. A família madridista sempre foi isto: uma feira das vaidades e um casamento de conveniência, sempre disponível a descartar quem fosse preciso, a troco da próxima grande futilidade.

O Cristiano limitou-se, assim, como em quase tudo o que fez na vida, a antecipar-se aos comuns mortais e a fazer antes, o que lhe queriam fazer a ele. O Real tinha-o estrategicamente colocado na porta de saída, lembrando-lhe na imprensa que não há insubstituíveis, insinuando que a equipa só podia continuar a crescer às custas do velho e que jogava melhor sem ele, afiando cuidadosamente o punhal que haviam de lhe enfiar nas costas, quando chegasse a hora de culpar alguém pelo fracasso seguinte e de contratar a próxima sensação, naquele inevitável ritual de sacrifício tão tipicamente madridista, em que o haviam de esvaziar aos poucos, até ele deixar de fazer sombra à coroa.

É por isso que, este ano, dá tanto gozo constatar que o Real é que foi descartado, mesmo que o Real achasse, até há pouco tempo, que ia continuar a ganhar Champions até com os juvenis, porque o Real é ungido por deus e o clube é que faz os futebolistas. Não faz. O Real é o maior clube do mundo, mas isso não significa que não tenha vivido demasiados anos acima das suas possibilidades. Isso é que muitos nunca perceberam, ou não quiseram aceitar: que a última década só foi possível na nave espacial de um extraterrestre que aterrou em Madrid; e a nave foi embora, a última década acabou, e se calhar os extraterrestres também.

Talvez este "fim de uma era", como choram esta noite os espanhóis, ajude a colocar as coisas em perspectiva. Se calhar, afinal, "era" quase tudo um homem só.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

ÓSCARES 2019 - Previsão


2018/2019 passa à História como uma temporada em que não existiu um candidato claramente acima da média, nem um grupo de nomeados demasiado nivelado por cima. Com alguns projectos ambiciosos mas nem sempre bem executados a tempo inteiro, e com uma dicotomia latente entre cinema bastante comercial e cinema nada comercial, espero que estes Óscares sejam, pelo menos, uma boa oportunidade para fazer a distinção entre aqueles que mais se esforçaram por contagiar o público e obras verdadeiramente redundantes, que pareceram quase feitas pelos seus criadores para eles próprios.

Começo por assumir que não tenho um vencedor indiscutível para Melhor Filme, e acho que é pacífico dizer que não estamos na presença de clássicos intemporais, mas tenho a certeza que Bohemian Rapsody ou A Star is Born serão muito melhores vencedores do que Roma ou The Favourite, e isso é um bom ponto de partida para tudo o resto. Apesar de me ter entusiasmado mais com a proposta boémia dos Queen, tudo considerado, acredito que A Star is Born é provavelmente uma peça mais densa, não só por ser mais ambiciosa e arriscada (ainda que nem sempre bem definida no argumento), mas sobretudo pelo brilhantismo todo-o-terreno de um tipo que, para mim, é a figura do ano.


Bradley Cooper foi o melhor actor, na corrida de concorrência mais extrema e com toda a gente a um nível elevadíssimo, mas também foi o melhor realizador do ano, uma categoria ferida de morte pela desconsideração incompreensível de não terem chegado sequer a nomeá-lo, o que é, no mínimo, embaraçoso, como o próprio chegou a confessar. Cooper não ganhará provavelmente nenhum dos prémios, dada a unanimidade em torno de Rami Malek e do seu fantástico Freddie Mercury (fica em boas mãos), mas a credulidade e a construção da sua personagem, no maior projecto da sua carreira, foi individualmente o ponto alto da temporada, num filme que o próprio produziu, escreveu, dirigiu e protagonizou. A (difícil) vitória de A Star is Born como Melhor Filme seria a única forma de lhe restituir ao menos isso. Se o difícil for impossível, espero que Bohemian Rapsody esteja à altura de conter o exaustivo fenómeno onanista de Roma.


Sem Cooper na corrida a Melhor Realizador, ficaria genuinamente feliz se o prémio sorrisse a um de dois dark horses: Adam McKay (Vice) ou Spike Lee (BlacKkKlansman). O meu preferido seria o primeiro, porque Vice tem realmente uma das direcções mais entusiasmantes, e mais despresunçosas do ano, e porque é um filme com uma energia bestial, entretenimento sério, bem feito e inteligente, e um dos poucos nomeados que estaria disponível para rever fosse qual fosse a altura. Esta é, contudo, uma derrota certa e o Óscar está irremediavelmente perdido para Cuáron e a melhor propaganda do ano. Daí ser tão importante que essa não seja suficiente para varrer tudo o que vir à frente.


Se há categorias condenadas, há outras que são legítimos bastiões de esperança, e é esse o caso do grande Spike Lee, ele sim com uma hipótese real de ser justamente reconhecido com o Óscar de Melhor Argumento Adaptado pelo delicioso BlacKkKlansman, um dos projectos mais surpreendentes, refrescantes e descomplexados de um ano em que, porventura ao fim de muito tempo, se soube falar de racismo e segregação com o distanciamento e o engenho necessários para passar a mensagem. Neste capítulo, infelizmente, não fui a tempo de ver If Beale Street Could Talk, uma proposta interessantíssima do brilhante Barry Jenkins, que pode ser um dos vencedores da noite; mas vi Green Book, que partilha inteiramente desta excelente aura, que por mim, seria suficiente para entregar-lhe o Óscar de Melhor Argumento Original. Esse será um desfecho em aberto, mas não tão anunciado como a vitória do fenomenal Mahershala Ali na condição de Melhor Secundário. Jamais teria coragem de lhe reduzir o mérito (é uma vitória à True Detective, de um tipo especial), mas neste caso, tenho de voltar a apontar ao enorme alcance de A Star is Born: o melhor secundário do ano foi o impagável Sam Elliott, arrepiante em cena, e que merecia tudo menos chegar quase esquecido ao dia da cerimónia. Foi um dos tesouros interpretativos da temporada.


Finalmente, acabar com as senhoras. Se voto para que a extravagância e a futilidade de The Favourite seja contida em quase todo o lado, tenho de dar a palmatória às mulheres do elenco. Como Melhor Actriz, Olivia Colman parece correr por fora, perante o que fez Glenn Close em The Wife, que não vi; mas merece alimentar a dúvida até à hora do tudo ou nada, e definitivamente à frente de Lady Gaga, que se estreia muito bem, num muito bom projecto, mas a um nível nem sequer comparável; como Melhor Secundária, também não vi Regina King, que parece ser a candidata mais forte, mas mesmo com a presença de duas das minhas favoritas de sempre, Amy Adams e Emma Stone, seria justa a vitória da experiência e da consistência de Rachel Weisz.

Em suma, está tudo a postos para a maior noite do ano, mesmo que este seja um ano um tanto ou quanto esvaziado por escândalos mediáticos idiotas, como o facto de não haver anfitrião, depois da polémica lesa-majestade com Kevin Hart, que tornará tudo um pouco mais estranho. Resta combater pelo bom cinema, como sempre.

MELHORES DO ANO
Bohemian Rapsody, A Star is Born, Vice, BlacKkKlansman, Green Book

FILME
Ganha: Roma
Espero que ganhe: A Star is Born / Bohemian Rapsody

REALIZADOR
Ganha: Alfonso Cuarón (Roma)
Espero que ganhe: Adam McKay (Vice)

ACTOR
Ganha: Rami Malek (Bohemian Rhapsody)
Espero que ganhe: Bradley Cooper (A Star is Born)

ACTRIZ
Ganha: Glenn Close (The Wife)
Espero que ganhe: Olivia Colman (The Favourite)

SECUNDÁRIO
Ganha: Mahershala Ali (Green Book)
Espero que ganhe: Sam Elliott (A Star is Born)

SECUNDÁRIA
Ganha: Regina King (If Beale Street Could Talk)
Espero que ganhe: Rachel Weisz (The Favourite)

ARGUMENTO ORIGINAL
Ganha: First Reformed
Espero que ganhe: Green Book

ARGUMENTO ADAPTADO
Ganha: If Beale Street Could Talk
Espero que ganhe: BlacKkKlansman

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

The Favourite: a inelutável futilidade do ser


Desengane-se quem estava à espera de um filme clássico ou de ficção histórica particularmente formal, ou pelo menos, politicamente estruturada e glamourosa, ainda que o estatuto de recordista de nomeações aos Óscares pareça conferir-lhe um estatuto bem mais ortodoxo do que aquele que tem. The Favourite é o contrário e assume-se como uma das peças mais disformes e nebulosas da temporada, assente num devaneio muito próprio, de leitura particularmente peculiar. É uma peça histórica, na medida em que remete à Corte Inglesa do século XVIII, à guerra com a França e ao reinado de D. Ana, mas nem tanto, tal é a teia a que se entrega, abdicando de quaisquer objectivos mais ambiciosos, para centrar-se compulsivamente nas idiossincrasias das suas personagens, na pequena trama, nos pormenores dos pormenores, não no Estado, mas no Paço Real, não no Paço Real, mas no quarto da rainha enlouquecida, e assim sucessivamente, condenando a ação a uma inevitável irrelevância existencial.

A temporada 2019 trouxe-nos muitas maneiras diferentes de ver e fazer cinema, desde o musical de Star is Born e, sobretudo, de Bohemian Rapsody, à cinematografia de Roma ou à televisão de Vice. Desse ponto de vista, The Favourite é, sem dúvida, aquele que mais se aproxima de uma abordagem teatral, quer pelos modos excessivamente exagerados e dramatizados, quer pela troca da grande ação pelo palco mais pessoalizado, íntimo e trivial. A isso, não será estranho o passado ligado ao teatro do realizador grego Yorgos Lanthimos, que nunca esconde a sua inclinação burlesca na maneira extravagante como vai pintando uma história dominada por intrigas sussurradas, urgências corriqueiras e vontades mundanas. Isso não é suficiente, como se pode imaginar, para ter um filme extraordinário. The Favourite acaba por ser um filme profundamente redundante, na medida em que só ambicionou fazer propostas bastante fáceis de recusar.

A opção podia ter sido uma abordagem mais dura, ou mais trágica, ou mais violenta, ou ainda mais demente, podia-se ter progredido ou evoluído de alguma forma mas, em vez disso, o filme preferiu ser uma novela, um retrato boçal de poder e estatuto, sexo, ciúmes e traições, mas até nisso, sem ser demasiado contundente, mas o mais melodramático possível. The Favourite é, afinal, uma obra à qual escasseia propósito, sem muita razão de ser, porque aquilo que oferece é só um retrato grotesto, e de interpretação muito livre, de um período histórico não especialmente importante. É um exemplo completo de escolha da forma sobre o conteúdo, do qual se retém muito pouco ou nada para o futuro. Isto lesa o que vou dizer a seguir, mas o filme tem efectivamente algo acima da média: as mulheres do elenco. E uma, a espaços, brilhante: Olivia Colman.

A britânica, reconhecida mais recentemente pelo excelente The Night Manager, chega à maturidade da carreira como uma das estrelas da temporada e reclama a si todos os momentos verdadeiramente superiores do filme, parte dos quais até a solo, na condição de monarca perturbada, vulnerável, e até primária. É a minha favorita ao Óscar, o que é tanto mais sintomático, num filme que não faz assim tanto por ela. Mas Emma Stone e Rachel Weisz também estão bastante bem e compõem um ramalhete que tem nas interpretações o seu único grande ponto. Weisz, mais experiente e se calhar com os únicos laivos crus e consequentes do filme, na frente de Stone pelo Óscar, esta tão energética e voluntariosa como sempre mas, neste caso, se calhar a esforçar-se um pouco demais.

The Favourite não é mais do que um luxuoso fait-diver, num ano em que, globalmente, faltaram propostas mais coesas que permitissem premiar filmes inteiros, e não pequenas partes deles.

6/10

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Vice: back to basics


É sempre refrescante quando um grande filme resulta porque não precisou de inventar, não se deslumbrou nem afrouxou pelo caminho, e não sacrificou o conteúdo pela forma.

Às vezes, parece-me que há no cinema, na produção artística em geral e em muitos outros aspectos da nossa vida, uma necessidade quase sôfrega de fazer o que ainda não foi feito, e sair da caixa de tal modo, que é quase como se o único mérito de um trabalho fosse descobrir o Santo Graal sozinho. Tentar reinventar a roda é, como o próprio nome indica, uma fórmula normalmente destinado ao fracasso, e um bom criador de cinema não deve criar para si, deve criar para os outros, divertir-se a criar para os outros, conhecer a audiência e saber o que funciona. Podem-me dizer que fazer cinema simples é das coisas mais difíceis que existe e, nesse caso, serei obrigado a concordar. É por isso que, no fim de Vice, apetece dar um abraço ao Bale, ao elenco todo e ao Adam McKay por duas horas genuinamente bem passadas. Vice é um espectáculo, é o espectáculo da política e na performance, é um produto mundano, cheio de energia e parco em complexos, desavergonhado nas fórmulas e nos atalhos, provocador mas sempre cativante, inescrupuloso, mas sempre sedutor, bem feito e interessante.

É curioso que terá sido dos principais filmes em termos de buzz na pré-temporada, pelas olímpicas e intemporais deformações corporais desse mutante chamado Christian Bale, e pela proposta de abrir uma caixa de pandora chamada Governação Bush das entranhas para fora. No entanto, o filme foi-se desvanecendo numa receptividade tépida da crítica, normalmente muito avessa a estes vícios dos comuns mortais, ao ponto de as nomeações para os Óscares terem parecido quase um favor ou uma sorte. Nada mais injusto.

Vice concorre com Bohemian Rapsody para melhor entretenimento do ano, mas não no sentido folclórico do termo; é entretenimento de alto quilate porque é inteligente, é carismático, é bem escrito e bem realizado, é um filme que podia durar mais uma hora, porque teria sempre mais alguma coisa para contar e nós teríamos todo o gosto em ouvir. Trata-se de uma conceptualização verdadeiramente primorosa por parte de Adam McKay (vencedor de Óscar para Argumento Adaptado com o excelente The Big Short), no argumento e na realização, a fazer lembrar muitas vezes o estilo da dupla Sorkin-Schlamme nos tempos áureos de West Wing, walk-and-talk smart-and-funny, ao que não será alheio o passado de McKay na televisão, na direcção de argumento de Saturday Night Live.


É difícil fazer cinema fácil e esse é o pretexto perfeito para celebrar este autêntico banquete de ases pelos ares, que quase se chega a confundir a espaços com uma grande reportagem, tal a vertigem noticiosa, o grafismo, o maquiavelismo, as curiosidades, os segredos, a qualidade narrativa e, claro, a verdadeira passadeira vermelha de estrelas que invade a sala. Bale não é superlativo por ser Bale, nem por ter engordado 30kg outra vez, mas também. Porque isso se enquadra tão bem no excesso e na luxúria do filme, porque ele vai mais longe do que qualquer outro iria a vestir Dick Cheney, e porque isso, porventura, não estaria ao alcance de mais ninguém. Há actores que são como um velho e infalível seguro de confiança, e Christian Bale é um desses tipos irrecusáveis. Com ele, confirmamos até nos pequenos maneirismos, nas absurdas mudanças de dicção e no sorriso provocador de sempre, porque é que vale a pena ir.

Não é a performance individual do ano, nem a sua melhor de sempre, mas seria com toda a certeza para outros, o que acaba por dizer quase tudo da sua carreira. Steve Carell é, por seu lado, o secundário que qualquer um quereria ter e, apesar de prezar o Bush de Sam Rockwell, é bastante injusto que não tenha sido ele a selar a nomeação deste ano. O seu Donald Rumsfeld é quem lidera o resto de um elenco completíssimo e sempre capaz de fazer a diferença, com uma performance entusiástica, naquele seu truque de falar a verdade a mentir que lhe vai construindo a merecida reputação em Hollywood.

Em suma, Vice é muito mais do que o filme sobre a Governação Bush em que Christian Bale engordou até ao limite. É um filme vibrante, cru e inteiramente amoral, que, apesar dos seus temas, dos seus protagonistas e de todos os seus galões, comete a proeza de nunca ser presunçoso. Adam McKay quis fazer uma alegoria à sede de poder, o supremo onirismo de todos os homens, e escolheu uma grande história para fazê-lo. Mais perto da televisão que do cinema, não se perdeu com distracções desnecessárias e concretizou o que prometeu sem querer salvar ninguém, nem consolar a nossa própria inocência.

8/10

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Roma: um filme difícil de ver não é necessariamente bom, pelo contrário


Roma é, de forma relativamente adquirida, a sensação da temporada. Desde que surgiu no Verão do ano passado, na espuma dos festivais, seguiu-se um rastro tão estrelar de elogios, que se tornou impossível ignorá-lo. Dos camaradas de Alfonso Cuáron até à cena mais alternativa, jorraram vénias e choveram personalidades a clamá-lo como um dos maiores tesouros modernos, e num ápice, estava estendida uma passadeira vermelha àquele que, porventura, teria vindo a ser um pequeno projecto pessoal de um realizador afamado, com escala em festivais próprios e na corrida a Melhor Filme Estrangeiro. Nalguns meses, Roma tornou-se, contudo, no grande projecto de vida de Cuáron, que se desmultiplicou em entrevistas românticas sobre a tarefa abissal de fazer um filme semi-autobiográfico, falado em dialecto mexicano, a preto e branco, nos anos 70, numa mística que contou de bom grado com a extraordinária máquina de propaganda da Netflix, que acabou a distribuir a película, singular demais para entrar no grande circuito, resgatando à companhia o muito ambicionado bilhete dourado para chegar aos Óscares.

Roma é o filme mais difícil de ver do ano, ainda mais porque o destino ditou que o tivéssemos de ver assim, já condicionados. Se não tivesse sido o imenso hype e a entrada de rompante na temporada dos prémios, este era um filme que 90% do grande público nunca chegaria a ver. Chegando à semana dos Óscares com legítimas aspirações a levar estátuas para casa, depois da vitória de Cuáron nos Globos de Ouro e do próprio filme nos BAFTA, é de uma forma um tanto ou quanto castrada que nos sujeitamos a tentar estar à altura intelectual do projecto de estimação de um realizador famoso, mesmo que esse seja um raciocínio com tudo ao contrário. Procurei ver o filme sem preconceitos, nem num sentido, nem noutro, ou seja, sem hostilizar o frenesim artístico, mas igualmente sem disposição para digerir estatutos só porque sim. Acabou por ser fácil chegar a uma conclusão, porque ver cinema é fácil, gostar de cinema é fácil, e quando ao fim de 35 minutos estamos desesperados pela perspectiva de mais 100 minutos de coma, só mesmo com muita força de vontade é que se leva o passatempo de outros até ao fim.

Roma é o projecto querido de um bom realizador, que chegou a um momento da carreira em que se pode dar ao luxo de experimentar ainda mais do que era costume, e dar palco às suas próprias memórias de infância, falando da cultura, da história e da sociedade do próprio país, um exercício que tem o seu público e muito bem. Nunca fui enorme fã de Cuáron (com execpção para o brilhante Gravity), mas não discuto que há muito dele aqui no bom sentido estilístico, que faz com que Roma seja uma tela delicadamente pintada e bonita. Posso aceitar as nomeações para Melhor Realizador e Fotografia, como não me custa simpatizar com a performance de Yalitza Aparicio (já que Marina de Tavira também seja nomeada, não faz sentido nenhum). Mas Roma é uma história sem história, é estética pela estética, o que faz de si um filme perfeitamente deficitário no que verdadeiramente interessa e pouco há a fazer em relação a isso. Teria sido, talvez, uma excelente short story; como longa-metragem, é uma obra extenuante, mais ou menos deslumbrada consigo própria, com a sua fotografia e com o tempo infinito que tem, relativamente pretensiosa na forma como se sente superior a falar de intimidade e família como se nunca ninguém tivesse falado antes e muito melhor, um marasmo contemplativo de mais de duas horas sem nenhuma notícia relevante, um sacrifício como se estivéssemos a assistir na faculdade a uma aula de realização sem cinema para contar.

Um filme pode ter muitos méritos, muitas camadas, muitas leituras. Mas tem de ser coeso e acessível, tem de ter alicerces e saber o que nos quer contar. Não pode ser, apenas, uma colecção de grandes planos bonitos e de memórias vagamente comoventes, como se elas valessem por si só. Foi um erro fatal achar que o argumento é descartável, porque é ele que dialoga com o público, e que o conduz, desafia, seduz e converte. Vamos ver cinema, e cinema tem de nos arrebatar em vez de anestesiar, tem de nos projectar ali, compadecer, fazer reflectir e dar vontade de rever e de reviver aquela história. Por mais visualmente lírico que seja, se há coisa em que o filme falha é no vazio argumentativo, e na responsabilidade de chegar a toda a gente, convencido de que o facto de ser tão híbrido, caprichoso, peculiar e inacessível, é suficiente para ser especial. Não é.

5/10

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Hello darkness, my old friend


Suponho que nunca se esteja preparado para ver nascer uma das séries da década. Algumas podem ser muito antecipadas, mas carregam consigo o peso de corresponder às expectativas; outras vêm pela sombra, e são tanto mais impressionantes por causa disso. Quando há cinco anos atrás, no início de 2014, um argumentista relativamente desconhecido nos seus 30 tardios vendeu uma antologia de crime à HBO, poucos poderiam imaginar que essa se tornaria na série de estreia mais vista de sempre da marca, e num fenómeno de culto.

A 1ª temporada de True Detective continua a ser um exercício perfeitamente memorável do que é produção televisiva no topo da capacidade criativa, uma obra-prima monstruosa feita de ambição na narrativa, um estilo visual único, mística da história e interpretações fenomenais. Estou convencido até hoje de que, se o grande McConaughey ganhou o Óscar nesse ano, deve-o bem mais à série, do que ao Dallas Buyers Club. Para mim, a estreia de True Detective continua a ser o compêndio do que se pode sonhar ser em televisão, um exemplo, até despretensioso, de até onde é possível ir, desafiando-se a si próprio, à audiência e a cada episódio, sem dar nada por adquirido, sem medo de fazer novo e fazer diferente, sem jamais deixar de puxar a corda. É, obviamente, uma das melhores de sempre.


Por ironia, nunca vi a 2ª temporada (o que, numa antologia, significa uma história completamente diferente), que foi avassalada pelas críticas, porque pensei que não teria estrutura emocional para ver ruir à minha frente um património daquele tamanho. Como não sou dado a despedidas, nem a deixar-me ficar até à queda dos meus ídolos, foi uma decisão com a qual convivi bastante bem, porventura ao contrário de muitos outros, como o próprio Nic Pizzolatto, o criador, que se propôs, cinco anos depois, a algo ainda mais difícil do que fazer uma obra-prima. Fazer duas.

O certo é que voltamos sempre ao lugar onde nos cativaram, de uma forma ou de outra, e hoje, não me assusta o peso da responsabilidade de afirmar que, a duas semanas do fim da temporada, o 3º True Detective é como ver a Renascença a acontecer. É o regresso impossível àquela assinatura televisiva em estado latente, a uma embriaguez que não parecia possível voltarmos a encontrar, visualmente e ambientalmente e estilisticamente tão superior, que às vezes até custa a aceitar no tão bom que é.


A duas semanas do final da temporada, True Detective não é, outra vez, apenas a melhor da temporada, é a melhor em muito tempo e uma experiência sensorial absolutamente irresistível, como um livro que não conseguimos parar de ler, uma história que queremos adivinhar, um mistério que nos leva para dentro e que nos destina a tentar resolver o que nos for possível, prestando atenção aos detalhes, pensando como eles, conjurando sobre tudo o que está à nossa frente, ou não. No quarto escuro, noite dentro, também nós vamos naquela viagem no espaço e no tempo pela América profunda, consumidos por onde raio tivermos falhado, angustiados pela impotência, não perante o único puzzle que não conseguimos resolver, mas perante um que nos devorou de volta, de cada vez que o deixámos fugir por entre os dedos.

Pizzolatto provou que é possível inventar o mesmo golpe de génio duas vezes, porque o golpe de génio é, afinal, tantas vezes uma questão de estilo, e o estilo do labirinto que ele criou na nossa cabeça, é imbatível. Porque não há coincidências, este será também o ano da consagração de um dos actores mais superlativos do nosso tempo, Mahershala Ali, que provavelmente ganhará o seu segundo Óscar e, sem desprimor para Green Book, provavelmente pela sua melhor performance do ano, esta. Que qualidade. Que naturalidade a ser o herói num papel que lhe exigia tanto compromisso e tanto despojo. O forte das personagens, como do argumento, é esse realismo, é poder ser tudo modesta e moderadamente verdadeiro. E isso perturbar-nos tanto. A arte foi feita, afinal, para perturbar o nosso conforto e tudo aquilo que damos por adquirido, e o Detective Hays vem devagar, mas assusta-se. True Detective vem devagar, mas mete medo. E é uma sorte que assim seja. É uma sorte ter conseguido fazer isto outra vez.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

The Special One


11 jogos de estreia sem perder para o Solsjkaer, grandes vitórias internas e motivação impensável há dois meses, tanto que toda a gente lhe dava o favoritismo, frente aos novos-ricos sem o ataque de luxo. Mas o que deu foi banho e olés em Old Trafford. Um trambolhão na realidade para o United e uma demonstração de autoridade com violência de Paris. Deu também para ver o miúdo que, a cada jogo grande que passa, deixa de ser miúdo para ser o herdeiro dos dois maiores de sempre. É por isso que a Champions é o jogo mais especial, todos os jogos.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Somos nós


O Marítimo voltou a ganhar ontem, quatro meses depois, 17 jogos depois e muitos erros depois, contra uma equipa superior e mais bem preparada, a fazer uso de um bocadinho de sorte em cima de muito sacrifício, muitos nervos e muita falta de confiança, quis o destino que sem o nosso capitão, que se foi embora, e sem o nosso segundo treinador, que ontem não pôde estar no banco.

Foi uma vitória humilde e que saiu da pele, de uma equipa que já não sabia sair do inferno, uma vitória contra tudo, inclusive a própria sobranceria que nos trouxe até aqui, mas ainda mais do que isso, uma vitória de todos os que lá estiveram, de todos os que gritaram e sofreram onde quer que tenham estado, dos que dormiram aliviados, a pensar que uma parte da sua vida saiu dos cuidados intensivos, e de todos os que acordaram um pouco mais felizes por causa disso.

Hoje já me lembrei uma dúzia de vezes que ganhámos ao Portimonense e respiro fundo como no apito final. Haverá muitas contas a fazer a esta época onde a culpa não pode morrer solteira; mas é nos dias piores que se tem a certeza de que há sempre alguma coisa que é Maior do que as nossas frustrações, o nosso desalento ou aquilo que nos separa. E enquanto comungarmos todos desta imensa dignidade que só existe nas pequenas vitórias, feitas do testemunho e do empenho pessoal de cada um de nós, saberemos sempre o que somos e para onde devemos ir.

O Marítimo não é o projecto de poder de ninguém, o Marítimo somos nós, e vamos sobreviver a esta quase tragédia, não pela fé cega em nenhum grande líder, mas pela fé incondicional em cada homem e mulher que se senta e sofre connosco nas bancadas dos Barreiros a cada fim-de-semana, gente que nunca descarta responsabilidades e nunca se vai embora, gente que não tem nada a ganhar, mas com quem já ganhámos muito mais do que perdemos a vida toda.

Isso é o Marítimo. O meu pai, os meus amigos, os conhecidos e todos os desconhecidos com quem já tive a honra de partilhar trincheira, todos os que se estragam genuinamente, todos os que perguntam como correu porque gostavam que ganhássemos, todos os que ficam felizes por nossa causa. Isso é o Marítimo. E enquanto houver gente que saia dos Barreiros a sentir-se Campeã do Mundo porque ganhou ao Portimonense, pois há esperança.

Onde houver um Maritimista, pois há esperança, e haverá certamente esperança até ao fim desta época nua e crua, como no Bessa daqui a uma semana, ou como aquela que levarei comigo aos Açores logo a seguir, de coração cheio com a minha gente, para sermos Campeões do Mundo outra vez, ou pelo menos Campeões das Ilhas, como aprendi em pequenino num dia endiabrado, lá longe. Lá estaremos a dar a cara como sempre, a sofrer como sempre, mas a levar o Leão às costas até onde for preciso, a acreditar por nós e por todos, até ao fim do mar, até ao fim do mundo.

Haverá sempre quem queira levar o Marítimo; o Marítimo é que não vai a lado nenhum. Porque o Marítimo somos nós.