domingo, 24 de fevereiro de 2019

ÓSCARES 2019 - Previsão


2018/2019 passa à História como uma temporada em que não existiu um candidato claramente acima da média, nem um grupo de nomeados demasiado nivelado por cima. Com alguns projectos ambiciosos mas nem sempre bem executados a tempo inteiro, e com uma dicotomia latente entre cinema bastante comercial e cinema nada comercial, espero que estes Óscares sejam, pelo menos, uma boa oportunidade para fazer a distinção entre aqueles que mais se esforçaram por contagiar o público e obras verdadeiramente redundantes, que pareceram quase feitas pelos seus criadores para eles próprios.

Começo por assumir que não tenho um vencedor indiscutível para Melhor Filme, e acho que é pacífico dizer que não estamos na presença de clássicos intemporais, mas tenho a certeza que Bohemian Rapsody ou A Star is Born serão muito melhores vencedores do que Roma ou The Favourite, e isso é um bom ponto de partida para tudo o resto. Apesar de me ter entusiasmado mais com a proposta boémia dos Queen, tudo considerado, acredito que A Star is Born é provavelmente uma peça mais densa, não só por ser mais ambiciosa e arriscada (ainda que nem sempre bem definida no argumento), mas sobretudo pelo brilhantismo todo-o-terreno de um tipo que, para mim, é a figura do ano.


Bradley Cooper foi o melhor actor, na corrida de concorrência mais extrema e com toda a gente a um nível elevadíssimo, mas também foi o melhor realizador do ano, uma categoria ferida de morte pela desconsideração incompreensível de não terem chegado sequer a nomeá-lo, o que é, no mínimo, embaraçoso, como o próprio chegou a confessar. Cooper não ganhará provavelmente nenhum dos prémios, dada a unanimidade em torno de Rami Malek e do seu fantástico Freddie Mercury (fica em boas mãos), mas a credulidade e a construção da sua personagem, no maior projecto da sua carreira, foi individualmente o ponto alto da temporada, num filme que o próprio produziu, escreveu, dirigiu e protagonizou. A (difícil) vitória de A Star is Born como Melhor Filme seria a única forma de lhe restituir ao menos isso. Se o difícil for impossível, espero que Bohemian Rapsody esteja à altura de conter o exaustivo fenómeno onanista de Roma.


Sem Cooper na corrida a Melhor Realizador, ficaria genuinamente feliz se o prémio sorrisse a um de dois dark horses: Adam McKay (Vice) ou Spike Lee (BlacKkKlansman). O meu preferido seria o primeiro, porque Vice tem realmente uma das direcções mais entusiasmantes, e mais despresunçosas do ano, e porque é um filme com uma energia bestial, entretenimento sério, bem feito e inteligente, e um dos poucos nomeados que estaria disponível para rever fosse qual fosse a altura. Esta é, contudo, uma derrota certa e o Óscar está irremediavelmente perdido para Cuáron e a melhor propaganda do ano. Daí ser tão importante que essa não seja suficiente para varrer tudo o que vir à frente.


Se há categorias condenadas, há outras que são legítimos bastiões de esperança, e é esse o caso do grande Spike Lee, ele sim com uma hipótese real de ser justamente reconhecido com o Óscar de Melhor Argumento Adaptado pelo delicioso BlacKkKlansman, um dos projectos mais surpreendentes, refrescantes e descomplexados de um ano em que, porventura ao fim de muito tempo, se soube falar de racismo e segregação com o distanciamento e o engenho necessários para passar a mensagem. Neste capítulo, infelizmente, não fui a tempo de ver If Beale Street Could Talk, uma proposta interessantíssima do brilhante Barry Jenkins, que pode ser um dos vencedores da noite; mas vi Green Book, que partilha inteiramente desta excelente aura, que por mim, seria suficiente para entregar-lhe o Óscar de Melhor Argumento Original. Esse será um desfecho em aberto, mas não tão anunciado como a vitória do fenomenal Mahershala Ali na condição de Melhor Secundário. Jamais teria coragem de lhe reduzir o mérito (é uma vitória à True Detective, de um tipo especial), mas neste caso, tenho de voltar a apontar ao enorme alcance de A Star is Born: o melhor secundário do ano foi o impagável Sam Elliott, arrepiante em cena, e que merecia tudo menos chegar quase esquecido ao dia da cerimónia. Foi um dos tesouros interpretativos da temporada.


Finalmente, acabar com as senhoras. Se voto para que a extravagância e a futilidade de The Favourite seja contida em quase todo o lado, tenho de dar a palmatória às mulheres do elenco. Como Melhor Actriz, Olivia Colman parece correr por fora, perante o que fez Glenn Close em The Wife, que não vi; mas merece alimentar a dúvida até à hora do tudo ou nada, e definitivamente à frente de Lady Gaga, que se estreia muito bem, num muito bom projecto, mas a um nível nem sequer comparável; como Melhor Secundária, também não vi Regina King, que parece ser a candidata mais forte, mas mesmo com a presença de duas das minhas favoritas de sempre, Amy Adams e Emma Stone, seria justa a vitória da experiência e da consistência de Rachel Weisz.

Em suma, está tudo a postos para a maior noite do ano, mesmo que este seja um ano um tanto ou quanto esvaziado por escândalos mediáticos idiotas, como o facto de não haver anfitrião, depois da polémica lesa-majestade com Kevin Hart, que tornará tudo um pouco mais estranho. Resta combater pelo bom cinema, como sempre.

MELHORES DO ANO
Bohemian Rapsody, A Star is Born, Vice, BlacKkKlansman, Green Book

FILME
Ganha: Roma
Espero que ganhe: A Star is Born / Bohemian Rapsody

REALIZADOR
Ganha: Alfonso Cuarón (Roma)
Espero que ganhe: Adam McKay (Vice)

ACTOR
Ganha: Rami Malek (Bohemian Rhapsody)
Espero que ganhe: Bradley Cooper (A Star is Born)

ACTRIZ
Ganha: Glenn Close (The Wife)
Espero que ganhe: Olivia Colman (The Favourite)

SECUNDÁRIO
Ganha: Mahershala Ali (Green Book)
Espero que ganhe: Sam Elliott (A Star is Born)

SECUNDÁRIA
Ganha: Regina King (If Beale Street Could Talk)
Espero que ganhe: Rachel Weisz (The Favourite)

ARGUMENTO ORIGINAL
Ganha: First Reformed
Espero que ganhe: Green Book

ARGUMENTO ADAPTADO
Ganha: If Beale Street Could Talk
Espero que ganhe: BlacKkKlansman

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

The Favourite: a inelutável futilidade do ser


Desengane-se quem estava à espera de um filme clássico ou de ficção histórica particularmente formal, ou pelo menos, politicamente estruturada e glamourosa, ainda que o estatuto de recordista de nomeações aos Óscares pareça conferir-lhe um estatuto bem mais ortodoxo do que aquele que tem. The Favourite é o contrário e assume-se como uma das peças mais disformes e nebulosas da temporada, assente num devaneio muito próprio, de leitura particularmente peculiar. É uma peça histórica, na medida em que remete à Corte Inglesa do século XVIII, à guerra com a França e ao reinado de D. Ana, mas nem tanto, tal é a teia a que se entrega, abdicando de quaisquer objectivos mais ambiciosos, para centrar-se compulsivamente nas idiossincrasias das suas personagens, na pequena trama, nos pormenores dos pormenores, não no Estado, mas no Paço Real, não no Paço Real, mas no quarto da rainha enlouquecida, e assim sucessivamente, condenando a ação a uma inevitável irrelevância existencial.

A temporada 2019 trouxe-nos muitas maneiras diferentes de ver e fazer cinema, desde o musical de Star is Born e, sobretudo, de Bohemian Rapsody, à cinematografia de Roma ou à televisão de Vice. Desse ponto de vista, The Favourite é, sem dúvida, aquele que mais se aproxima de uma abordagem teatral, quer pelos modos excessivamente exagerados e dramatizados, quer pela troca da grande ação pelo palco mais pessoalizado, íntimo e trivial. A isso, não será estranho o passado ligado ao teatro do realizador grego Yorgos Lanthimos, que nunca esconde a sua inclinação burlesca na maneira extravagante como vai pintando uma história dominada por intrigas sussurradas, urgências corriqueiras e vontades mundanas. Isso não é suficiente, como se pode imaginar, para ter um filme extraordinário. The Favourite acaba por ser um filme profundamente redundante, na medida em que só ambicionou fazer propostas bastante fáceis de recusar.

A opção podia ter sido uma abordagem mais dura, ou mais trágica, ou mais violenta, ou ainda mais demente, podia-se ter progredido ou evoluído de alguma forma mas, em vez disso, o filme preferiu ser uma novela, um retrato boçal de poder e estatuto, sexo, ciúmes e traições, mas até nisso, sem ser demasiado contundente, mas o mais melodramático possível. The Favourite é, afinal, uma obra à qual escasseia propósito, sem muita razão de ser, porque aquilo que oferece é só um retrato grotesto, e de interpretação muito livre, de um período histórico não especialmente importante. É um exemplo completo de escolha da forma sobre o conteúdo, do qual se retém muito pouco ou nada para o futuro. Isto lesa o que vou dizer a seguir, mas o filme tem efectivamente algo acima da média: as mulheres do elenco. E uma, a espaços, brilhante: Olivia Colman.

A britânica, reconhecida mais recentemente pelo excelente The Night Manager, chega à maturidade da carreira como uma das estrelas da temporada e reclama a si todos os momentos verdadeiramente superiores do filme, parte dos quais até a solo, na condição de monarca perturbada, vulnerável, e até primária. É a minha favorita ao Óscar, o que é tanto mais sintomático, num filme que não faz assim tanto por ela. Mas Emma Stone e Rachel Weisz também estão bastante bem e compõem um ramalhete que tem nas interpretações o seu único grande ponto. Weisz, mais experiente e se calhar com os únicos laivos crus e consequentes do filme, na frente de Stone pelo Óscar, esta tão energética e voluntariosa como sempre mas, neste caso, se calhar a esforçar-se um pouco demais.

The Favourite não é mais do que um luxuoso fait-diver, num ano em que, globalmente, faltaram propostas mais coesas que permitissem premiar filmes inteiros, e não pequenas partes deles.

6/10

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Vice: back to basics


É sempre refrescante quando um grande filme resulta porque não precisou de inventar, não se deslumbrou nem afrouxou pelo caminho, e não sacrificou o conteúdo pela forma.

Às vezes, parece-me que há no cinema, na produção artística em geral e em muitos outros aspectos da nossa vida, uma necessidade quase sôfrega de fazer o que ainda não foi feito, e sair da caixa de tal modo, que é quase como se o único mérito de um trabalho fosse descobrir o Santo Graal sozinho. Tentar reinventar a roda é, como o próprio nome indica, uma fórmula normalmente destinado ao fracasso, e um bom criador de cinema não deve criar para si, deve criar para os outros, divertir-se a criar para os outros, conhecer a audiência e saber o que funciona. Podem-me dizer que fazer cinema simples é das coisas mais difíceis que existe e, nesse caso, serei obrigado a concordar. É por isso que, no fim de Vice, apetece dar um abraço ao Bale, ao elenco todo e ao Adam McKay por duas horas genuinamente bem passadas. Vice é um espectáculo, é o espectáculo da política e na performance, é um produto mundano, cheio de energia e parco em complexos, desavergonhado nas fórmulas e nos atalhos, provocador mas sempre cativante, inescrupuloso, mas sempre sedutor, bem feito e interessante.

É curioso que terá sido dos principais filmes em termos de buzz na pré-temporada, pelas olímpicas e intemporais deformações corporais desse mutante chamado Christian Bale, e pela proposta de abrir uma caixa de pandora chamada Governação Bush das entranhas para fora. No entanto, o filme foi-se desvanecendo numa receptividade tépida da crítica, normalmente muito avessa a estes vícios dos comuns mortais, ao ponto de as nomeações para os Óscares terem parecido quase um favor ou uma sorte. Nada mais injusto.

Vice concorre com Bohemian Rapsody para melhor entretenimento do ano, mas não no sentido folclórico do termo; é entretenimento de alto quilate porque é inteligente, é carismático, é bem escrito e bem realizado, é um filme que podia durar mais uma hora, porque teria sempre mais alguma coisa para contar e nós teríamos todo o gosto em ouvir. Trata-se de uma conceptualização verdadeiramente primorosa por parte de Adam McKay (vencedor de Óscar para Argumento Adaptado com o excelente The Big Short), no argumento e na realização, a fazer lembrar muitas vezes o estilo da dupla Sorkin-Schlamme nos tempos áureos de West Wing, walk-and-talk smart-and-funny, ao que não será alheio o passado de McKay na televisão, na direcção de argumento de Saturday Night Live.


É difícil fazer cinema fácil e esse é o pretexto perfeito para celebrar este autêntico banquete de ases pelos ares, que quase se chega a confundir a espaços com uma grande reportagem, tal a vertigem noticiosa, o grafismo, o maquiavelismo, as curiosidades, os segredos, a qualidade narrativa e, claro, a verdadeira passadeira vermelha de estrelas que invade a sala. Bale não é superlativo por ser Bale, nem por ter engordado 30kg outra vez, mas também. Porque isso se enquadra tão bem no excesso e na luxúria do filme, porque ele vai mais longe do que qualquer outro iria a vestir Dick Cheney, e porque isso, porventura, não estaria ao alcance de mais ninguém. Há actores que são como um velho e infalível seguro de confiança, e Christian Bale é um desses tipos irrecusáveis. Com ele, confirmamos até nos pequenos maneirismos, nas absurdas mudanças de dicção e no sorriso provocador de sempre, porque é que vale a pena ir.

Não é a performance individual do ano, nem a sua melhor de sempre, mas seria com toda a certeza para outros, o que acaba por dizer quase tudo da sua carreira. Steve Carell é, por seu lado, o secundário que qualquer um quereria ter e, apesar de prezar o Bush de Sam Rockwell, é bastante injusto que não tenha sido ele a selar a nomeação deste ano. O seu Donald Rumsfeld é quem lidera o resto de um elenco completíssimo e sempre capaz de fazer a diferença, com uma performance entusiástica, naquele seu truque de falar a verdade a mentir que lhe vai construindo a merecida reputação em Hollywood.

Em suma, Vice é muito mais do que o filme sobre a Governação Bush em que Christian Bale engordou até ao limite. É um filme vibrante, cru e inteiramente amoral, que, apesar dos seus temas, dos seus protagonistas e de todos os seus galões, comete a proeza de nunca ser presunçoso. Adam McKay quis fazer uma alegoria à sede de poder, o supremo onirismo de todos os homens, e escolheu uma grande história para fazê-lo. Mais perto da televisão que do cinema, não se perdeu com distracções desnecessárias e concretizou o que prometeu sem querer salvar ninguém, nem consolar a nossa própria inocência.

8/10

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Roma: um filme difícil de ver não é necessariamente bom, pelo contrário


Roma é, de forma relativamente adquirida, a sensação da temporada. Desde que surgiu no Verão do ano passado, na espuma dos festivais, seguiu-se um rastro tão estrelar de elogios, que se tornou impossível ignorá-lo. Dos camaradas de Alfonso Cuáron até à cena mais alternativa, jorraram vénias e choveram personalidades a clamá-lo como um dos maiores tesouros modernos, e num ápice, estava estendida uma passadeira vermelha àquele que, porventura, teria vindo a ser um pequeno projecto pessoal de um realizador afamado, com escala em festivais próprios e na corrida a Melhor Filme Estrangeiro. Nalguns meses, Roma tornou-se, contudo, no grande projecto de vida de Cuáron, que se desmultiplicou em entrevistas românticas sobre a tarefa abissal de fazer um filme semi-autobiográfico, falado em dialecto mexicano, a preto e branco, nos anos 70, numa mística que contou de bom grado com a extraordinária máquina de propaganda da Netflix, que acabou a distribuir a película, singular demais para entrar no grande circuito, resgatando à companhia o muito ambicionado bilhete dourado para chegar aos Óscares.

Roma é o filme mais difícil de ver do ano, ainda mais porque o destino ditou que o tivéssemos de ver assim, já condicionados. Se não tivesse sido o imenso hype e a entrada de rompante na temporada dos prémios, este era um filme que 90% do grande público nunca chegaria a ver. Chegando à semana dos Óscares com legítimas aspirações a levar estátuas para casa, depois da vitória de Cuáron nos Globos de Ouro e do próprio filme nos BAFTA, é de uma forma um tanto ou quanto castrada que nos sujeitamos a tentar estar à altura intelectual do projecto de estimação de um realizador famoso, mesmo que esse seja um raciocínio com tudo ao contrário. Procurei ver o filme sem preconceitos, nem num sentido, nem noutro, ou seja, sem hostilizar o frenesim artístico, mas igualmente sem disposição para digerir estatutos só porque sim. Acabou por ser fácil chegar a uma conclusão, porque ver cinema é fácil, gostar de cinema é fácil, e quando ao fim de 35 minutos estamos desesperados pela perspectiva de mais 100 minutos de coma, só mesmo com muita força de vontade é que se leva o passatempo de outros até ao fim.

Roma é o projecto querido de um bom realizador, que chegou a um momento da carreira em que se pode dar ao luxo de experimentar ainda mais do que era costume, e dar palco às suas próprias memórias de infância, falando da cultura, da história e da sociedade do próprio país, um exercício que tem o seu público e muito bem. Nunca fui enorme fã de Cuáron (com execpção para o brilhante Gravity), mas não discuto que há muito dele aqui no bom sentido estilístico, que faz com que Roma seja uma tela delicadamente pintada e bonita. Posso aceitar as nomeações para Melhor Realizador e Fotografia, como não me custa simpatizar com a performance de Yalitza Aparicio (já que Marina de Tavira também seja nomeada, não faz sentido nenhum). Mas Roma é uma história sem história, é estética pela estética, o que faz de si um filme perfeitamente deficitário no que verdadeiramente interessa e pouco há a fazer em relação a isso. Teria sido, talvez, uma excelente short story; como longa-metragem, é uma obra extenuante, mais ou menos deslumbrada consigo própria, com a sua fotografia e com o tempo infinito que tem, relativamente pretensiosa na forma como se sente superior a falar de intimidade e família como se nunca ninguém tivesse falado antes e muito melhor, um marasmo contemplativo de mais de duas horas sem nenhuma notícia relevante, um sacrifício como se estivéssemos a assistir na faculdade a uma aula de realização sem cinema para contar.

Um filme pode ter muitos méritos, muitas camadas, muitas leituras. Mas tem de ser coeso e acessível, tem de ter alicerces e saber o que nos quer contar. Não pode ser, apenas, uma colecção de grandes planos bonitos e de memórias vagamente comoventes, como se elas valessem por si só. Foi um erro fatal achar que o argumento é descartável, porque é ele que dialoga com o público, e que o conduz, desafia, seduz e converte. Vamos ver cinema, e cinema tem de nos arrebatar em vez de anestesiar, tem de nos projectar ali, compadecer, fazer reflectir e dar vontade de rever e de reviver aquela história. Por mais visualmente lírico que seja, se há coisa em que o filme falha é no vazio argumentativo, e na responsabilidade de chegar a toda a gente, convencido de que o facto de ser tão híbrido, caprichoso, peculiar e inacessível, é suficiente para ser especial. Não é.

5/10

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Hello darkness, my old friend


Suponho que nunca se esteja preparado para ver nascer uma das séries da década. Algumas podem ser muito antecipadas, mas carregam consigo o peso de corresponder às expectativas; outras vêm pela sombra, e são tanto mais impressionantes por causa disso. Quando há cinco anos atrás, no início de 2014, um argumentista relativamente desconhecido nos seus 30 tardios vendeu uma antologia de crime à HBO, poucos poderiam imaginar que essa se tornaria na série de estreia mais vista de sempre da marca, e num fenómeno de culto.

A 1ª temporada de True Detective continua a ser um exercício perfeitamente memorável do que é produção televisiva no topo da capacidade criativa, uma obra-prima monstruosa feita de ambição na narrativa, um estilo visual único, mística da história e interpretações fenomenais. Estou convencido até hoje de que, se o grande McConaughey ganhou o Óscar nesse ano, deve-o bem mais à série, do que ao Dallas Buyers Club. Para mim, a estreia de True Detective continua a ser o compêndio do que se pode sonhar ser em televisão, um exemplo, até despretensioso, de até onde é possível ir, desafiando-se a si próprio, à audiência e a cada episódio, sem dar nada por adquirido, sem medo de fazer novo e fazer diferente, sem jamais deixar de puxar a corda. É, obviamente, uma das melhores de sempre.


Por ironia, nunca vi a 2ª temporada (o que, numa antologia, significa uma história completamente diferente), que foi avassalada pelas críticas, porque pensei que não teria estrutura emocional para ver ruir à minha frente um património daquele tamanho. Como não sou dado a despedidas, nem a deixar-me ficar até à queda dos meus ídolos, foi uma decisão com a qual convivi bastante bem, porventura ao contrário de muitos outros, como o próprio Nic Pizzolatto, o criador, que se propôs, cinco anos depois, a algo ainda mais difícil do que fazer uma obra-prima. Fazer duas.

O certo é que voltamos sempre ao lugar onde nos cativaram, de uma forma ou de outra, e hoje, não me assusta o peso da responsabilidade de afirmar que, a duas semanas do fim da temporada, o 3º True Detective é como ver a Renascença a acontecer. É o regresso impossível àquela assinatura televisiva em estado latente, a uma embriaguez que não parecia possível voltarmos a encontrar, visualmente e ambientalmente e estilisticamente tão superior, que às vezes até custa a aceitar no tão bom que é.


A duas semanas do final da temporada, True Detective não é, outra vez, apenas a melhor da temporada, é a melhor em muito tempo e uma experiência sensorial absolutamente irresistível, como um livro que não conseguimos parar de ler, uma história que queremos adivinhar, um mistério que nos leva para dentro e que nos destina a tentar resolver o que nos for possível, prestando atenção aos detalhes, pensando como eles, conjurando sobre tudo o que está à nossa frente, ou não. No quarto escuro, noite dentro, também nós vamos naquela viagem no espaço e no tempo pela América profunda, consumidos por onde raio tivermos falhado, angustiados pela impotência, não perante o único puzzle que não conseguimos resolver, mas perante um que nos devorou de volta, de cada vez que o deixámos fugir por entre os dedos.

Pizzolatto provou que é possível inventar o mesmo golpe de génio duas vezes, porque o golpe de génio é, afinal, tantas vezes uma questão de estilo, e o estilo do labirinto que ele criou na nossa cabeça, é imbatível. Porque não há coincidências, este será também o ano da consagração de um dos actores mais superlativos do nosso tempo, Mahershala Ali, que provavelmente ganhará o seu segundo Óscar e, sem desprimor para Green Book, provavelmente pela sua melhor performance do ano, esta. Que qualidade. Que naturalidade a ser o herói num papel que lhe exigia tanto compromisso e tanto despojo. O forte das personagens, como do argumento, é esse realismo, é poder ser tudo modesta e moderadamente verdadeiro. E isso perturbar-nos tanto. A arte foi feita, afinal, para perturbar o nosso conforto e tudo aquilo que damos por adquirido, e o Detective Hays vem devagar, mas assusta-se. True Detective vem devagar, mas mete medo. E é uma sorte que assim seja. É uma sorte ter conseguido fazer isto outra vez.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

The Special One


11 jogos de estreia sem perder para o Solsjkaer, grandes vitórias internas e motivação impensável há dois meses, tanto que toda a gente lhe dava o favoritismo, frente aos novos-ricos sem o ataque de luxo. Mas o que deu foi banho e olés em Old Trafford. Um trambolhão na realidade para o United e uma demonstração de autoridade com violência de Paris. Deu também para ver o miúdo que, a cada jogo grande que passa, deixa de ser miúdo para ser o herdeiro dos dois maiores de sempre. É por isso que a Champions é o jogo mais especial, todos os jogos.