Nunca vi o Marítimo descer. Espero sinceramente que não seja preciso descer de divisão para que se mude o que é preciso mudar.
Escrevi há três meses que, pela terceira época consecutiva, íamos jogar para não descer e, pela terceira época consecutiva, não vamos apenas vaguear no ocaso humilhante da segunda metade da tabela; vamos literalmente jogar pela vida enquanto ela sobrar, com o estádio vazio, sem rumo e com o peso da inevitabilidade às costas, maior a cada ano que passa. O povo diz que tantas vezes vai o cântaro à fonte, que um dia já não volta, e esta vertigem de morte que se apoderou do clube começa a ser demasiado abissal para nos tentarmos convencer do contrário. No fundo, é apenas lógica: não nos podemos colocar sempre numa situação-limite, e achar que vai sempre haver um milagre; não podemos fazer sempre a mesma coisa, e esperar resultados diferentes. Nos últimos 20 anos, desceram de divisão o Guimarães, o Boavista, o Setúbal, a Académica, o Belenenses e o Nacional, e na verdade, é óbvio que já nos podia ter acontecido nas últimas duas épocas, que pode acontecer este ano, e que acontecerá inevitavelmente em breve, se continuarmos assim.
Às vezes, gostava simplesmente de acreditar que o problema é a bola que vai ao VAR e entra, e a bola que vai ao VAR e sai. Que o futebol é só o universo a jogar aos dados, que uns dias se ganha e uns dias se perde, que o jogo é sorte e azar, e que no fim vai correr tudo bem. É que pelo Marítimo, já sofri a vida toda. Costumo dizer que ser adepto do Marítimo nos prepara para quase tudo, porque, tal como na vida, há menos finais felizes do que dos outros. Ser do Marítimo dá-nos estofo para lidar com o desterro das maiores derrotas, e dá-nos carácter para ficar felizes com a beleza das pequenas vitórias, e aprendemos todos a viver com isso, mesmo com as prioridades que se sacrificam pelo caminho, seja tempo com quem gostamos, seja qualidade de vida a fazer algo mais saudável. Seja como for, ser do Marítimo é o maior orgulho da minha vida. Vou ser do Marítimo até morrer, aconteça o que acontecer, e até ao fim do mundo, onde quer que estejamos. Portanto, o problema não é sofrer; é a absoluta falta de razões para continuar a sofrer assim.
Este ano, é mais real do que nunca a possibilidade do Marítimo descer, e perturba-me que tenha sido preciso chegar a isto, quando os sinais foram tantos e tão evidentes. E perturba-me ainda mais que, se calhar, nem esta situação seja suficiente para que toda a gente perceba a necessidade de mudar. Este ano, é mais real do que nunca a possibilidade do Marítimo descer, e não é porque estes jogadores surpreendentemente estão em sub-rendimento ou não correm em campo; não é porque este treinador, ou o anterior, surpreendentemente não conseguiram dar conta do recado; na verdade, não há nada de surpreendente, ou sequer de misterioso, sobre o estado atual do Marítimo. Surpreendente é não ter acontecido nada ainda mais grave, ainda mais cedo.
O atual projecto desportivo do Marítimo falhou, porque já não há projecto nenhum há muito tempo. Quando o atual Presidente entrou em funções, era preciso salvar as contas do clube. Depois, a prioridade foram as infraestruturas. Na verdade, e não querendo ser ingrato, o futebol foi sempre um projecto desportivo adiado no Marítimo. Normalmente, a sobrevivência não é um assunto linear, pelo que me parece que todo o maritimismo aceitou que tínhamos de saber esperar. Não sei, na verdade, se haverá outra base associativa tão significativa como a nossa, e tão extraordinariamente paciente. No último quarto de século, tivemos consolidação financeira, consolidação estrutural e alguns bons resultados, mas sobrevivemos sobretudo à conta de migalhas desportivas, enquanto vimos, por exemplo, o Braga tornar-se no quarto grande, o Guimarães ganhar uma taça, o Paços de Ferreira chegar à Liga dos Campeões e o Nacional fazer dois quartos lugares.
A tudo subsistimos, firmemente agarrados à convicção de que a vida é difícil, e de que talvez um dia chegasse a nossa vez, mesmo que as prioridades dissessem sempre o contrário, ao vender urgentemente os melhores jogadores, contratar futebolistas às centenas e sem critério, na esperança de lucrar com a economia de escala, como noutra empresa qualquer, e rodar perfis de treinadores de forma completamente aleatória, como se alta competição fosse a roleta russa. O problema do Marítimo não é evidentemente a bola que bate no poste e sai, nem o facto de 99% dos profissionais que cá chegam não cumprirem as "expectativas", porque se calhar temos azar; o problema do Marítimo é que quem tem a responsabilidade de decidir, há muito descarnou o clube, porque é mais fácil e mais rentável gerir uma empresa de retalho, onde só interessa cumprir os mínimos, não dar prejuízo e sobreviver. O problema do Marítimo é que estamos fartos de sobreviver, porque sobreviver não é vida para ninguém.
A este Marítimo falta quase tudo. Falta visão, ambição, projecto e identidade. Falta brio, coerência, humildade e a mais elementar noção para reconhecer que aquilo que temos vivido, não é nada num clube de futebol, e que é preciso mudar e saber porquê. Como se isso não bastasse, falta até o discernimento para saber dar o valor ao mérito, quando ele é mais evidente. De vez em quando acontecem-nos fenómenos como o Daniel Ramos, um homem sozinho que fingiu que era um projecto desportivo, e que inventou dois anos de esperança. Fizemos 97 pontos nessas duas épocas, as últimas duas em que lutámos pela Europa. Chegámos lá uma vez, e ficámos mais de um ano sem perder em casa. O Presidente despediu-o, porque não podia ser o treinador a mandar no futebol do Marítimo. Desde a saída do Daniel, tivemos 6 treinadores e, em duas épocas e meia, 6 treinadores conseguiram fazer menos pontos juntos do que ele sozinho. É este o cúmulo em que vive o Marítimo há muito tempo.
Ao fim de 35 anos, o abismo da descida está iminente, e este é o derradeiro momento para lembrar que nunca ninguém esteve, nem nunca ninguém estará acima do Club Sport Marítimo. Há, por isso, duas coisas que para mim são fundamentais neste momento. A primeira é reconhecer que a equipa precisa de todos nós mais do que nunca, porque esta será uma luta brutalmente dura até final da época, com tudo em jogo. Espero que ninguém se afaste do Marítimo nesta altura porque não se revê na liderança, porque isto não é sobre nós, é sobre algo maior do que nós. Hoje e sempre, mas especialmente até ao final da época, não podemos desistir do Marítimo, e o clube só passará por isto se ninguém ficar indiferente.
Finda esta época, e aconteça o que acontecer, a atual Direção não tem condições para continuar. O que espero de quem está no poder há 25 anos, perante este momento determinante, não é negação, absolutismo e amargura, não é dizer que quem assina manda, nem chamar a polícia para intimidar adeptos, muito menos intitular-se donos da História e alimentar a narrativa de que não existem alternativas. Neste momento, o que não existe no Marítimo é futuro. Se quem está no poder ainda quer honrar o que de bom ficou para trás, só lhe resta não ser um obstáculo, mas uma solução, pelo bem do clube.
O Club Sport Marítimo é demasiado grande para não ter alternativas. Esta era do Marítimo acabou e será a História a julgá-la. Agora é preciso dar lugar a outros, é preciso fazer uma transição responsável, e fazer a ponte entre o passado e o futuro. Acredito que o destino do Marítimo depende de todos, inclusive dos que ainda lá estão a mandar, e que a atual Direção deve ter um papel importante a desempenhar, dignificando o próximo capítulo na vida do clube. Tem é de perceber imediatamente, com seriedade e compostura, que uma coisa é chegar ao fim da linha, e outra é levar o clube consigo.
Quando a História julgar este quarto de século, começará pelo fim. Quem ainda não o percebeu, vai percebê-lo mais cedo ou mais tarde. Os jogadores, os treinadores, os presidentes e até os adeptos passam, mas o Marítimo fica. Só o Marítimo é que nunca acaba. Não sei se teremos de começar do zero, mas eu ainda gostava de ser o Marítimo das grandes campanhas, o Marítimo da alegria, da pureza e da mobilização popular única, o Marítimo da altivez, da ambição e dos sonhos da nossa gente, o Maior das Ilhas, a bandeira da Madeira atlântica e ultraperiférica pelo país e pelo mundo, o Marítimo temido, o Marítimo do dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio, como o fizemos tantas vezes ao longo destes 111 anos.
Eu ainda gostava de ser o Marítimo que o meu pai viu por entre a multidão no tartan dos Barreiros e para o qual não havia limites, só infinitas possibilidades. O Marítimo que se fez grande na Liga, ou o primeiro Marítimo que foi à Europa e ao Jamor. Está na hora de sermos o Marítimo que esta geração nunca foi. Está na hora.