terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Marriage Story: uma honestidade comovente


Parafraseando uma frase Cruyffiana, fazer cinema simples é a coisa mais difícil do mundo. Contar as relações mais básicas entre as pessoas, provavelmente também. Marriage Story é um filme simples, porque retrata-se de uma forma muito tangível e quase mundana, sem efeitos e sem ter de inventar quase nada; e é garantidamente um filme brutal, como consequência do seu próprio realismo.

O filme é uma das peças mais singulares da temporada, desde logo pela aparente arrogância e crueza da proposta. É um filme sem tempero, mesmo que perante uma digestão muito difícil, dando-se a isso com aquilo que parecia ser, à partida, uma certa sobranceria estilística. Confesso que tinha muitas reservas, porque fazer um filme destes aparentemente a frio, sem pára-quedas e sem fazer concessões a ninguém, normalmente rotunda, e sendo muito sincero, num testemunho pouco tragável. Não é comum resultar num filme notável, mas Marriage Story é isso mesmo: um filme, a todos os títulos, surpreendentemente notável, sem jamais ter falta de noção de si próprio ou perder-se na sua própria angústia.

O que impressiona mais, numa obra sobre perda e desencarnação plenas, é nunca ser demasiado fechado sobre si mesmo; pelo contrário, é a sua notável capacidade para falar connosco, para nos deixar todas as pistas humanamente assimiláveis pelo caminho, e garantir que, enquanto caía, fazia-o com uma empatia intocável para com o público. Marriage Story instiga-nos uma atenção, um cuidado e uma curiosidade permanentes, não de uma forma exploratória, mas antes, quase altruísta, é sempre cativante, e quase sempre impressionante, até na fidelidade para com as pequenas coisas, a partir de um argumento absolutamente invejável, daqueles que às vezes é preciso viver muitas vezes para sonhar escrever (cortesia todo-o-terreno de Noah Baumbach, que produziu, escreveu e realizou), e de um elenco absolutamente extraordinário, com um colosso chamado Adam Driver, definitivamente no topo do mundo, e com a melhor Scarlett de sempre, a parecerem ambos ali genuinamente insubstituíveis e na plena expressão de todas as suas capacidades, rematados, por fim, com um admirável leque de secundários, onde jamais poderia menosprezar o rescaldo de alma que foi rever Alan Alda.

Marriage Story tem o dom de nos fazer viver um processo extremamente doloroso de uma forma sempre razoável, justa e corajosa, e essa honestidade emocional, tantas vezes tão difícil, no ecrã e fora dele, sem melodramas, nem espectáculos, é justamente aquilo que nos arranca todo o respeito que lhe é devido. Porque podia ser connosco, porque se calhar já todos andamos naqueles mesmos lugares e já todos pisamos aqueles mesmos abismos da vida, e porque sobreviver à vida é, muitas vezes, o que nos faz seguir em frente. A vida não é cinematográfica, e o grande cinema tem a responsabilidade de ser mais como a vida, do que como a arte.

Mesmo no fundo, depois de tudo o resto já ter falhado, só há uma excepção que confirma a regra: Marriage Story é romântico até ao fim, mesmo se não puder ser feliz. Essa falência está-nos no sangue, essa esperança é o que nos salva mesmo se não houver salvação, e não somos ninguém para dizer que não é legítimo que assim seja. Era muito difícil fazer de algo feio e complicado, algo simples e honestamente justo, comovente e bonito. A carta final está lá para provar-nos que é sempre possível. É provavelmente a cena mais bonita do ano.

8/10

Sem comentários: