quarta-feira, 25 de março de 2015

Ensaio sobre a Cegueira


"É preciso que tudo mude, para que tudo possa ficar igual"
Il Gattopardo, Giuseppe Tomasi di Lampedusa

A política madeirense dos últimos 20 anos é uma história de violência doméstica. Podia ser filmada em contra-luz e com voz distorcida, como a televisão faz às vítimas, e soaria exactamente da mesma maneira. "Eles batem-nos, mas eles gostam de nós. É só a maneira deles serem. Isto é tudo para o nosso bem." Se há coisa empesteada na raiz sócio-cultural do madeirense é esse culto do abuso político. O PSD pode, porque nós precisamos do PSD. Nós não somos nada sem o PSD. O PSD arruinou-nos, mas fez obra. O PSD caçou-nos, mas só quando fomos ingratos. Na Madeira, a Revolução só deu origem a uma sub-democracia qualquer, e habituamo-nos a ser uma vergonha nacional mal escondida, achincalhados à condição de bobos da República das bananas, porque a vida era mesmo assim e todos temos de nos humilhar. Como qualquer vítima, os vizinhos reparavam, tinham pena, ofereciam ajuda. Mas nós continuávamos a olhar para o chão e seguíamos em frente. Eles batem-nos, mas eles gostam de nós. É só a maneira deles serem. Isto é tudo para o nosso bem. Claro que ninguém poderia cuidar de nós como o PSD cuida. Ficaríamos sozinhos no mundo, era o fim. 

Este terrorismo psicológico que faria inveja a qualquer sociopata radical é uma obra-prima erigida por sucessivas gerações. É o resultado de um modelo de desenvolvimento assente estritamente no betão embrutecedor, no pão e no circo, que estrangulou a cultura do pensamento crítico, tão espectacularmente essencial a qualquer sociedade digna desse nome. Como diria Guevara, o povo que não sabe ler, é o povo fácil de enganar. E tendo, inevitavelmente, a figura do Grande Irmão, que tudo vê, indistinta à sua génese, nunca teria sido possível enganar o povo sem todo e cada um dos tenentes que foram para a rua arrebanhar a gente e dar a cara pela cartilha. Por mais que se tentem agora higienizar, há passados que não podemos arrancar da própria pele: não, infelizmente o PSD-Madeira não foi a distopia de um homem só, foi o banquete de todos quantos nele se sentaram e lambuzaram desde sempre, todos e cada um culpados na mesma e exacta medida. A última perversão da Velha Ordem, a sua derradeira armadilha, é convencer-nos de que, afinal, não aconteceu. De que há anjos e diabos. De que a regeneração existe e de que o triunfo dos puros arrombou pelas portas do Paraíso adentro. A única chance é que o povo já tenha aprendido a ler sozinho.

Miguel Albuquerque foi presidente do Funchal durante duas décadas. Foi vice-presidente do partido, esteve na JSD e na Assembleia, fundou a Fundação. Não houve um único dia em que não tivesse sido delfim de corpo e tempo inteiro. O rapaz-maravilha, o príncipe-herdeiro a quem um dia todos haviam de prestar juramento. Estranhamente, porém, essa não foi uma escalada de rebeldia, nem de independência, nem de carácter reformador e revolucionário. Nesses tempos não tão longínquos, Albuquerque estava só ocupado a não cuspir no prato onde comia. A ser pacatamente o rapaz do poster, sem levantar ondas, galante e afável, abraçado ao padrinho, como qualquer bom comando. Um como os outros... até a ambição ter podido levedar no fermento do tempo. É extraordinário ter de lembrar isto tantas vezes, mas ele não nasceu ontem, por obra e graça da Virgem. Ele esteve sempre lá. A fazer acontecer, tão bem como os melhores. Saiu da Câmara do Funchal em 2013 deixando uma dívida de 100 milhões de euros para outros pagarem. Agora enche a boca em comício para dizer que na Câmara faz-se pouco. Eu, pelo menos, teria mais respeito por quem paga as minhas dívidas. Se não respeito, pelo menos vergonha na cara. Já ontem, em fim de campanha, fez questão de faltar ao debate televisivo de candidatos. Tão crescido, que de certeza deixou o mentor orgulhoso em casa. Dêem-lhe maioria absoluta, porque na Assembleia vai ser diferente, claro. Despesista, populista e insuflado daquela profética supra-autoridade. É quase como se soasse familiar.

Se há competência que lhe reconheço, é o individualismo que veio a adoptar. Individualismo, não no sentido de pensar pela própria cabeça, e de se distanciar por querer melhor, mas no de quem sabe exactamente o que tem de fazer para cuidar dos seus próprios interesses. Albuquerque foi, de facto, o primeiro a perceber que Jardim era um cancro. E agiu em conformidade... não porque isso era melhor para nós, mas porque ia ser pior para ele. Teve visão, não pelo nosso futuro, mas para o seu próprio umbigo, percebendo que a cisão prematura lhe havia de pagar com juros a longo-prazo. As crónicas rezam o romântico corajoso, nouvelle vague, que ousou enfrentar o sistema por dentro. A realidade, contudo, tende sempre a ser menos bonita do que isso. O que Jardim lhe fez foi um favor, ao torná-lo um mártir, e os dois anos de campanha, retratados de onírico exílio no deserto, saíram muito melhores do que a encomenda. A coragem é especial porque não pede nada em troca. Porque é um impulso de consciência, uma reacção que costuma ter a perder. Porque é uma causa, nunca uma consequência. Ninguém é corajoso por estratégia, por calculismo, ou porque essa é a sua opção mais rentável. Isso chama-se sobrevivência. Tudo o que Albuquerque fez foi sobreviver do lado certo da cadeia alimentar.

Na rua, a tese que mais se tem ouvido é a da competência da equipa. No fim do dia, para o bem ou para o mal, por convicção ou contrariados, o que parece contar é que "o PSD sabe fazer". Este suposto PSD depurado, a quem cortaram o espinho podre para nascerem rosas novas e viçosas e, num ápice, se curarem todos os males do mundo. O problema do PSD, faz-se por crer, era única e exclusivamente Jardim. Fora isso, é olhar de lés a lés e ver multiplicarem-se os quadros de elite altamente competentes e experimentados, capazes de navegar a ilha de olhos fechados, porque sabem-na melhor. Eu gostava de saber o quão bons temos de ser para ocultar uma dívida de 6 mil milhões de euros? Para pôr uma região a comer pão pior do que o diabo amassou - em impostos, em salários, em custo de vida - na segunda maior crise do século, porque era normal brincarem a deus? Para alimentar uma promiscuidade pornográfica entre política e negócios, que sempre se riu na cara da plebe contente? Para demonstrar um desrespeito democrático tão espectacular - pela Assembleia e pelas instituições, pela oposição e pelo contraditório, pela liberdade de pensamento e de imprensa -, que faria inveja a uma república africana subdesenvolvida? O quão bons temos de ser para saber fazer assim?

É que a outra tese da rua é que a Oposição não presta. 40 anos deste poder e é a Oposição que não presta. 40 anos deste poder e uma única legislatura é, de repente, o único risco impossível de assumir. Sabem o que é difícil? Difícil é fazer pior. Se me perguntarem, digo que sim, que algumas opções teria tomado diferentes. E digo mais, digo que não tenho qualquer dúvida de que, quando for Governo, a Oposição também vai errar. Todavia, se a Madeira não fosse uma alucinação orwelliana do partido único, o que não era preciso explicar é que a alternância democrática é tão essencial como a própria Democracia. E que esse direito de falhar foi ganho, e devíamos ser nós a honrá-lo e a protegê-lo, para nosso próprio bem. Porque as pessoas têm de mudar, os ciclos, as visões e as cores têm de mudar, para nosso próprio bem. Nosso. Porque o Estado somos nós, a Providência somos nós e o futuro somos nós, e a única forma de os salvaguardar é se jamais voltarmos a tornar as pessoas maiores do que os cargos, como deixamos durante 40 anos. Se jamais tolerarmos que um partido e um Governo voltem a ser a mesma coisa. "Quem guardará os guardas?", perguntava Juvenal, na Roma Antiga. Somos nós, no dia em que provarmos que temos o poder de mudar, no dia em que percebermos que os partidos não são um clube, nem são uma maldita profissão de fé. Ter de explicar isto 2000 anos depois é uma tragédia muito maior do que qualquer dívida oculta.