quarta-feira, 25 de novembro de 2020

La vida es una tómbola

Não sei se Deus existe. Sei que se existisse, havia de ser como ele. Custa bastante escrever isto hoje, porque custou bastante a acreditar. Se Deus existisse, não havia de morrer. Custa bastante escrevê-lo já, porque parte de mim ainda acredita que ele pode voltar, que há sempre tempo para mais um drible, que quem já ganhou um Mundial e uma guerra sozinho, pode bem ganhar à morte. Custa bastante escrevê-lo enfim, porque se nunca estivemos à altura do que ele foi em vida, jamais estaremos à altura do que ele é agora. Custa bastante escrevê-lo, como teria custado a outro apóstolo de outra religião qualquer. 

Custou a aceitar, mas como noutra religião qualquer, percebi que este seria provavelmente o seu último milagre. Nunca tinha visto tanta gente a falar em Deus numa rede social. Muita gente leu, e não compreenderá o exagero, não compreendendo que o exagero não é nosso, era dele. Não sei se Deus existe. Sei que se existisse, havia de ser assim. Puro, omnipotente, benigno, genial. Perfeito nunca, porque perfeito nenhum de nós é, e teríamos sido feitos à sua imagem.

O que o tornava único era a sua verosimilhança. Era ser intuitivamente genuíno em tudo o que fazia, sem fazer de propósito, nunca com lições de moral, mas sempre do lado certo. Lutando a luta certa, enquanto nos mostrava, a nós comuns mortais, que é possível fazê-lo mesmo se tropeçarmos em todas as armadilhas da vida, sem que isso tenha de beliscar aquilo que somos. Ele mostrava que até os deuses são humanos na maior parte do tempo e que, se calhar, todos podemos tocar em Deus de vez em quando, mesmo sem todo aquele talento, mesmo com todas as nossas falências. 

Para alguém que respira futebol desde que se lembra de respirar, custa bastante despedir-se de Diego Armando Maradona, porque ninguém devia ter de se despedir da pedra sobre a qual construiu a sua Igreja. Ele é o mais importante de todos, ainda que, tal como a Deus, se ele existir, nunca o tenha visto ao vivo, ou em directo. O bom da fé é que não precisa de ser mundana. Somos tantos os que não o viram, mas sentiram, que é fácil constatar que Maradona não é só o futebol que jogou. Maradona é um herói que, por acaso, foi o maior futebolista de todos. 

É um herói pela forma como ganhou, e como perdeu. Um herói real, de carne, osso e alma perante todas as suas extraordinárias circunstâncias, que arranjou sempre forma de fintá-las e de se agigantar, e ser maior do que o jogo, e maior do que a vida. Uma vez li que qualquer comparação era escusada entre ele e os nossos dias, porque mais ninguém seria capaz de carregar a cruz daquele talento como ele carregou. Mais ninguém seria capaz de ganhar sozinho como ele ganhou, transformando equipas banais em equipas extraordinárias, só com um pé esquerdo, uma mão divina e uma aura em forma de juba. 

El Diego até podia ser Deus, mas antes disso era Povo. Era um ídolo popular único, um ícone anti-sistema, sempre a ferver com a bola colada ao pé ou o coração colado à boca, sempre pronto a tomar as dores de quem precisava de ser defendido, como se as suas não bastassem. Ser indiferente é a pior coisa que se pode ser na vida. Maradona tomou sempre partido. Vestiu sempre a camisola. Enfrentou sempre o politicamente correcto, custasse o que custasse. E custou, porque aquilo que nunca lhe perdoaram não foram os erros, foi a rectidão. Sempre que o tentaram derrubar, tentaram pelo carácter, sem perceberem que por aí nunca haviam de lá chegar. Tal como à bola, no carácter ele chegou sempre primeiro.

Fê-lo pelo povo da Argentina, após a guerra das Malvinas, ganhando em campo o que mais ninguém podia ganhar lá longe nas trincheiras, em horário nobre e aos olhos do mundo, quando o mundo não queria ver; fê-lo pelo povo de Nápoles, ganhando em campo o que a Itália pobre do Sul jamais poderia ganhar fora dele; e fê-lo pela gente comum, atirando-se contra o imperialismo e contra os poderes instalados, como a FIFA corrupta, que nunca o absolveu, mas que nunca o pôde ignorar.

Fê-lo, acreditarei sempre, consciente da fragilidade da condição humana, da sua e da nossa, consciente de que tudo isto é demasiado curto para torcer em vez de quebrar quando se acredita nalguma coisa, consciente de que a vida é uma lotaria e que coragem é ter medo, mas ir na mesma. Consciente de que ele podia ir até ao fim do mundo sozinho, para que nós não tivéssemos de ir, como naquela descolagem cósmica no dia 22 de Junho de 1986, quando Victor Hugo Morales narrou o golo do século numa epifania como não houve outra igual, enquanto clamava ao céu, "de que planeta vieste, para deixar pelo caminho tanto inglês?", tanta injustiça, tanta opressão, tanta desigualdade, tanta provação, tanta imperfeição, tanta falha? É sempre possível encarar os nossos obstáculos e ir mais longe. Deus é acreditar nalguma coisa, mesmo se formos os únicos.

Não sei se Deus existe, mas se existir, não morreu hoje. Se existir, talvez tenha só voltado para o seu planeta.

sábado, 16 de maio de 2020

O Bicho que nos salvou


Não me parece que seja possível algum dia esquecer aquele primeiro silêncio, quando acabou o último directo do Bruno na quarentena.

Foram tempos extraordinários, estes que vivemos, que provavelmente só conseguiremos processar daqui a muitos anos. Num dia tínhamos a nossa vida normal e, no dia seguinte, passámos a ter a nossa vida de filme, encerrados em casa, com cidades desertas, uma pandemia na rua e o mundo em suspenso. Ninguém teve tempo de se preparar, nem sequer para a ideia; só tivemos tempo de fugir e esperar que, como nos viriam a lembrar ao longo de muitas noites depois disso, numa frequência clandestina de sobrevivência, havia de correr tudo bem.

Na vida, nem sempre há heróis, mas nos filmes sim, e o Bruno, perante circunstâncias nunca vividas, foi o herói que o país precisava que ele fosse. Escrevo isto sem qualquer pejo, nem ponta de hipérbole. Ao longo de dois meses especialmente difíceis, em que tivemos de deixar de parte quase tudo o que gostávamos, e em muitos casos, as nossas próprias pessoas, o Bruno teve a bondade de estar em directo todas as noites a garantir que pelo menos a sanidade ficava.

O Bruno, temos isso hoje perfeitamente claro, é um dos melhores do mundo naquilo que faz. Não sei se mais alguém nas circunstâncias dele, com o poder que ele reuniu nas mãos, teria tido a grandeza e o altruísmo de levar o Bicho como ele levou. De levar o carinho e a vulnerabilidade e a esperança das pessoas como ele levou. É por isso que os melhores são os melhores. Outros infinitamente menos talentosos teriam sucumbido ao proveito próprio, ao negócio e à oportunidade. Mas não o Bruno. Nós que lá estivemos, sabemo-lo demasiado bem. Com o Bruno, e contra tudo o que podia ter sido, foi sempre pela gente. Pelos amigos dele e por cada um de nós que lá foi por bem, só para beber um pouco de luz na escuridão. Numa era marcada pela urgência da megalomania digital, o Bicho foi um portal para outro encanto qualquer. Foi pureza, honestidade e temperança, foi o melhor que há na amizade e na cumplicidade, foi de coração.

Por muitas coisas que viva, nunca me poderei esquecer da singularidade daquela despedida ontem. Das varandas de Lisboa, e dos quatro cantos do país e do mar, da Madeira até ao Pólo Norte, iluminados de Natal, e da quantidade de gente que fez questão de aparecer, ou de escrever ou de ter um pequeno gesto onde quer que estivesse, só para dizer "obrigado", até ele deixar de conseguir falar e de nos emocionarmos a todos. O Markl disse a dada altura que aquilo era como um final feliz de um filme em que o herói salvou o mundo. Por mais coisas que viva, sei que não voltarei a estar num coliseu que durou dois meses e que acabou com 170 mil almas em directo, um coliseu do tamanho e da distância de onde quer que tenha estado um português a acender as luzes de Natal na varanda, no dia 15 de Maio de 2020, em homenagem ao gajo que nos salvou.

O Bicho não foi só a experiência cultural, imortal e paranormal de uma geração, foi o nosso Live Aid dentro de casa, e ontem dentro de cada uma das nossas ruas, foi o fim do Seinfeld de um país pequeno à beira do mar, mas com um génio, e um coração e uma identidade e uma humanidade absolutamente comoventes. Não me parece que seja possível algum dia esquecer aquele primeiro silêncio, quando acabou o último directo do Bruno na quarentena. Mas não foi um sonho. Porque depois fui à varanda e ainda estávamos lá, a brilhar. Vai correr tudo bem.

sábado, 25 de abril de 2020

Abril, a urgência e a responsabilidade


A Ditadura em Portugal durou 48 anos.

Ceifou vidas e ceifou gerações. Foi o mais longo regime autoritário do século XX na Europa Ocidental. Não sei se temos noção de que somos livres há menos tempo do que fomos oprimidos. Hoje, temos a sorte de poder esquecer. Quem viveu e morreu perseguido e preso, torturado, assassinado ou condenado à indignidade, ao atraso e à pobreza, não se esqueceria com certeza. Temos essa sorte. Pergunto-me, em dias como hoje, quanta gente gostaria de ter podido viver isto, pelo menos uma vez. Quanta gente gostaria de ter podido sonhar com esta utopia de 46 anos de liberdade e que morreu sem um pingo de esperança no país que deixava aos filhos, porque não teve essa sorte. Pergunto-me, em dias como hoje, quantas gerações de portugueses foram aconselhadas a não sonhar, a não ter esperança e a não quererem ser livres, pelo seu próprio bem. Quantas gerações, no caso dos madeirenses até muito depois da Revolução, foram educadas a ter medo de ter uma opinião, uma consciência e a ser gente de corpo inteiro, sem vergonha, sem comiseração e sem miséria.

O bom de Abril é que toda a gente é livre de fazer o que quiser. De comemorar ou não comemorar a Revolução, de ser indiferente ou apaixonado, de acreditar nela ou de desprezá-la. Num país que passou metade do último século pisado e humilhado, é normal que a Democracia ainda desconforte muita gente. É essa a raiz da sua superioridade moral. A mim não me deixa de custar, no entanto, que num país que vive há menos tempo em democracia, do que viveu em ditadura, pareça faltar sentimento de urgência, propósito e convicção. O 25 de Abril acertou em quase tudo. Melhorou quase tudo, transformou-nos em quase tudo. Mas se pecou nalguma coisa, talvez tenha sido na sua falta de auto-estima. Na educação para a cidadania e no combate ao abismo da memória. Para mim, restituir esse caminho é uma questão de dever cívico. Não tenho dúvidas de que o povo estima o 25 de Abril, mas não tenho a certeza se percebe a sua preponderância e a sua actualidade, quando num dos momentos mais difíceis, inéditos e imprevisíveis da nossa História Moderna, tanta gente estaria disponível para sacrificá-lo.

A Revolução não é nossa para sacrificar, porque não fomos nós que nos sacrificámos para torná-la possível. Nós só ficámos com a parte boa. O 25 de Abril não é nosso para sacrificar, porque a Democracia e a Constituição, os direitos, as liberdades e as garantias, os serviços públicos e o Estado Social não se sacrificam; são eles justamente a fina linha que nos separa do vazio nos tempos em que vivemos. Tenho a certeza de que hoje é mais importante do que nunca celebrar Abril. E é ainda mais importante por tudo o que vimos nas últimas semanas. Quando o terror se sente no ar, instigado pelos mesmos de sempre, o povo aflige-se, fraqueja e esconde-se no escuro. Passa a temer a sua própria sombra e a desconfiar de tudo, inclusive do que dá por adquirido, inclusive da bondade da candeia que alumia o caminho. É por isso que toda a luz é essencial. É por isso que temos hoje a missão, como muitos outros melhores do que nós e muito antes de nós, de não arredar pé e arrepiar o caminho. Quantos portugueses foram aconselhados até hoje a não serem livres, na sua vida, no seu trabalho, na sua sorte, na sua terra e no seu destino? Se é para sacrificar alguma coisa, que seja por eles. Os outros não passarão.

Hoje, como em todos os dias dos últimos 46 anos, não nos cabe apenas celebrar. Cabe-nos defender um país que acredita numa vida digna para todos, venham de onde vierem, estejam onde estiverem. Um país de cada qual, segundo a sua capacidade, a cada qual, segundo as suas necessidades. Um país que, com todos os seus defeitos e insuficiências, é um exemplo de progresso e humanismo em toda a parte. Um país em que ninguém fica para trás, com saúde e educação universais, com protecção social e laboral, o que para nós são só mais uns direitos, mas em meio mundo são só mais uns sonhos. 46 anos depois, nem tudo está cumprido, mas que nunca nos falte o sentido, a gratidão e a memória para celebrar um país com liberdade e com esperança. Celebrar Abril é urgente, hoje e sempre, para que o presente nunca nos fuja por entre os dedos. Muitos outros antes de nós, e muito melhores do que nós, gostariam que essa tivesse sido a sua resistência e a sua única responsabilidade.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

O golo de uma vida


A atitude do Marega ontem prova, no fundo, o quão fundamental é ir até às últimas consequências pelo que achamos que está certo, mesmo, ou sobretudo, se acharmos sozinhos.

Se ontem o primeiro jogador de sempre em Portugal não tivesse saído de campo a meio de um jogo de alta competição, porque num país civilizado não pode ser tolerável que te apupem como um macaco na rua, hoje não estávamos todos a falar de racismo, não estávamos todos envergonhados porque temos de falar de racismo, e se calhar amanhã, qualquer animal se voltaria a sentir absolutamente impune para apupar outra pessoa na rua como se ela fosse um macaco.

O Marega saiu ontem sozinho de campo, porque evidentemente ficou sozinho em campo, porque quando o macaco não somos nós, o melhor é não fazer caso disso, não exagerar e fingir que não importa assim tanto, que faz parte da selvajaria e que não é "racismo" a sério, é "futebol". Quando o macaco não somos nós, é sempre melhor não arranjar confusão, nem partir os telhados de vidro aos bocadinhos, porque fica melhor não se dar ao respeito e não ser respeitado.

O Marega saiu ontem sozinho de campo, como estaria hoje sozinho na opinião pública, nas televisões, nos jornais e nas redes sociais, caso tivesse fingido que aquilo alguma vez não é tão mau como parece e continuado em campo. Hoje, acabaria por certo no rodapé de um jornal, como um futebolista mimado, problemático e que fez uma cena que não é para levar a sério, o mesmo rodapé da vida real em que todos os dias muitos outros Maregas não são levados a sério, enquanto sofrem a indignidade na pele e em silêncio, pisados como macacos sem milhares de pessoas a ver.

Ao partir a loiça toda, o Marega chocou e assustou o país das aparências e dos brandos costumes, e fez-nos um favor maior do que poderemos admitir, mas que espero que subsista em carne viva na nossa consciência colectiva, e se da próxima vez ajudar um miúdo que seja a não ter vergonha de quem é, e se da próxima vez ajudar um grunho que seja a ter vergonha de quem é, o Marega já fez mais pelo país do que o país lhe poderá agradecer.

Numa época arriscada, em que não temos a sorte de poder apupar fachos em estádios de futebol, que o Marega sirva, pelo menos, para nunca mais relativizarmos o mal que estes comportamentos fazem e já fizeram ao país, e o que alguma escumalha quer voltar a fazer. Que o Marega sirva para traçar a linha que nos define o carácter enquanto homens, porque não há nada mais perigoso do que normalizar a intolerância. E que das próximas vezes, perante o racismo e a xenofobia, perante a caça à igualdade, ao humanismo e às liberdades individuais, não tenhamos vergonha de escolher um lado, mesmo se tivermos de sair de campo e pôr tudo em causa, mesmo sozinhos, mesmo até às últimas consequências.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

ÓSCARES 2020 - preview


Top 10 do Ano

1. 1917
2. Joker
3. The Irishman
4. Marriage Story
5. Jojo Rabbit
6. Ford v Ferrari
7. Two Popes
8. The Case of Richard Jewell
9. Little Women
10. Parasite

Best of the best

MELHOR FILME: 1917
MELHOR REALIZADOR: Sam Mendes (1917)
MELHOR ACTOR: Joaquin Phoenix (Joker)
MELHOR ACTRIZ: Scarlett Johannson (Marriage Story)
MELHOR SECUNDÁRIO: Al Pacino (The Irishman)
MELHOR SECUNDÁRIA: Kathy Bates (Richard Jewell)
MELHOR ARGUMENTO: Marriage Story
MELHOR ARGUMENTO ADAPTADO: Jojo Rabbit