terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Óscares 87 - BALANÇO: Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam


Adoro os Óscares desde miúdo. Não posso honestamente usar outro verbo. Gostava de ser mais cínico a respeito, mas é mais forte do que eu. Até hoje, tudo naquilo continua a fascinar-me exactamente como no primeiro dia. Como é evidente, já me fartei de desiludir com os Óscares. Já senti asco pelos lobbies e pelo politicamente correcto, já me cansei de esperar por julgamentos melhores e já vi cerimónias sacrificadas por decisões grosseiramente discutíveis. Mas tenho para mim que é impossível vir um dia a pensar de outra maneira: nunca acreditem em quem vos diz que os Óscares não são especiais. Em quem olha sem conseguir ver a magia. Até os piores Óscares seriam sempre demasiado bons. Isto é dito com a cicatriz de quem se habituou cronicamente a injustiçar-se com eles. Tanto que, algures no caminho, me devo ter convencido de que fazia parte. De que era física e filosoficamente impossível que o melhor filme do ano ganhasse realmente o Óscar, porque a Academia é como a mulher de César: não lhe basta ser, é preciso parecer. A Academia sempre usou premiar a reputação antes do produto, a ficha técnica antes da ideia. Não ganham filmes maus, ganham filmes... seguros. A Academia sempre foi a mãe incumbida de escolher os melhores partidos, pelo bom nome da família.


Desde que vi o filme, e na antecâmara da cerimónia, fui tão vocal quanto possível no apoio a Birdman. E Birdman não é um filme assim tão unânime. Já me confrontaram sobre se aquilo seria, afinal, tão realmente bom. Não é o melhor filme que vi na vida, de facto. Aliás, consigo dizer, sem esforço, mais um par de nomes que, na minha opinião, estiveram ao mesmo altíssimo nível este ano: Gone Girl e Whiplash, por exemplo. Qualquer um dos dois mais intenso, mais estonteante, porventura mais fácil de gostar. Porquê, então, a mania? Pelo resultadismo? Uma coisa é certa: nunca gostei de nenhum filme por favor e, decerto, não gostei "mais" de Birdman por causa do hype de favorito. A equação é exactamente a contrária: o que me converteu foi o facto dum filme tão intrinsecamente cheio ter, finalmente, essa possibilidade única de ser reconhecido na noite maior. 2014 teve um par de títulos igualmente bons, mas digo, com toda a convicção, que não teve nenhum melhor. Esse tipo de vitória era coisa que não acreditava tão cedo ir relatar. Nunca tinha visto e não sei quando é que vou voltar a ver mas, por uma vez, o topo foi realmente o topo. Admito que nem toda a gente assimile a ideia, ou sequer se importe o suficiente, mas, para um aficionado, isto é catártico. É ficar em paz.


Não queria perder uma última oportunidade para convidar a que todos olhem para aquilo com olhos de ver. Birdman é brilhante. É o triunfo de uma história pessoal, não da trama, do suspense e do excesso, mas do cinema sobre as pessoas e para as pessoas, despretensioso, vulnerável e terrivelmente honesto, que fala connosco, assim o consigamos escutar. Um filme com interpretações maestras - Michael Keaton é, de uma forma ou de outra, um vencedor honorário - e avassaladoramente bem criado por quem, fora o senso e o talento profundo, foi uma milha além, e arriscou, pôs-se em causa, pôs-se à prova. Com uns estupefactos 3 Óscares arrecadados na mesma noite (produtor, realizador, argumentista), Iñárritu é, com propriedade, o senhor do ano. A vitória de Birdman a toda a linha (Melhor Filme, Realizador, Argumento Original e Cinematografia, para o fenómeno que é Emmanuel Lubezki) tem tanto mais significado se valorarmos que foi uma das corridas mais apertadas até onde a memória permite chegar... e que, na meta, o filme não era favorito. Pelo contrário, era a magnum opus de Richard Linklater quem tinha disparado em carinho durante o Outono e agigantado um estatuto que chegou a parecer inexpugnável. Na hora da derrota, é incontornável falar de Boyhood.


A crónica já a deixei aqui. E não vou ser hipócrita, deixando de dizer que a vitória de Birdman não sabe ainda melhor por essa dicotomia, por, no fim, ter batido um favorito que, ainda por cima, não justificava os galões da condecoração. Boyhood não mereceu ganhar este jogo, mas não posso deixar de dizer uma última vez que não há nada que Linklater não merecesse ganhar. É um dos meus realizadores favoritos de todos os tempos, e espero honestamente que a noite de glória que lhe assaltaram em todos e cada um dos Before chegue realmente um dia. Esta, porém, não era a sua vez. Boyhood é o filme perfeito que nunca chegou a ser. Tão perfeito na teoria, que ninguém considerou que fosse, afinal, intransmissível ao grande ecrã. A notoriedade que teve - pelo investimento, pela ambição - é tão justa como é a sua própria derrota.


Mas nem tudo foi um guião de rosas, claro. Custa-me escrever isto, porque é quase falar de um velho conhecido, porque, à semelhança do resto da minha geração, é uma figura televisiva icónica, especial e provavelmente insubstituível... mas Neil Patrick Harris não foi um tiro, foi um canhão ao lado. Quem conhecia minimamente o background, sabia que podia esperar um registo burlesco e musico-teatral, próprio da Broadway, prémios da qual ele é, aliás, um celebrado host. Hollywood considerou que esse era o registo a emular. Fugia à norma, é verdade, dissonava do sucesso a toda a linha que Ellen DeGeneres tinha alcançado ainda no ano passado, mas havia exemplos equiparáveis de sucesso, nomeadamente com Hugh Jackman, em 2009. Harris, infelizmente, foi um constrangedor peixe fora de água, mais sufocado a cada golfada de ar. Desde logo, cometeu o erro básico de exagerar na cantoria, e arriscou ir ao ponto de tédio. Depois, tentou sempre demais, arrastou sempre demais e, inevitavelmente, chateou a audiência. Finalmente, e no mais dramático de tudo, nunca, nunca, mas nunca teve piada. Depois da tirada de abertura, seguiram-se 3 horas e meia indigestas, com humor do nível de sofisticação dos Malucos do Riso, mal medido, abandonado, desolador. Um verdadeiro deserto, que só encontra pior no que fez James Franco (drogado) há 4 anos atrás. Não há outra forma de o colocar.


A produção também foi de menos. Não consigo perceber, por exemplo, qual é o critério de escolha das estrelas que introduzem os nomeados se, quando conseguem ler fluentemente duas frases, estão com um tão grande ar de enfado. Não se pedia que fossem todos uma aparição como Meryl Streep, mas é incompreensível que não haja outro tacto no desenho e na condução do espectáculo. Depois, também acho deficitário que não se trate de outra forma o lançamento das categorias. Que não se tente fazer qualquer coisa diferente, mais pessoal, nos vídeos de apresentação, ao invés de despejar trailers. Empregava carisma e valorizava muito a transmissão, tal como fez a ABC, em 2012, com pequenas entrevistas ao longo de toda a cerimónia. Até certo ponto foi, de facto, um evento com uma certa falta de aura. O trunfo acabou por ser a competência da realização no palco, a cobrir tanto os episódios teatrais, como, e muito especialmente, as performances musicais (John Legend, Lady Gaga), que se tornaram no ponto alto da noite. Faz sentido que assim seja e, felizmente, a música recuperou o lugar que lhe é devido na cerimónia.


Quanto aos discursos, em geral, muito aplaudidos, não fiquei esmagado. Os Óscares são um palco único, mas sou forçado a avaliar a excessiva polarização político-social sempre com pinças e o que tivemos foi uma autêntica revisão liminar de todo o espectro, com as declamações sobre racismo, homossexualidade, desigualdade de género e imigração. Como é evidente, não estou a relativizar nenhuma das questões, estou só a dizer que, no quadro geral, e encadeadas desta maneira, acabam por soar forçadas, demasiado polidas e menos genuínas. A minha concepção dos Óscares é toda ela paixão e espontaneidade, é ser o Roberto Benigni desta vida, e, por isso, a recepção do ano pertenceu ao excepcional Eddie Redmayne, eufórico como uma criança, exultante, de olhos esbugalhados e coração na boca, que deixou ali, com uma energia arrepiante, tudo o que lhe ia na alma. Para mim, os Óscares vão ser sempre aquilo, aquela alegria, aquela gratidão. Confesso que provavelmente teria dado o Óscar ao Michael Keaton, por ter sido a personagem mais desafiante, porque a mais extraordinariamente real, mas é impossível não ficar feliz por Redmayne, ou sequer discutir o quanto ele o mereceu. Tenho-o escrito e não lhe retiro uma palavra. Quando vemos uma reacção assim, sabemos sempre que ficou nas mãos certas.


No resto dos domínios interpretativos, tudo segundo o anunciado. Não cheguei a ver Julianne Moore em Still Alice, mas confio no alcance da performance; ainda assim, não me cabe que Rosamund Pike tenha lá chegado virtualmente sem qualquer hipótese de ganhar. Não viram, de certeza, o mesmo filme do que eu: se há um injustiçado nestes Óscares, é Gone Girl da cabeça aos pés. David Fincher é, definitivamente, outra persona non grata da Academia. Patricia Arquette salvou a honra do convento para Boyhood, mas não a consigo validar. É um prémio por decreto, inculcado há meses a fio; admito que não houve uma candidata totalmente proeminente, mas Emma Stone teria sido a justa vencedora. Por fim, JK Simmons cumpriu a autêntica formalidade que se tornara subir àquele palco, desde o momento em que desceram as cortinas sobre Whiplash. Foi, realmente, um dos festivais do ano, uma exibição memorável de um grande senhor, por quem fiz orgulhosamente bandeira, de tão merecida que foi. A Whiplash, contudo, ficaram a dever outra vitória tão ou mais simbólica, que era a de Argumento Adaptado, esse, de todos e para mim, o destrato mais escabroso da noite. Whiplash é um texto nuclear, exponenciado por uma coesão artística (banda sonora, câmara, interpretações) verdadeiramente fora do comum; Imitation Game é um guião envergonhado, liso, que se condenou a cortar e costurar um livro, sempre preocupado em não arriscar e em não estragar. Um dó de alma.


De entre os derrotados, The Grand Budapest Hotel levou o lugar de consolação, com 4 Óscares técnicos (Banda Sonora, Direcção Artística, Guarda-Roupa e Maquilhagem) que, de certa forma, lhe emprestam algum brilho e fazem jus a toda a sua elegância conceptual. Há bons e maus derrotados. Custa-me particularmente ver o desterro de Foxcatcher (nomeado a Melhor Actor, Realizador, Secundário e Argumento Original) que, apesar de falências incontornáveis, não foi nenhum filme a brincar, e cujo peso talvez merecesse ser recordado de outra maneira. Privarem-no, de resto, d indicação ao galardão maior já fora imperdoável. Da margem diametralmente oposta, outra notícia salutar da noite foi o verdadeiro perímetro de higiene com que vedaram American Sniper, depois dumas insultuosas e incompreensíveis 6 nomeações. Foi o único candidato a Melhor Filme sem nenhuma vitória vagamente relevante. Ficou-se por... Melhor Edição de Som, o prémio simpatia do colégio de jurados.


2014 tem sido considerado de forma recorrente como um ano sem filmes realmente supremos. Ainda estou em falta, pelo que vou-me permitir a mais umas semanas para pôr a filmografia em dia e poder editar um top-10 digno desse nome. Contudo, não me custa adiantar que é impossível reconhecer validade a uma premissa desse tipo. E se olhar de relance para o baralho, tenho Birdman, Gone Girl, Whiplash, The Theory of Everything, St. Vincent. Ficam indiferentes?

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