terça-feira, 28 de janeiro de 2014

The Hunger Games: Catching Fire. A confirmação


Em 2012, o antecipado capítulo inicial da saga de Suzanne Collins surpreendeu muito boa gente. Bem realizado e bem construído, com um cast inteligente e a mais brilhante escolha de lead possível, The Hunger Games sugeriu, desde logo, que vinha para ficar e para levar a sério. Não era só um blockbuster bacoco, um Twilight desta vida. Demonstrou ser um filme com densidade carismática e com uma história alicerçada num ideário maior que, apesar de ser juvenil, e de explorar assim o seu romance, fazia crer, sem esforço, que era muito mais relevante do que isso. Catching Fire veio nivelar essa ideia por cima e confirmou definitivamente a franchise como a mais significativa do mercado actual.

Tecnicamente, a execução continua a ser irrepreensível. Efeitos generosos, muita agilidade na acção, boa banda sonora. Mais do que isso, tendo em conta que tanto daquilo é criado digitalmente, acaba por ser admirável a sua humanidade e a fiabilidade dos grandes planos, da modéstia doce de um bosque ao pôr-do-sol aos anfiteatros da Capital, dos cenários pós-apocalípticos da Resistência a uma festa palaciana digna de um Gatsby. Era fácil que o filme passasse por artificial ou excessivamente plástico e não é isso que acontece, pelo equilíbrio e pelo bom gosto a doseá-lo. Mérito de Francis Lawrence, já habituado a filmar cenários distópicos (I am Legend), e que me parece ter superado um trabalho que Gary Ross já tinha feito muito competente na estreia.

O traço mais evidente da maioridade do filme a todos os níveis, do seu crescimento transversal, é, no entanto, a adaptação de argumento. É da história original que tenho medo e na qual considero poder estar a sua mais inevitável fraqueza - falarei disso abaixo - mas, em todo o resto, o input da dupla de peso contratada - ambos vencedores de Óscar, Simon Beaufoy (Slumdog Millionaire) e Michael Arndt (Little Miss Sunshine) - foi impactante. Catching Fire, mesmo sujeitando-se a uma quase repetição da narrativa principal, é um filme mais sério e mais poderoso do que o seu antecessor em quase tudo. É mais desconfortável, mais triste, mais perigoso. Mas igualmente mais real, mais espontâneo, eminentemente mais cativante. O medo e o segredo prosperam, a rebelião insinua-se e tudo parece mais à flor da pele, mais vivido, mais imediato. Isso nota-se, inclusive, nas peculiaridades do triângulo amoroso, agora muito mais interessante do que no início.

É curioso que a fórmula-base não tenha nada de novo. Aliás, o registo do herói icónico que se vai prestar a derrubar um Império do mal deve ser o mais batido em toda a história das grandes sagas. Sucede que as coisas são, de facto, muito bem feitas. É uma fórmula comprovadamente de sucesso mas que sabe encontrar o seu espaço, ser crível e cativante, e levar-nos consigo. O filme é muito simbólico e é difícil resistir a isso. O pin do tordo ostensivamente elevado nos meandros da clandestinidade, o léxico próprio (The odds are never in our favour), toda essa carga contextual, apela-nos, de facto, ao instinto de sobrevivência, de luta e de Revolução que já nos vem entranhado na genética, e vicia-nos. A cena em que, ainda na primeira meia-hora de filme, um velho silva o tordo no meio do silêncio da multidão, enquanto faz a saudação de três dedos, é monumental e arrepiante, e cristaliza numa sequência perfeita o tom de tudo o resto.

Depois, claro que ter Jennifer Lawrence, se não resolve os problemas todos, pelo menos ajuda bastante. Aos 23 anos, encontra-mo-la no topo do mundo - primeira lead feminina a reclamar a coroa da box-office em 40 anos e, ao mesmo tempo, candidata de peso a um segundo Óscar consecutivo -, e ninguém que a veja em cena pode deixar de perceber porquê. Lawrence é uma predestinada, que parece já ter nascido a fazer aquilo. A forma como vive qualquer cena da mesma forma, de um blockbuster a um filme de autor, como parece sempre na iminência de perder o controlo, com o coração na boca, até à facilidade para se vulnerabilizar e, logo depois, superar, é todo um manual que se escreve sozinho. Neste momento, já a tornou num ícone automático e quem a escalou devia estar a agradecer ao céu todos os dias.

De qualquer forma, e ao contrário do que é regra nestes filmes, todo o cast esteve a um nível extremamente bom. Saliento, em particular, Josh Hutcherson, num papel suave, que não costumo apreciar, mas a que ele empresta uma generosidade e um compromisso desarmantes. Beneficia-o, igualmente, o termo de comparação com Liam Hemsworth, de longe, o elemento mais fraco de todos. Woody Harrelson está ainda melhor do que no primeiro, e confirma-se como estruturante, sendo essa tendência acompanhada por Donald Sutherland e Lenny Kravitz. O gigante Philip Seymour Hoffman foi, evidentemente, uma grande ideia, e ainda merecem referência Jena Malone e Sam Claflin, secundários de grande nível que vieram trazer química grupal à história e que aumentaram ainda mais o alcance que ela pode vir a assumir.

Para o fim, fica o calcanhar de Aquiles: The Hunger Games continua a ser completamente incapaz de fazer um sacrifício ou de tomar uma única decisão verdadeiramente difícil. O filme especula com muita violência e com muito tormento, mas depois não consegue concretizar seja o que for nesse aspecto. O cúmulo é, como se pode imaginar, a competição propriamente dita, pela qual os protagonistas passam com uma leveza permanente e um lirismo desconcertante. Fazerem religiosamente a coisa certa e passarem sempre incólumes, sem nada que os agrida de forma irremediável, é algo que fere o filme de uma descredibilização que não é passível de contornar. Não li os livros e, portanto, estou a falar completamente no escuro. Mas estas palavras de George Martin continuam a ser doutrinais. Se, no seu último capítulo, a história não for capaz de provar a coragem para tomar decisões difíceis, Os Jogos da Fome ficarão sempre à margem do patamar notável onde teriam definitivamente condições para chegar.

7.5/10

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

The Class of 92. A Ínclita Geração e o jogo mais bonito do mundo


"You always hope and think that things will happen again. But will there ever be a time where six lads who grew up from the age of 12, 13, will come through and win the treble, having supported the club? I dont think you'll ever see it again."
Gary Neville

The Class of 92 é um poço de suprema nostalgia. Do que vimos, do que nos contaram e de coisas que nem sequer sabíamos. É um tributo excepcional a uma geração tão especial de jogadores, propriedade de um futebol verdadeiramente de outro tempo. O futebol romântico, estranho à globalização, onde chegar a uma casa sem tamanho de gente e crescer até aos holofotes do mundo não era um bilhete de lotaria, mas uma probabilidade orgânica. O futebol local e pessoal, mesmo para os maiores, tão identitário dessa essência sagrada que sempre prosperou na Velha Albion, mais do que em qualquer outro sítio do mundo.

Becks, Gary, Philly, Scholsey, Butts, Giggsy. Seis miúdos amigos desde o infantário onde aprenderam a jogar à bola, que puderam passar uma vida a jogar juntos, até chegarem a Campeões de tudo, década e meia depois. O documentário intercala o perfil de cada um deles, num ângulo delicioso, em geral definido pelos outros, com as duas fases mais estruturantes do legado dos Fergie Babes. A primeira é a temporada 1995/96. O título escapara no ano anterior e Sir Alex não fez por menos: vendeu três dos seus jogadores mais simbólicos e começou a época com todos os miúdos a titulares. Foi goleado. É daí que remonta a histórica frase de Alan Hansen, de que "não se pode ganhar nada com crianças." Esse United ganharia cinco dos seis títulos seguintes. Cantona lembra com o olhar desafiante de sempre: "Nós queríamos acreditar. Tentávamos acreditar, mas tínhamos de ser realistas. Ele, contudo, sabia."


Claro que sabia. Três anos depois chegaria o reconhecimento planetário. Gary Neville diz que se pudesse voltar a viver dez dias da vida, escolheria sempre aquelas vertiginosas duas semanas de Maio de 99 em que os miúdos de Carrington, os irmãos que conhecera desde o berço, ganharam tudo o que havia para ganhar. Campeonato, Taça e a melhor final da Champions de todos os tempos. Ele e os amigos, feitos maiores do mundo. Toda a história da casta de 92 seria sempre épica em cada um dos seus filamentos. O facto do auge ter sido esse jogo profético, capaz de provar cientificamente a existência de um destino, foi só a chave de ouro do Universo.

Acho que o documentário podia ter sido ainda mais pejado de testemunhos adjacentes - faltou mais Fergie, por exemplo -, mas, no fim, não há como evitar a magia daquilo. O sorriso a cada trago, plasmado da mais sincera cumplicidade e camaradagem entre tamanhos e tão pessoalizados ícones. Ouvir que Gary Neville, da primeira vez que viu Giggs jogar, pensou que, se a medida era aquela, tinha de ir embora na semana seguinte. E que, por isso, todos os dias trabalhou mais para merecer estar lá. É esse carácter que, na opinião Beckham, levou a que todos o respeitassem tanto como capitão. Ouvir o quão incrível foi que um tipo tão franzino, lento e asmático como Scholes tenha sido um futebolista tão fascinante. 'The Ghost' era um purista, um introvertido, mas tinha as melhores one liners de sempre e eram imperdíveis as vezes em que que treinava as suas bolas a 40 metros, sempre que, em Carrington, um colega ia fazer do bosque casa de banho.

Ver a reverência com que se fala de Magic Ryan, o mais precoce e estupendo de todos. Ou como ele recorda, com um brilho nos olhos, que Beckham foi o símbolo mais mediático dessa geração e de toda a revolução cultural que a acomodou, mas que, no vestiário, nunca deixou de ser, nem por um segundo, o mais trabalhador e o mais acessível, "o velho Becks com quem crescemos". O 'Pretty Boy' que inventou o empate ao minuto 89 no Camp Nou, não porque podia ser campeão da Europa, mas porque Schmeichel tinha subido à área contrária e porque o matava se ele falhasse. Ou como Fergie o avisou de que não ia ter sempre sorte, quando marcou o seu mítico golo de meio-campo ao Wimbledon, só para Cantona rebater que "era certo mesmo se não tivesse entrado, miúdo."

De como Phill Neville era a alma e a electricidade do balneário ou como Nicky Butt era a sabedoria da rua, o sobrevivente do bairro mais difícil, e aquele que os outros levariam sempre para a guerra, sem pensar segunda vez. Ouvi-los falar dos primeiros carros, das primeiras festas e do privilégio impensável que foi viverem cada bocado daquilo juntos, numa Inglaterra efervescente que eles próprios transformaram. E vê-los, por fim, voltar ao balneário e ocupar instintivamente os seus lugares, só para Scholes e Beckham constatarem, com um orgulho mal escondido, que a meio deles ainda pendia a camisola de Giggs.

The Class of 92 é uma gema para qualquer amante de futebol. Tem um carisma vivo, arrepiante, quase difícil de acreditar. É uma peça histórica, emocional e indispensável, que isola o jogo até à partícula de Deus que o define como maior espectáculo do mundo.

8.5/10

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Inside Llewyn Davis. Os Coen voltaram a fazer magia em negro


A minha relação com os irmãos mais glorificados do mercado foi sempre de amor-ódio. Estreei-me com No Country for Old Men e fiz, pelo menos, mais dois filmes a tratá-los como um caso perdido, até ter-me deparado com a demência vagamente genial de Big Lebowski. Voltariam, depois, os chutes ao lado até que, em 2010, curiosamente na repetição da parceria com Jeff Bridges, rendi-me a True Grit e concedi-lhes, de vez, o benefício da dúvida. É difícil gostar dos Coen, até porque eles fazem muito pouco por isso, na sua escrita sempre labiríntica, auto-absorvida e non sense; acontece, porém, que a loucura e a iluminação andam não raras vezes lado a lado, e é certo que, quando acertam as agulhas, o resultado final pode ser impactante. Inside Llewyn Davis, não sendo alheio a algumas das suas idiossincrasias difíceis, é um filme a que é impossível resistir. Pelo irrecusável romantismo triste que plasma, pela alma com tanto carisma quanto cicatrizes e, definitivamente, pelo seu monumental contexto, banhado a folk dos pés à cabeça. É um filme eminentemente musical, que materializa a nível visual todo o peso, a melancolia e a aura das suas canções.
"You've probably heard that one before. If it isn't new, and it never gets old, it's a folk song."
Sou um fã supremo do estilo e, portanto, sou suspeito para avaliar um filme que o homenageia ostensivamente em todos os momentos. Quem gosta de folk precisa mesmo de ir vê-lo o mais rápido possível, mas acho que ninguém poderá ficar indiferente ao seu perfume. Só a primeira sequência, com Oscar Isaac a interpretar a uma cena inteira, sem cortes, Hang Me, oh Hang Me, de Dave van Ronk, num café-concerto subterrâneo, em lusco-fusco, é magia em estado puro e amor à primeira vista. Num registo, aliás, que lhes brota sem esforço, ninguém poderia ter executado este espírito melhor do que os Coen. O cinzentismo do seu olhar deixa-nos inevitavelmente lânguidos e cola-se-nos à pele, fazendo-nos doer tanto quanto possível a desolação do seu protagonista. As suas cidades frias, os seus planos vazios, o permanente vaguear para lado nenhum e a frustração agreste repelem-nos mas, de repente, somos presenteados com instantes como cantar numa sala de espectáculos deserta, em segundos oníricos, cristalizados e impermeáveis a tudo de mau, que nos deixam num quase transe. A esmagadora maioria das músicas do filme são cantadas integralmente e ao vivo, e pode-se bem imaginar o efeito catártico que isso causa. Não sendo preciso reforçar, Inside Llewyn Davis tem efectivamente uma banda sonora boa demais para ser verdade, uma das melhores que ouvi na vida.

A história é a de uma semana na vida de um cantor-compositor na cena musical de Nova Iorque, no início da década de 60. Llewyn Davis é um vagante, sem dinheiro, reconhecimento e quase sem abrigo, que tenta derrubar a cada novo dia o fracasso que o destino lhe prescreveu. Desengane-se, porém, quem pensa que este é um filme lírico, motivacional, moral. Não é o filme, nem nunca foram os Coen. Llewyn Davis não tem nada de poético ou sonhador. É um cáustico, orgulhoso demais do talento para mudar de vida, mas sempre amargamente consciente de que não lhe espera a sorte nem um final feliz. O resultado cativa tanto porque se sustenta, de facto, nessa ideia intrínseca de falhanço. Davis é tão notável porque não tem esperança, porque sofre com cada uma das suas canções e porque as concretiza com uma negritude e um desalento que lhe vêm do fundo da alma, num estilo onde só se pode ser verdadeiramente bom se doer o que se está a cantar.

Oscar Isaac assina uma prestação tão boa como lhe era possível pedir. Cada bocado daquilo está-lhe no sangue e custa-lhe pela vida, e não pode haver proveito maior para um actor do que impingir-nos isso de forma tão genuína. O carácter auto-destrutivo, a maneira como se desiludiu a si próprio e se despreza, as perdas de cabeça e as sujeições a quase tudo, ao sabor do vento e sem amor próprio que sobre, edificam uma das mais simbólicas prestações do ano. Num elenco capaz, Carey Mulligan também soma pontos, numa figura corrosiva que agride o protagonista ao ponto de personificar, em parte, o fel que o consome.

Inside Llewyn Davis é uma peça requintada e profunda, incrivelmente coesa na fusão entre a história contada e cantada, senhora de um bom gosto que chega a pasmar. Ter sido esquecida pelos Óscares é o tipo de humor negro que nem os Coen teriam coragem de fazer.

8.5/10

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Rush. A excelência de uma crónica supera sempre o seu assunto


Mais do que acção cativante, consistente ou bem feita é, acima de tudo, um tributo. Primeiro, ao dramatismo verdadeiramente cinematográfico que eternizou o Mundial de Fórmula 1 de 1976, depois, e mais importante do que isso, à rivalidade icónica entre dois homens que marcou de forma tão profunda essa década. Rush é um autêntico desportivo de luxo, muito fácil de interessar e naturalmente popular, cuja capacidade para contar a sua história o tornou, de facto, num dos maiores produtos do ano, só idioticamente desterrado pelos Óscares.

James Hunt vs. Niki Lauda. Um incorrigível playboy inglês apaixonado pela vida e por tudo de bom que ela tem para dar, carismático, talentoso, com um carácter que o tornava único na pista. Do outro lado das boxes, um austríaco quase matemático, disciplinado em cada gesto, maquinalmente racional em cada opção, devoto à excelência em cada pormenor e obstinado com a glória. Uma rivalidade que começou pela base, nos confins da Fórmula 3, e que os levou ao topo do mundo, desafiando-se um ao outro de forma extraordinária e, com isso, todos os seus limites. Os que conhecem a história não poderão negligenciar o nível do revivalismo; os que, como eu, não desconfiavam de cada bocado do que ela envolve, jamais ficarão indiferentes. Trabalho brilhante de Peter Morgan no guião, mais um, ele que já assinou, entre outros, Frost/Nixon ou The Damn United.

Narrado por Lauda, o argumento gere de forma notável a profundidade dos personagens, emprestando densidade ao mais agreste e ligeireza ao mais simbólico, num equilíbrio que acaba por fundir-se às mil maravilhas. Com a acção e a corrida omnipresentes, a natureza do filme não é reflexiva, mas este consegue ser surpreendentemente atraente nesse campo, nas linhas fortes e na moldagem contínua dos protagonistas. E tem um mérito que, pessoalmente, ponho sempre nos píncaros: ter um fim de ouro que, em vez de se desvanecer, eleva tudo um degrau acima. A realização de Ron Howard - responsável por alguns dos meus filmes preferidos de sempre (Cinderella Man, A Beautiful Mind) - é de alto calibre, e sem ter de se evidenciar muito dá ao filme tudo o que ele precisa para fluir. É irrepreensível nas sequências de velocidade, agressiva nos momentos susceptíveis e tem uma lente sempre chamativa, muito experimentada, com que nos identificamos sem esforço.

Não simpatizo com Chris Hemsworth e ainda não foi desta que ele me surpreendeu. É facto que a sua personagem tinha traços propositadamente leves, que lhe condicionavam alguma coisa para efeitos da história, mas a figura era fácil de agarrar e de cativar. Hemsworth não está mal enquanto poster boy, como bom-vivant sempre com duas linhas espertas para dizer, mas há nele qualquer coisa de plástico a que é impossível escapar. Não é no personagem, é nele mesmo. Apesar de não ter vitimado o filme, um actor um pouco mais capaz teria facilmente feito melhor. Já Daniel Brühl faz valer plenamente o alcance do seu Lauda. Não é o homem frio que se reinventa e que, com o decorrer do filme, se passa a acarinhar. É o que se aprende, isso sim, a respeitar absolutamente, numa jornada excepcional de fazer. Compreendemos o seu primado do pragmatismo, admiramos a sua excelência competitiva e, mais do que qualquer outra coisa, o seu desígnio. Brühl tem e capitaliza um papel riquíssimo, e é outro dos esquecimentos mais ingratos da Academia.

Rush é um filme do qual é inevitável gostar. É muito fácil de seguir e de apreciar, e compõe-se com naturalidade, até darmos por ele e percebermos o quanto é um grande filme. Um obrigatório de 2013, para os fãs da modalidade e para todos quantos saibam reconhecer a excelência de uma crónica quando a vêem.

8/10

The Wolf of Wall Street. A vitalidade de Scorsese, o génio de DiCaprio e um filme que alguém se esqueceu de cortar


2013 ofereceu um catálogo vasto e multifacetado. Histórias altamente aguardadas, ideias de risco e performances de celebração bastante antecipável. Blockbusters, filmes de autor e clássicos de peso. Todo um manancial que sugeriu, contudo, uma certeza maior do que as outras: se Scorsese e DiCaprio iam entrar em campo, a coroa da pré-época era entregue ainda antes do jogo começar. 12 anos depois da primeira vez, a parceria entre os dois já era pouco menos do que um trilho gravado a ouro e pedras preciosas. De Gangs of New York a Aviator, de Departed, e do histórico primeiro Óscar de Scorsese, a Shutter Island, para mim o melhor de todos, a carteira de uma das parelhas mais icónicas do último quarto de século dispensava, sequer, considerações. O Lobo vem entrar neste palmarés como, possivelmente, o mais subjectivo dos seus elementos. É o filme mais longo (três redondas horas) e, de forma algo surpreendente, o mais arriscado. A máxima de que os dois juntos jamais podem fazer um filme mau mantém-se intocável, mas acho que, desta vez, o produto final ficou à margem do que poderia ter sido. Com uma realização admirável e uma excepcional performance individual, mas a ser incapaz de, no fim das contas, ser efectivamente um filme inesquecível.

Como é possível que um grande lead e uma grande câmara façam um filme discutível? Na minha opinião foi essencialmente um problema de conceito e considero que, de facto, se pode ser muito bom a fazer algo que devia ter sido melhor pensado. Acho que, por esta altura, já toda a gente deve ter visto um trailer, lido qualquer coisa ou ouvido algum comentário. A biografia é a de Jordan Belfort, nome histórico e excêntrico de Wall Street, um self made millionaire no mundo surrealista da especulação em Bolsa dos 90s, que viveu a sua jornada com direito a tudo - e o tudo é literal, sendo o filme fiel a isso -, até ter soçobrado numa investigação de fraude financeira, ainda precoce à catástrofe natural que aconteceria anos depois. Numa palavra, a vida de Belfort era uma overdose. De dinheiro, mulheres, carros, casas, festas, excentricidades. E de droga, claro. Muita, muita droga. Toxicodependente assumido, o seu dia-a-dia era uma permanente viagem de todas as cores e a todas as velocidades, capaz dos excessos mais brutalizantes. Foi por aí que Scorsese lhe pegou.

The Wolf of Wall Street é um filme de três horas em fast forward. Não porque passa muito rápido, mas porque tudo o que acontece em cena é esbaforido, intenso, levemente doentio. Nesse quadro de fundo, o trabalho de Scorsese é, de facto, brilhante. A vitalidade, a energia e a criatividade que um dos maiores de sempre é capaz de continuar a imprimir aos 71 anos é qualquer coisa de alucinante. A vontade de se reinventar e de arriscar não pode deixar ninguém indiferente e essa realização de desfazer o sistema nervoso rende cenas que deslumbram, desafiando a nossa concentração e correndo quase sempre à nossa frente. Isso resulta muitas vezes e, acima de tudo, é sempre muitíssimo bem executado. Ao fim de três horas, porém, torna-se um pouco auto-destrutivo.

The Wolf of Wall Street acaba por ser um filme exaustivo que, ao materializar o excesso do seu protagonista, se excede ele próprio no interesse para o espectador e no engenho da narrativa. É, em suma, um filme que gasta, que, apesar da cadência, não consegue ser importante o suficiente para justificar uma tão longa segunda metade e que, ainda por cima, é acabado de uma forma inócua demais para fazer-lhe jus. Os méritos de Terence Winter não são questionáveis (argumentista principal de Sopranos e criador de Boardwalk Empire) e a sua adaptação do livro de Belfort é óptima na caracterização do espaço, do ambiente e dos personagens. Parte substancial da própria acção é igualmente forte. No global, porém, faltou-lhe inspiração para destrinçar formalidades cronológicas da história e para acabar com o lance deslumbrante que se exigia.

DiCaprio é um monumento, ao nível do que de melhor já fez na sua prodigiosa carreira. Se o olharmos nos olhos, jamais podemos deixar de acreditar que ele é o próprio Belfort e que viveu cada bocado daquela luxúria inebriante, cada passo daquela loucura descompassada. Fora as chapas assombrantes que acumula, o que é verdadeiramente notável é a intensidade que empresta a cada um dos 180 minutos da fita, como se as pilas e as suas pastilhas nunca se pudessem gastar. É uma interpretação esmagadora e genial que o coloca, automaticamente, como o meu favorito para chegar ao Óscar que, para lá de tudo o que é racional e crível, ainda não tem. Os Globos já lhe deram um aperitivo (ainda que na ridícula partição de categorias, tenho sido o Melhor Actor... Comédia), mas agora é a vez da Academia ajustar contas com o passado. Perder para Mat McConaughey, no filme mais fácil do ano, seria uma barbaridade histórica.

Devo reconhecer que também fiquei contente com a nomeação de Jonah Hill, que os Globos esqueceram, para Secundário. Depois da primeira indicação injustificada com Moneyball, Wolf é um verdadeiro atestado de maioridade num tipo de papel muito característico, de alguém que nunca se imaginou poder vir a jogar neste campeonato. Esta crónica não estaria completa sem falar em Margot Robbie, que desconhecia, e que deve ter transtornado, no sentido mais apaixonante de todos, qualquer alma que já tenha visto o filme.

The Wolf of Wall Street é uma obra importante e com grandes predicados. Um corte a direito na última hora e um fim menos linear, quiçá num pico da história, eram a fórmula para tê-la eternizado num outro patamar.

7/10

sábado, 18 de janeiro de 2014

O pós-Globos e o pré-Óscares


Ainda não tinha havido tempo para fazer o balanço do pontapé de saída e como a temporada dos prémios não espera por ninguém, há que aproveitar a boleia para também avaliar, desde já, as nomeações da Academia. Com uma ou outra surpresa maior e as habituais desconsiderações imperdoáveis, confirma-se a ausência de um candidato que vá açambarcar estatuetas. A tendência é a de dividir para reinar. Com os Critics Choice a também já terem laureado quase um a um os vencedores dos Globos, os favoritos já não são, por ora, branqueáveis.

A cerimónia
Antes demais, voltar a Domingo e à envolvência dos Globos de Ouro. Faltaram umas quantas caras conhecidas, mas plasmou, como sempre, aquele delicioso carisma informal dos prémios, de toda a gente na mesa e de copo na mão, a fazer conversa cruzada, a sorver o ambiente e a rever amigos, mais do que a fazer contas ao que se ganha e ao que se perde. Aquele que, no fundo, sempre foi e continua a ser o seu traço mais marcante. O alto da noite foram os discursos. Os Globos 2014 tiveram um dos melhores conjuntos de aceitações de que me lembro, com DiCaprio acima de todos, mas igualmente com McConaughey, Jenny Lawrence e Amy Adams, Amy Poehler e Breaking Bad. O hosting, pelo contrário, esteve à margem de outras noites e, sobretudo, do que Tina Fey e Poehler tinham feito no ano passado. Com duas ou três grandes tiradas, mas com um registo abertamente morno e baço, a soprar o fantasma de Gervais a cada curva.


Slave e Gravity racharem prémios por linhas tortas
Era antecipável que acontecesse, mas saiu exactamente ao contrário de como desejava. 12 Years a Slave levou o prémio mais ambicionado da noite - que já repetiu no Critics Choice - e confirmou-se como favorito ao Óscar, chancelando Alfonso Cuáron o prémio individual. A ironia é que, se na Realização, Steve McQueen foi melhor mas a vitória de Cuáron será sempre inatacável, já no plano fílmico, Gravity é necessariamente superior a Slave. Como, de resto, já é normal nestas alturas, a adoração a que a elite da crítica votou este último, e que o carregará até ao dia D, dá-me um nó ao discernimento. Atentando, por sua vez, à corrida a melhor filme da Academia que lhe sucedeu, destacar uma decisão integralmente incompreensível: deixar Rush à porta quando, não só é melhor filme do que metade dos nomeados, como só foram ocupados nove dos dez lugares possíveis nas indicações...


Os anéis de American Hustle
A nova jóia de David O. Russell foi a mais lucrativa da cerimónia de Domingo e, a meio da semana, não fez por menos, repetindo o feito histórico alcançado por Silver Linings Playbook no ano passado: as sete grandes nomeações da Academia. 30 anos depois, O. Russell garantiu-o duas vezes seguidas!, fazendo o absurdo de repetir o melhor filme do ano e de confirmar, para lá de qualquer dúvida, o seu toque de Midas. Isso tudo e a grande forma de Hustle deve, ingratamente, ser relativizada. A vitória em Musical/Comédia só foi possível pela partição de categorias dos globos, o mesmo valendo para o triunfo de Amy Adams. Não têm ambos hipóteses nos Óscares. Só Jenny Lawrence assumiu, de facto, uma candidatura efectiva à segunda estatueta consecutiva. Pessoalmente, Hustle arrebatou três globos mas a história da noite conta-se com a dolorosa derrota em Argumento Original, no qual acreditava piamente. Her, de Spike Jonze, venceu e já acumulou, igualmente, o Critics Choice, deixando meio caminho feito. Como ainda não vi, vou evitar destilar ódio com convicção, para já.


O fenómeno Dallas Buyers
Se a propensão por Jared Leto era evidente, já a vitória de Mat McConaughey foi uma surpresa boquiaberta. A minha opinião sobre o filme já a deixei bem explícita: papéis extremamente polarizados, com o clamor por prémios colado à testa mas que, preto no branco, ficaram a muitas milhas do que podiam ter feito. Para mim, tanto num caso como noutro, a sugestão da sua figura real, e não o que fizeram efectivamente, tem sido a medida do seu reconhecimento. Escusado será dizer que olho para Dallas Buyers Club como o cavalo de Tróia do ano e ainda me custa a acreditar no estrago que pode vir a causar. Em particular, ao tirar autenticamente das mãos de DiCaprio o seu - e é surreal escrever isto - primeiro Óscar. Mas também pela naturalidade com que já se atesta a derrota de Fassbender em Secundário, numa exibição terrivelmente superior.


O desterro de Captain Phillips
Não era um candidato "para ganhar", mas nada justifica o grosseiro desprezo da Academia. Que Tom Hanks tenha ficado fora da corrida a Melhor Actor é, sem margem para questões, o absurdo do ano. Pondo-o de uma forma simples, a sua última cena, apenas, é mais nomeável do que somado aquilo que fizeram McConaughey e Ejiofor. É de um patamar alheio a um ano ou a um filme que correu bem, coisa a que só muito poucos têm capacidade de chegar. Do mesmo modo, em Realização, parece-me que Paul Greengrass não podia ter sido esquecido. A sua direcção é intensa e cirúrgica, temporizada brilhantemente e fulcral para o resultado final. Salvou-se, ao menos, a indicação para Melhor Filme.

  
O adeus quase pleno de Breaking Bad
Em ano de despedida, Breaking Bad ganhou a noite televisiva no Beverly Hilton Hotel, como se esperava, com aqueles que foram, apenas, os seus dois primeiros globos. Todavia foi assaltado onde jamais poderia: Aaron Paul passou amargamente à História sem ganhar um prémio que merecia por decreto, mais do que qualquer outra pessoa naquela sala. Robin Wright, por sua vez, marcou justamente o ponto de honra de House of Cards.

A escalada vai continuar até 2 de Março, com os prémios de todos os Sindicatos e os BAFTA.Tempo para saldar as contas que faltam e avaliar o alcance de Nebraska, Her, Philomena e Osage County, e o esquecimento de All is Lost e Inside Llewyn Davis.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Globos 2014. O telegrama


Com toda a pompa e com toda a circunstância, os Globos de Ouro darão, como sempre, o luxurioso mote a mais uma viciante temporada dos prémios grandes do cinema. Daqui a pouco, no salão de festas do Beverly Hilton Hotel, começará a ser escrita a crónica de um 2013 generoso e marcante. Vamos, então, a ele, em jeito de bloco de notas:

- Gravity sobre 12 Years a Slave, pelo conceito inovador, pela criatividade, pela densidade do seu ideário e pela experiência cinematográfica. 12 Years é um clássico instantâneo, executado brilhantemente, mas sempre mais majestático do que cativante.

- Tom Hanks sobre Chiwetel Ejiofor, não para pungir a implicância, mas porque Hanks fez o filme ao nível dos velhos tempos e Ejiofor foi feito por ele, jamais conseguindo transcender o personagem.

- Sandra Bullock sobre Cate Blanchett, não porque esta não tenha tido uma performance admirável, tão genuína na forma como agarrou a escrita de Woody Allen, mas porque o alcance bestial de Bullock foi demasiado significativo para que passe em claro.

- American Hustle sobre The Wolf of Wall Street, já que, pese a vitalidade de Scorsese e o festival de DiCaprio, o contrário seria um escândalo. Wolf é bom mas só de uma forma exaustiva, Hustle é irresistível e contagiante, espectacularmente bem escrito, com uma grande realização e performances ainda melhores.

- DiCaprio sobre Chris Bale, porque ficando rendido a Bale, DiCaprio é pornograficamente bom.

- Amy Adams sobre Julie Delpy. Ficava contente se os Before se despedissem com um grande prémio, mas Adams foi claramente superior.

- Michael Fassbender sobre Jared Leto, para premiar a verdadeira e palpável excelência interpretativa, e não um papel que, no fundo, se cozinhava a si próprio.

- Lupita Nyong'o, por merecimento, ainda que nunca ninguém me verá escrever que Jennifer Lawrence não justifica qualquer prémio do sistema solar.

- Steve McQueen sobre Alfonso Cuarón, David O. Russel e Paul Greengrass, na categoria mais notável da noite, porque, não tendo feito o melhor filme assinou, com um requinte inacreditável, uma obra-prima estética.

- American Hustle para Argumento. Porque, caso contrário, a Associação de Imprensa Estrangeira merece uma bomba. 

- Na Televisão, racional era que House of Cards e Breaking Bad dividissem Melhor Drama e Melhor Actor. Porque Breaking Bad é o colossal obrigatório, mas pelo carisma, pela novidade e pelo génio de Cards.

- Vou deixar escrito "Masters of Sex", pela ingratidão que era não falar dela nesta hora. Aliás, conto que ainda vão a casa de Lizzy Caplan entregar-lhe o Globo de Melhor Actriz, justificando com um erro técnico a sua idiótica ausência nas Nomeações.

- Zooey Deschanel com um ano de atraso.

- Aaron Paul, compulsiva e absolutamente.

- E, finalmente, aplaudir de pé o Cecil B. DeMille Award para Woody Allen. Ele não quer saber, mas nós ficamos orgulhosos na mesma. E matamos saudades de Diane Keaton.

A partir da meia-noite, num canal que aparentemente se chama SIC Caras.

O teste do tempo



"I will survive. I will not fall into despair. I will keep myself hardy until freedom is opportune" 
Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), 12 Years a Slave 

É uma das frases da ordem, em noite de Globos de Ouro, e tornou-se insistente durante o derby. É que, de forma improvável, também consegue lê-lo a uma luz especial. Ver o que o Benfica jogou hoje é a constatação de como a paciência é mesmo uma das virtudes mais determinantes no futebol, como na vida. O Benfica passou os últimos três anos a ser humilhado pelo rival de todas as formas a que a imaginação permitiu chegar, perdendo os jogos fáceis, os jogos difíceis e todos os outros pelo meio. Foi uma equipa muito boa quase sempre, mas assombrada de cada vez pela ideia de que essa capacidade não era mais do que pó no vento. Um onze digno e esforçado, que se tentou sempre abstrair desse medo, mas que, por melhor cara que tenha feito, jamais se conseguiu dissociar do mau pressentimento que lhe gritava aos ouvidos que a morte estava ali, à espera, ao virar de cada próxima esquina.

Cada um terá a sua opinião sobre a continuidade de Jorge Jesus. Eu acho que ela não fez sentido. O facto é que o treinador do Benfica sobreviveu. Contra quase tudo e averso à razão que, na magia negra do pontapé de Kelvin, lhe explicou que já não valia a pena, Jesus subsistiu agarrado à ilusão da oportunidade que estava para vir. Como um jogador de poker que viu as fichas esvaírem-se como sangue, mas que sabia ter de esperar pela sua jogada. A sua mão, poderosa, decisiva e indiscutível, e que não chegaria nem um momento antes, nem um momento depois. Jesus teve hoje um dos seus melhores jogos de sempre pelo Benfica, não porque esfacelou o adversário, não pela nota artística, não porque isto defina alguma coisa, mas porque provou que era possível. Porque teve de ir ao Inferno primeiro, mas soube enxergar o seu momento quando ele chegou.

O Porto esteve bem nos bastidores. Durante a semana, os media proclamaram o histórico recente entre ambas as equipas, como se fosse necessário. Vítor Pereira veio reiterar a maneira como conseguia agredir o jogo adversário e como esse tinha sempre de mudar por causa dele, e Paulo Fonseca provocou ao dizer que Jesus não teria coragem de entrar com dois avançados. O Benfica ganhou pela forma como soube estar perante tudo isso desde que entrou em campo. O Porto está mais fraco, é evidente que sim. Bluffou como devia mas apanhou pela frente um adversário calejado a ferro e fogo que, mais do que não o temer, nunca o respeitou.

Isto não é o mesmo que dizer que o Benfica só podia ganhar a um Porto 'diminuído'. É que esse é um estado discutível, como a História o evidencia fartamente, e porque, se cada equipa tem idiossincrasias, a do Benfica era não ganhar por decreto. Esta é, pelo contrário, uma crónica de mérito, sobre a vitória inegável de quem, tendo um uma memória recente tão corrosiva, soube fazer acontecer em campo a sua superioridade, algo muito mais difícil do que pode parecer à primeira vista. Enzo e Matic foram perfeitos, nesse duplo-pivot de sonho em vias de ser destruído, como foram determinantes Luisão e Gaitán.

Já sobre o mais estupendo de todos, permito-me ao parágrafo só para escrever: Lazar Markovic. O resto é para quem viu.

Claro está que as equipas não jogam sozinhas e que as vitórias dificilmente se fazem só do merecimento de quem as ganha. Mesmo que venha a ser campeão, acto que os registos consideram provável, Paulo Fonseca deixou hoje demasiado a nu tudo o que lhe falta para estar a este nível. Já falei aqui dos restantes dilemas conjunturais que rodearam a equipa nesta época, mas tudo isso é chutado para plano de fundo se virmos o que o Porto não jogou hoje na Luz. Aliás, nessa antítese, o seu único mérito foi conseguir que o rival também não jogasse durante uma parte (num jogo monstruoso de Fernando, o tipo de jogador que já vem com chip para poder jogar alheio às insuficiências que o ladeiem). O Porto foi macio, desencantado e perdido, tanto como o olhar baço e os braços cruzados do seu próprio treinador. Não teve uma solução para criar, jamais desequilibrou e saiu da Luz com uma anoréctica oportunidade de golo. Fonseca foi o pastor de um constrangedor rebanho de sacrifício e, avaliando o que têm sido os Benfica-Porto, isso fala de tudo alto demais.

A corrida ao título é finalmente primeiro-mundista e isso é uma boa notícia para todos, ainda que hoje, como é bom enaltecer sempre, não se tenha ganho nem perdido nenhum campeonato. Para os adversários do Benfica, porém, é impreterível ter bem presente que alguém acabou de superar o mais terrível de todos os seus traumas.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Blue Jasmine. A viagem anual ao culto


A questão tende a ser simples: o melhor argumentista original de todos os tempos não faria um filme mau nem se tentasse. O Mestre não pode, portanto, ser avaliado pela medida dos outros. A cada ano, não é importante se as suas obras são melhores ou piores, mas que a renovada oportunidade para beber da sua psicologia filosofal seja, em vez, devidamente aproveitada. Como não podia deixar de ser, Blue Jasmine é, pois, um Woody Allen dos pés à cabeça.

Usa e abusa das relações, retratando o conforto passageiro e o desalento permanente, até encarar a sua profética fatalidade e a solidão inevitável. Tem o olhar único sobre as peculiaridades do ser humano, com as suas tão caras compulsões mentais e a sua doce e omnipresente loucura, e tem personagens sempre descoladas da banalidade do quotidiano, reflectindo cruamente sobre as motivações e as necessidades de cada um, sobre a forma como as pessoas se vêem e sobre o que gostavam realmente de ter. E não esquece, claro, as ironias do destino, desterrando de forma cáustica qualquer justiça e qualquer sorte do universo. O conto trágico da socialite nova-iorquina que hostilizava a irmã até cair na mais rotunda pobreza conduz-nos em nova viagem por um ideário único, cujo génio para pintar o mundo e as pessoas, à beira dos 80 anos, não parece capaz de cessar o fascínio. Haverá quem olhe para o reconhecimento ao trabalho de Woody Allen e o ache, hoje em dia, meramente glorificado. Eu diria que ninguém que consuma os seus filmes pode, em consciência, sonegar que cada novo guião seu é um Melhor Argumento em potência, nomeável por decreto.

Depois de dois anos na Europa, o Mestre voltou aos Estados Unidos, no caso a São Francisco. Sou suspeito, porque acho que o seu roteiro Londres-Barcelona-Paris-Roma teve uma mística histórica, e mantenho que assistir ao Velho Continente pela sua lente tem sido uma experiência impagável que, espero, ainda esteja longe de se completar. Seja como for, e reiterando que estávamos mal habituados com os seus passeios recentes, Allen pinta São Francisco com uma cor e um prazer irrecusáveis. Com o talento para procurar lugares e focar pormenores, e com aquele jeito único de fazer-nos sentir sempre parte disso que vemos à nossa volta.

Cate Blanchett tem um papel muito interessante, muito mais quente e mais metamórfico do que lhe é habitual. É uma mulher perturbada e em negação, com um feitio agreste e muito amassada pelo passado recente. A fragilidade com que tenta recompor-se pelas próprias pernas, numa profunda desadequação ao mundo a sério, é woodyanismo por excelência, interpretado a um nível tão genuíno que lhe merece todo o aplauso. A cena em que está a falar ao telefone e tira três segundos para chorar, apenas por sentir uma nesga de chão a recolar-se novamente sobre os seus pés, é génio em estado puro. Não gostei de Sally Hawkins - banal em quase tudo, foi uma opção para lá de discutível -, mas o resto dos secundários compensou. Pessoalmente, destaco a hipertensão do grande Bobby Cannavale, a naturalidade de Louis CK a agarrar papéis (ano muito feliz no cinema) e o óptimo cast de Andrew Dice Clay.

Colocando as coisas em perspectiva, é impreterível reconhecer que Blue Jasmine não é um filme inesquecível. Não tem um toque especialmente único e não estaria, inclusive, nos meus cinco favoritos da galeria na última década. No entanto, como disse no início, isso só seria uma razão preponderante para os muitos mortais que apenas podem sonhar com o seu talento. No resto, e mesmo sabendo que ele não vai comparecer, saberá bem que os Globos de Ouro o honrem amanhã com o prémio carreira.

7/10

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Dallas Buyers Club. A diferença entre grandes histórias e grandes filmes


1985. Num Texas tacanho, muito próprio às suas idiossincrasias, um electricista da construção civil, performer de rodeos nas horas vagas e óptimo vivant a tempo inteiro, acorda num hospital para lhe dizerem que acusou VIH positivo e que tem 30 dias de vida. Figura carismática entre os seus, vê o mundo que conhecia ruir num estalar de dedos, a partir do segundo em que o boca a boca sanguinário o passa a conotar com a doença dos homossexuais. Começará, assim, a jornada verídica de Ron Woodroof à procura da cura impossível, num caminho que o levará a construir pontes com que nunca sonhou e a transformá-lo, de redundante abusador de álcool e drogas, em activista de uma causa inteira.

Dallas Buyers Club era um filme à espera de ser feito. Isso não significa, no entanto, que era mais fácil de fazer por isso. Se uma história inventada pela base depende do génio, um conto da vida real nunca pode triunfar sem engenho. Sem um guião e uma câmara que superem, no fundo, o que toda a gente já sabia. A magnitude da realidade é só o generoso ponto de partida. O resto é a arte de a contar, medida que separa os excelentes dos outros. Dallas Buyers Club é, infelizmente, um exemplo acabado de quem fracassou nessa elaboração.

Craig Borten e Melisa Wallack, ele um estreante e ela depois de duas longas-metragens sem expressão, conceberam um texto manifestamente deficitário para o alcance do que tinham em mãos. O filme não tem uma gota de alma e jamais nos agarra, contagia ou exalta. Arrisco a dizer que não há ali uma linha que o faça melhor do que a efectiva história real. É um trabalho sem risco e sem rasgo, quase documental, melancólico e antecipável, onde as âncoras emocionais soam sempre forçadas, como se estivessem ali por decreto, num cronograma invisível. Isso contaminou decisivamente a prestação dos actores, que até sugeriram estar à altura do desafio mas que não puderam remediar a escassez de liberdade e de estímulo.

Jean-Marc Vallé, outra face com trabalho de menos a falar por ele, também passa indistinto pelo filme o que, no caso de um realizador, é tanto pior. Não se percebe um conceito, não se sente agilidade, não se encontra uma grande cena. Em suma, nada que não pudesse ter sido feito por uma centena de outros. Vallé foi um tarefeiro, que se limitou a cumprir os serviços mínimos e a entregar um filme quadrado a tempo e horas.

As interpretações são melhor notícia, de facto, ainda que, ao contrário da chuva de nomeações, não me pareçam galardoáveis. McConaughey vinha de um filme divino como Mud e segurou-se dentro do possível, sem deslumbrar. É o homem simplório e pouco instruído, mergulhado nos prazeres da vida, que o universo fará carregar às costas o peso do mundo. O estilo arruaceiro e a debilidade física dão-lhe identidade, mas acabam por fazê-lo um pouco artificial. Seja como for, é sua a única grande cena do filme, num diálogo sobre o futuro com Jennifer Garner (muito má escolha de cast). Jared Leto, por sua vez, tem um papel grosseiramente estilizado, que o tornou num nomeado obrigatório desde a primeira cena que fez. Confesso que tenho dificuldade em avaliar performances tão polarizadas, mas reconheço que a sua descarnação física e mental acaba por ser importante para o filme. No global, tenho todavia de sublinhar que, mesmo sendo a circunstância de ambos tão violenta, o seu registo nunca é poderoso o suficiente para nos conseguir agredir. Que um filme destes não passe quase nada é a epítome do seu falhanço.

Dallas Buyers Club é uma grande história humana ferida pelo amadorismo de quem a executou. Condenou-se, por isso, a ficar inapelavelmente à margem de si própria.

6/10

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

American Hustle. Às vezes parece fácil


No ano passado, David O. Russell assinou aquele que muito apregoei como o melhor filme de 2012. Silver Linnings Playbook foi uma jóia de coroa, uma celebração rara do cinema comercial ao nível do que de maior se faz na Sétima Arte. Rendeu o Óscar de Melhor Actriz a Jennifer Lawrence e foi o primeiro filme em 30 anos a cometer a proeza de chancelar todas as sete grandes nomeações da Academia. A antecipação do que seria o próximo passo tornou-se, como é normal, inevitável. American Hustle confirma, um ano depois, que O. Russell é, de facto, um dos mais fascinantes contadores de histórias do grande circuito. A forma como as engrandece até onde não parecia possível que pudessem chegar, como lhes injecta vitalidade e como potencia o cast que tem ao seu dispor, se não é caso único nos dias que correm, andará muito perto disso.

American Hustle seria um filme sempre normal caso não fosse concebido por um visionário. A adaptação livre dos factos que, no fim da década de 70, levaram à prisão de congressistas e de senadores americanos, num golpe de subornos patrocinado pelo FBI, teria sempre sumo e seria fácil de fazer; o filme jamais correria tão bem, contudo, sem a extraordinária caracterização das personagens. Como nas maiores obras, a acção acaba por ser só o secundário do que ali acontece. American Hustle é um filme sobre pessoas, sobre motivações, sobre o que se queria ser e o que não se pode ter, sobre desejo e aceitação, ambição e sobrevivência e, acima de tudo, sobre o que é real num mundo de mentiras. Tem um texto estupendo a todos os níveis, no ângulo, na reflexão, na narração e nos notáveis diálogos. O argumento de O. Russell, em parceria com Eric Singer, surpreende-nos sucessivamente pelo nível até onde chega, pela intimidade e pelo realismo, e transcende em muito o filme que já estaria feito mesmo sem ele.

Para além disso, é uma obra cheia de vida. Reforço a cadência e a inteligência dos diálogos que lhe ceifam quase todos os tempos mortos, mas enalteço a cor, os ambientes, o barulho. É um filme com uma envolvência permanente, com muito movimento e muito burburinho de fundo, que abdica de concentração para nos encadear no melhor sentido. Capta notavelmente o espírito e os espaços dos anos 70, sendo burlesco, enleante, muitas vezes sensual. A câmara hiperactiva e curiosa de O. Russell faz o resto, sempre à procura de mais um palmo, sempre a fazer de conta que é o próprio espectador a perder-se na descoberta de cada nova cena. A somar isso, qual cereja no topo do bolo, o filme desfruta da playlist mais viciante do ano.

Actualmente, trabalhar com David O. Russell deve ser um privilégio para qualquer actor. No ano passado, o nova-iorquino garantiu o abuso de colocar um nomeado em cada uma das quatro categorias individuais... e, até ver, já o repetiu agora nos Globos. Christian Bale e Amy Adams são quem brilha a maior altura. Ele é uma figura peculiar, com barriga e sem cabelo, alheio a qualquer glamour, mas senhor daquele engenho extraordinário que só se aprende na rua e nos momentos de necessidade. Tem nos olhos a luz dos que sobrevivem sempre, mas jamais se distancia da sua simplicidade e do seu bom fundo. É ele quem canaliza a essência do filme, num papel riquíssimo e de empatia invejável. Amy Adams é o melhor de dois mundos, uma mulher espantosamente sensual e de recursos infindáveis para conseguir o que quer mas, ao mesmo tempo, terrivelmente vulnerável na procura por um pilar genuíno que a sustente no universo falso que criou à sua volta. Prepara-se para chegar à 5ª nomeação nos últimos 9 anos!, o que diz quase tudo sobre o seu talento.

Figuras maiores do ano transacto, Jenny Lawrence e Bradley Cooper voltam a dizer presente na etapa decisiva. Ela sobretudo, que capitaliza com o seu poderio incandescente um papel volátil e que provavelmente ficaria cingido nas mãos de alguém com um pouco menos de carácter. Cooper tem mais espaço e chega a reunir vários momentos estruturantes, todavia a certa boçalidade da personagem não o ajudou. Num elenco que era, de facto, de grandíssimo nível, ainda merecem reconhecimento Jeremy Renner, na pele do político de grande coração, vítima ingrata do momento e do lugar errados; Louis CK, que caiu como uma luva no boneco que lhe pediram; e o cameo de De Niro que, nos dias bons, continua, mesmo em cinco minutos, a ter o vulto dos gigantes.

Sacramentada por um dos mais importantes realizadores actuais, American Hustle é a oficialização da maturidade e do alcance do cinema de entretenimento, um cinema que é popular porque, acima de tudo, sabe falar sobre as pessoas. Um must.

8.5/10

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

12 Years a Slave. Os clássicos que só se vêem uma vez



Não é fácil viver sob o epíteto de favorito do ano. 12 Years a Slave carrega-o desde há muito, num processo que já desembocou numa chuva de nomeações para os Globos e que, por certo, terá o mesmo desfecho na comunicação que a Academia fará na próxima semana. Não é fácil viver sob o epíteto de favorito porque não é preciso ser o melhor para ser efectivamente muito bom. É disso que se trata. 12 Years a Slave brota de um daqueles contos verídicos bigger than life que sensibilizam ao primeiro olhar. Tem uma realização não raras vezes deslumbrante, boas prestações individuais e uma extraordinária banda sonora, paternidade do imortal Hans Zimmer. É, por isso, uma obra que merecerá sempre ser vista e admirada. Ao mesmo tempo, é aquilo a que chamo um filme para ver só uma vez. Pesado, majestático, em vários momentos assoberbado e absorvido no seu próprio compasso. É um filme que choca mais do que emociona, mais um retrato do que uma mensagem e tem todo o mérito nisso. Pessoalmente, porém, mesmo sabendo apreciá-lo, não é um registo que me apaixone. Faltou-lhe, quiçá, intimidade, isto é, aproximar-se do espectador e marcá-lo de uma forma mais pessoal.

Para o bem e para o mal, Steve McQueen assinou um filme de autor. Um filme sem nada de ordinário, que plasma em todos os pormenores o seu gosto e a sua leitura. Isso torna-o às vezes distante, fazendo com que abuse nas temporizações e tornando a acção mais dolosa e mais filosofada. Coloca-o, ao mesmo tempo, num permanente patamar de excepcionalidade, que rende algumas das mais brilhantes cenas do ano. Os 2 ou 3 minutos de "pontas dos pés no chão" - quem viu, perceberá - são qualquer coisa de inenarrável, como é assombrosa a crueza da violência e deliciantes os grandes planos de que este se socorre constantemente para articular o filme (a que também não é alheia a notável cinematografia de Sean Bobbitt, que colaborou com McQueen em todos os seus filmes). Talvez 12 Years a Slave não seja esse tão propalado filme maior de 2013, mas dificilmente Steve McQueen não é o realizador do ano. O seu trabalho é de um requinte plástico monumental.

Ironicamente há momentos em que se sente que a forma como o realizador se evidencia, como se nota a sua presença, bonifica o seu trabalho mas penaliza a fluidez e a coesão do filme. É, aliás, um pouco difícil avaliar a adaptação de argumento de John Ridley - que, em traços gerais, é bastante sustentada nas balizas da história -, porque o seu principal défice parece-me contaminado pela realização. O primeiro capítulo é excessivamente precipitado e essa brusquidão, essas omissões de narrativa compensadas, nos entretantos, por excessos cirúrgicos, são uma constante do filme. Parecem exactamente consequência das leituras pincelares de McQueen, do registo discursivo inortodoxo que imprimiu ao filme, e não opções argumentativas. No resto, contudo, é uma adaptação forte, desencantada, triste e não particularmente lírica, apesar dos indícios sugerirem o contrário.

Nas performances, Michael Fassbender é bestial. De início até parece que vai soar artificial, tal o exagero pretendido, mas o germano-irlandês saca mesmo uma daquelas exibições de levantar o estádio, mercê de uma loucura profética e incendiada que, mais do que isso, lhe brilha no olhar e lhe palpita nos gestos em cada minuto a uma intensidade sobrehumana. O desconforto e a adrenalina que sugere sempre que entra em cena estão ao alcance de muito poucos e ilustram, para mim, a melhor prestação da sua carreira (Hunger incluído). Chiwetel Ejiofor, por sua vez, é afectado pelo presente armadilhado que era ter um papel tão fácil. Não está em causa que tem uma performance sólida, que não fica de menos ao filme, mas com uma caracterização tão inevitavelmente favorável, a única medida de reconhecimento era que se transcendesse e não acho que Ejiofor tenha alguma vez tocado esse nível. A grande surpresa veio da estreante Lupita Nyong'o que, no meio de um abuso doentio e no papel mais físico da película, soube representar de forma desarmante a inelutável fragilidade do ser, e que por isso já foi muito justamente reconhecida com a nomeação nos Globos.

Apesar do potencial humano da história, 12 Years a Slave é sobretudo um produto estético de apreciação obrigatória, ao qual faltou uma emocionalidade, pelo menos, diferente. Será um filme unânime, provavelmente reconhecido como tal pelos prémios, que é de facto muito bom, mas que não é um dos cinco melhores da temporada.

7.5/10

domingo, 5 de janeiro de 2014

Os que nos fazem universais


"Para mim, Eusébio será sempre o melhor jogador de todos os tempos"
Don Alfredo di Stéfano

Nunca me vou esquecer da minha primeira cassete de futebol. Tinha por volta de uns 7 anos e deu-ma um tio-avô que eu idolatrava e com quem estava todos os dias. A cassete era a "História dos Campeonatos do Mundo" até ao Itália-90 e escusado será dizer que, nas mãos de um miúdo fascinado, valeu mais do que uma Bíblia original. Revi-a até exaurir o velhinho VHS cá de casa, mais vezes do que alguma vez poderei contar. Acho que me sinto velho a escrever isto, mas esses eram os dias em que não havia youtube, canais desportivos ou documentários à descrição. Aquela cassete era, portanto, um daqueles portais das aventuras, um impagável mapa do tesouro para aprender futebol. Foi aí que tive a honra de os conhecer a todos.

Da Itália bicampeã fascista em tempos de guerra ao profético Maracanazo, quando 11 uruguaios derrotaram 200 mil brasileiros. Do Milagre de Berna ao lençol extraterrestre com que um menino de 17 anos chamado Pelé abafou Estocolmo. Dessa Canarinha estrelar, onde também ponteou Mané Garrincha, o anjo das pernas tortas, até à queda poética da Laranja Mecânica de Cruyff, aos pés de Kempes e de um bombardeiro chamado Gerd Muller. Da forma como a Velha Senhora de Rossi e Tardelli matou o Brasil-82, a melhor Selecção que já jogou, até à aparição no calor tórrido do México do Deus em pessoa. Nesse tempo parecia tudo grande demais. Tão mitificado, distante, inacessível. Gigantes eternos num Olimpo vasto muito para lá da modéstia da Humanidade. Mas também foi aí que conheci Eusébio.

Quem nunca o viu jogar, que tire agora uns minutos e lhe preste essa contrita homenagem. Para mim, que aquele monstro bestial tivesse levado o escudo ao peito e fosse do meu país foi, então, estarrecedor. Vi o Coreia do Norte-Portugal tantas vezes que é como se lá tivesse estado. Depois fui correr toda a campanha dos Magriços, das eliminatórias até ao terceiro lugar. Por educação e por feitio, a ideia de ser imparcial sempre foi das minhas mais caras. Lembro-me, por isso, da grosseira satisfação de pensar que podia admirar esse Eusébio da Silva Ferreira como os maiores, não porque ele era português, mas porque essa galeria excelsa era efectivamente o único lugar onde ele poderia morar. Então, na grandeza da infância, tomei uma decisão que qualquer pessoa de bem compreenderá como estruturante: com Garrincha e Maradona, Eusébio jogaria sempre no meu onze da História.

Não conheço dele o suficiente para falar do carácter, das opiniões ou sequer da sua vida extra-futebol. O que reconheço, porque bastava olhar para ele, era a sua transtornante simplicidade. Mais do que humilde, acessível e afável, coisas que toda a gente lhe enaltece, vou recordar o homem simples, com a graça e a gratidão na cara de quem acha secretamente que as pessoas não se deviam dar a tantos trabalhos só por estarem na sua presença. O homem que pela sua total excepcionalidade veio a ser maior do que qualquer estigma político e do que qualquer clube, conjugando carinho e unanimidade enquanto desportista maior de uma nação inteira e que, mesmo assim, parecia sempre envergonhado e passaria despercebido se pudesse. Acho que as pessoas respeitaram tanto o que foi Eusébio como aquilo que ele não quis ser.

Que não se tenha a verdadeira consciência da alucinação que foi o Inglaterra-66 é um crime nacional. Um Portugal que tinha tão pouco, ou até menos do que isso, que não tinha amor próprio e que estava orgulhosamente só no mundo foi às costas de um homem ter um Verão de luz em 50 anos de breu. Há quem olhe e decida destacar o aproveitamento propagandístico do Estado Novo. Eu prefiro lembrar que a genialidade extrema de um de nós, mesmo no pior dos tempos, foi capaz de rachar até a hostilização planetária e de iluminar-nos num raio de admiração incondicional.

Em Portugal, o futebol continua a ser um parente pobre para muitos pensadores. É o pão e o circo, é arte e a cultura dos tolos, que tem sempre de ser inoculada e admirada com vergonha, oxalá ficando os seus pés sujos o mais longe possível dos salões nobres da estima intelectual. Discutiu-se ontem uma condecoração como provavelmente se questionarão agora os três dias de luto nacional. Pois que hoje, enquanto Old Trafford coloca uma bandeira portuguesa a meia-haste, o Real joga de fumos negros por nossa causa e tantos símbolos mundiais vêm falar com tamanha reverência de um dos nossos, seja um dia para ter bem presente o que o jogo significa para este país e o quanto é uma das nossas bandeiras mais incríveis. É essa a única forma digna de o homenagear.

Por uma noite mais, o mundo fala dele e fala de nós com admiração. Foi sempre assim. Obrigado por tudo, Pantera.