domingo, 20 de dezembro de 2015

Star Wars, episode VII. A Força esteve connosco


Como é que se encapsula 40 anos de magia num regresso?

É complicado saber por onde começar quando está em causa o filme mais esperado da década. Com a Guerra das Estrelas foi sempre assim: a vertigem do próximo capítulo, do próximo fim, do próximo regresso. Em cada um desses dias, em cada um desses anos, foram eles o filme mais esperado do mundo. A nossa História cultural contemporânea teve a sorte de assistir a sagas tão monumentais como as melhores de todos os tempos, que inundaram de fascínio cada bocado da nossa imaginação colectiva e desenharam muito daquilo que sonhamos hoje; nenhuma outra, contudo, se poderá gabar de tamanha plenitude e transversalidade e, sobretudo, de tamanha vitória sobre o teste do tempo. A Guerra das Estrelas é a saga mais aceite e mais comercial, a mais acarinhada e a mais antiga. É a língua e o espelho não de uma geração, mas de todo um entendimento do que é a nossa sétima arte comum, imperecível, una e majestaticamente fascinante.


A 25 de Maio de 1977, o meu pai tinha 17 anos. Esta devia ser a história dele; na quinta-feira à noite, contudo, sentado na estreia mundial, com literalmente milhões e milhões de pessoas ao mesmo tempo, não havia ali nada que me pudessem tirar. O cinema será sempre o primado das grandes histórias, mas o cinema não seria cinema sem a experiência. Sem aquela mobilização, sem a propensão de ir viver a energia que vai muito, muito além de tudo o que se expele na tela. Ter passado as últimas semanas na expectativa, os últimos dias a namorar trailers e artigos, o dia da estreia com a obsessão da recompensa, reservar os bilhetes, seguir em romaria e depois sorver reverentemente, quase grato de respeito, cena sobre cena, deslumbrado com os pequenos regressos a casa, com aquele reconhecimento tácito que nos diz que somos todos parte do mesmo, é algo de genuinamente maravilhoso, que qualquer apaixonado por cinema, mais do que fã, não pode em consciência recusar-se a viver. Achando-se o que se quiser do frenesim ou do mérito da história, ver uma Guerra das Estrelas nestes termos é uma coisa que só acontece um punhado de vezes na vida.


Acho que já é líquido por esta altura que me é difícil separar o que é o filme, daquilo que representa a saga. Mesmo admitindo orgulhosamente toda a minha parcialidade, é com uma certa comoção que digo que foi... muito bom. E dizê-lo é tão catártico como tê-lo visto. É evidente que a Guerra das Estrelas não poderá jamais voltar a ser o sopro de futuro impossível que foi naquele ocaso dos anos 70, ou voltar a ter aquela magnitude refundadora do realizador ao argumento, do admirável mundo novo visual até às avenidas de criatividade absolutamente sem limites e sem termo de comparação, que chocaram aquela era. Mas é com honesta felicidade que sublinho que JJ Abrams foi o homem certo no lugar certo. O fardo era dum peso bestial, o negócio tinha chances desfavoráveis e todo o novelo era, afinal, assombrado pelo falhanço de casting com que todo o planeta recebera em agonia The Phantom Menace, em 1999. O pai de Lost, o reinventor de Star Trek o que faz é um abraço do tamanho da galáxia a toda aquela excepcional universalidade, um abraço de fã, com o entusiasmo e o gosto de quem está num gigantesco e infindável parque de diversões, deliciado com cada sequência, comprometido com cada viagem, emocionado com cada reencontro.


The Force Awakens é um filme tecnicamente inatacável e monumental. 2h15 de pleno gosto, onde tudo se derrama na medida certa, sem exagero mesmo no que é exagerado, sem poupança mesmo no que é poupado, de excelência sob qualquer prisma, um filme ao qual, visualmente, não há nada a acrescentar. JJ Abrams viveu à altura da reputação e pôs na rua um show atraente mesmo para quem não tiver nada a ver com isto, um filme com vida própria, capaz de mostrar aos novos de hoje de que é que são feitas aquelas estrelas. Essa capacidade de sedução é o inevitável cartão de visita para quem for espreitar as perniciosidades da história. E aqui chegamos ao guião, que fora o aspecto mais frágil das prequelas e aquele que marcaria o grau de sustento de todo o novo empreendimento. Se é certo que a espinha dorsal da narrativa não puxa de nenhum ás de trunfo, acho que a maior parte das pessoas também concordará que o argumento excedeu as expectativas. Com uma ligação carnal à narrativa-mãe, patente em quase todas as esquinas, o desvelar da acção consegue aguentar-se nos próprios pés até ao fim e resistir a quaisquer suspiros desiludidos que o quisessem diminuir. Os novos segredos aguentam-se, seduzem-nos, sabem temporizar-se - alguns deles mantêm-se segredos -, e têm uma singular chave de ouro: as personagens.


The Force Awakens devolve a Guerra das Estrelas às personagens, numa dicotomia entre legado e pujança, entre os galões dos velhos e a vitalidade dos novos, e é de encher a alma. A cena do regresso da Han Solo à sua Millenium Falcon, 32 anos depois! de Return of the Jedi, é um nó cego na garganta. O momento em que a pisa novamente, com o seu inseparável Chewbacca, mas ainda depois disso, os segundos em que se deixa estar a balbuciar na cabine, com os olhos a brilhar, como se tivesse esperado por isso em todo e cada um dos dias em que estiveram distantes, seria suficiente para querer fazer isto tudo outra vez. Harrison Ford é, de resto, a figura nevrálgica e verdadeiramente patriarcal do filme, ao que responde com total compromisso e espírito, com uma genuinidade que não encontra esforço. Disse-se, na antecâmara, que este era o filme que lhe tinha recuperado a alegria de actuar e o seu carácter de estrela pop, e é impossível contestá-lo. Solo viveria sempre por si enquanto personagem mas, pese todo o legado, é uma interpretação reverencial da parte de Ford.


Finalmente, o ponto alto: se o Episódio VII tem uma estrela que brilha acima das outras, essa tem 23 anos, olhos verdes e nasceu em Londres. Daisy Ridley é um avassalador acerto de cast, uma gema preciosa descoberta numa galáxia muito muito distante que, mal é desempoeirada, se põe a luzir de uma forma quase desarmante. Já li sobre ela que é a personagem feminina melhor formada e mais bem maturada de sempre em Star Wars, mas diria mais, diria que é uma das mulheres de maior poder e potencial que vi nos últimos anos. Ridley é uma força da natureza. É terrivelmente realista. Corajosa e abnegada sem ser necessariamente heróica, vulnerável sem ser superficial mas, antes, empática e cativante. Gosta-se logo dela, quer-se que as coisas lhe corram bem e anseia-se que viva à altura do seu destino que, por ora, parece gloriosamente grande. Investir sem pejo numa figura feminina para o núcleo da acção era só uma excelente ideia à espera de o ser, e foi-o na plenitude. De entre os novos, John Boyega - com uma falibilidade honesta que nos conquista - e Oscar Isaac - com o glamour da juventude de Han Solo - saem na mó de cima, como também sai o adorável boneco de Lupita Nyong'o. Adam Driver, numa das personagens-chave, é porventura quem mais fica a dever ao papel.


As contas deste Force Awakens eram, no fundo, muito simples: ou acertava de pleno direito ou falhava a todo o vigor. Ganhou. Mais do que isso, ganhou a jogar bem. Confiamos e fomos recompensados porque sim, é o melhor em mais de 30 anos, sim, é o filme pelo qual estávamos à espera e, depois, um pouco mais. Quinta-feira foi uma noite bonita.

8/10

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Bridge of Spies. Um bom filme dispensável


Parece-me pacífico dizer que, nos dias que correm, se queres fazer um filme sobre espionagem, ou mais, sobre a Guerra Fria, tens de ter realmente alguma coisa para contar. O tema já foi tão violentamente esgotado que, pese a mística intemporal e tangível, é preciso ter algum segredo na manga, alguma manha pronta a ofertar quando chegar a hora. Bridge of Spies, infelizmente, é uma ponte de sentido só. Começa-se a andar, é-se imperturbado e chega-se exactamente aonde se estava à espera chegar. Até pode ser uma ponte, mas tem muito pouco de espionável, porque é incapaz de seduzir-nos o suficiente. Não é, de facto, um filme mau ou sequer vulgar, ainda que o argumento seja perfeitamente enxuto, na reconstituição histórica duma troca de prisioneiros de guerra entre Estados Unidos e União Soviética, em 1960; é, no fim de contas, bem arrumado e simpático, mas é o arquétipo de um filme desnecessário, que acrescenta pouco ou quase nada e que não pede que se pague um bilhete.

Isto tem tanto mais peso pela contextualização que vale a pena fazer. Bridge of Spies afigurava-se, afinal, como um dos pesos pesados do ano, realizado por Spielberg, escrito pelos Coen e protagonizado pelo reverendíssimo Tom Hanks. Do leque, só mesmo o último soube estar à altura. Na linha do que escrevi acima, o argumento é francamente linear. Parte dos factos verídicos, mas é quase invisível para além disso: não tem rasgo, não tem cenas fortes, não é emocionalmente exigente para os protagonistas e não plasma, sequer, nada do que notabilizou os Coen, seja a perversão, o tipo de humor, o negrume ou o carácter cáustico, desafiante e cru. É um filme muito liso, muito morno, como se com isso quisesse perpassar alguma tensão... mas sem nunca o conseguir. Tem uma única cena contagiante, na honestidade do regresso a casa, que lhe marca o desfecho. Fica por aí.

A maior desilusão é, contudo, Spielberg. Num projecto realmente à sua imagem, com aquele toque imperial que lhe assenta tão bem, o seu apagamento é inexplicável. Bridge of Spies não é de todo atraente a nível visual. É um filme que parece irrelevado ou quase ignorado, e deixado a fazer sozinho. Aquela vida em permanente lusco-fusco, tão cara ao espectro da Guerra Fria, nunca é interrompida por nenhuma injecção de charme, por nenhum lance de inspiração. É uma contínua película uníssona, na mesma frequência e no mesmo tom, como um monitor de actividade cardíaca que já morreu. Três anos depois do excelente Lincoln, o velho mestre volta assim a cair no nevoeiro que lhe marcou a última década, e onde se contam filmes tão infelizes como o último Indiana Jones, Tintin ou War Horse

A boa notícia é, como quase sempre, Tom Hanks. O maior bonacheirão de Hollywood é o pilar do filme e aguenta-o uma e outra vez à base de fôlego, mascarando as ditas falências com base no facto essencial de gostarmos dele. Note-se que está longe de ser uma performance laureável, nada que se compare, por exemplo, à monumentalidade encontrada em Captain Phillips (2013), mas, num filme diminuído a vários níveis, Hanks sabe como levar as pessoas e empresta à acção a humanidade e a empatia que a história não demonstrou ser capaz de dar. Mark Rylance, nas roupas de espião soviético, acabou por ser a boa surpresa. Num papel que pareceu por ora demasiadamente calculado, no estatuto adquirido de espião que nunca o recusou ser, Rylance veio afinal, e na linha da sua própria personagem, roubar-nos respeito pela sua dignidade, temperança e dedicação. Um papel estilizado e peculiar que acabou por lhe valer a surpreendente nomeação para Melhor Actor Secundário nos Globos de Ouro.

Ver Bridge of Spies não é penoso, mas está longe de ser contagiante e é inevitável assumir a desilusão com um produto ao qual era obrigatório exigir mais. Com determinado nível-base e com boas personagens, limitar-se-á a passar à História como um bom filme de domingo à tarde.

6/10

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

In the Heart of the Sea. Há histórias que não sabem falhar


A ambição era refazer um filme sobre nada menos do que Moby Dick. 100 milhões de dólares de orçamento, Ron Howard nas rédeas (Cinderella Man, A Beautiful Mind, Frost/Nixon, Rush...) e um elenco cravejado de estrelas para todos os papéis, do poster boy Chris Hemsworth a estrelas emergentes como Ben Whishaw (o "Q" dos novos Bond), de certezas absolutas como Cillian Murphy a instituições unipessoais como Brendan Gleeson. In the Heart of the Sea era um daqueles filmes aos quais se passa um cheque em branco, um daqueles que escolheu quase tudo de olhos fechados... e que, no fim, era suposto render verdadeiramente pouco. Um daqueles blockbusters onde esperamos, tão só, ter a sorte de encontrar alguma vertigem e alguma catarse. Este, contudo, foi demasiado bem escolhido para o seu próprio destino. Com uma odisseia intemporal americana trabalhada a tantas boas mãos, dobraram-se as tormentosas probabilidades e o que temos, afinal, é um certo fascínio a espreitar a vários níveis.

In the Heart of the Sea não parte directamente da maior de todas as obras de Herman Melville, mas do livro bem mais recente (National Book Award for Nonfiction, em 2000) de Nathaniel Philbrick, sobre os factos verídicos que motivaram o histórico naufrágio do baleeiro Essex, em 1820, no coração do Pacífico, e que viriam a render a magnânima epopeia da baleia gigante e dos náufragos de 90 dias, imortalizada em Moby Dick. O grande acerto do filme, aquele que define o seu sucesso, parte sobremaneira disso: In the Heart of the Sea é verdadeiramente genuíno, porque conserva muito perto de si esses "factos verídicos" e a mística das transcendentais histórias de mar, de gigantismo, mito e sobrevivência. Alimenta-nos com isso, faz-nos crer, envolve-nos e sabe-nos contar uma história, pelo destrinçar do argumento, sim, mas, mais ainda, pelo contexto, pelo ambiente e pela felicidade ao romantizá-los, desde aquela chegada de Melville a Nantucket - o maior porto baleeiro do mundo no século XIX - para entrevistar a uma madrugada o último sobrevivente, com uma garrafa de whisky e um dose ainda maior de expiação. É um filme onde gostamos de estar, que desperta a criança curiosa, fascinada e impressionável que temos no coração, e é um filme bonito, por ter esse jeito em trazer-nos um clássico, quando era muito fácil desperdiçar-se completamente num vácuo de espectacularidades bacocas e efeitos especiais.

O filme é cativante, ainda que seja inevitável reconhecer que não estamos na presença de nada supremo ou refundador. É uma obra que essencialmente se acarinha, como boa história e património histórico, não quiçá reflexiva ou fabular, como encontramos, por exemplo, em Life of Pi, num filme da mesma água. Isso, no entanto, não lhe retira o mérito. A adaptação de argumento ficou a cargo de Charles Leavitt (autor do incrível Blood Diamond) e, se às vezes falta algum tacto a temporizar a acção, lá está, a dar-nos mais tempo para pensar, o que era verdadeiramente essencial, ou seja, o exercício de fascínio, ainda para mais num projecto deste tamanho, foi conseguido com distinção. In the Heart of the Sea não só não era um "filme de realizador", como a realização movia-se, aliás, num abismo perigoso, pela propensão em exagerar e se perder. Nesse campo, este estará longe de ser um dos melhores filmes da carteira insultuosamente luxuosa de Ron Howard, mas o oscarizado americano protege-o ou, por outra, evita que o estraguem. Existem ocasionais sequências demasiado artificiais e são patentes os sucessivos cenários de laboratório, mas o filme é bem mais púdico do que aquilo que se poderia esperar e essa é outra das suas vitórias.

Costumo ser bastante preconceituoso quanto a elencos de luxo, sobretudo se se destinarem a filmes deste tipo. Este tratou-se, porém, de mais uma saudosa excepção. Chris Hemsworth, com quem simpatizo, continua a construir uma carreira comercial relevante e abraça o lead com uma franqueza e uma empatia que lhe começam a ser imagem de marca. Cillian Murphy é o trunfo que queres sempre ter a teu lado. E, por fim, um filme com Brendan Gleeson tem como que uma responsabilidade moral de ser bom. O seu papel cirúrgico de último sobrevivente do Essex impinge de carácter tudo o resto e dá-lhe o peso dos grandes épicos. Tenho para mim que, quando se principiou a produção de In the Heart of the Sea, não havia sequer a ambição de fazer algo tão narrativamente envolvente e, quiçá, carismático. O feliz resultado é um dos bons filmes do ano e uma oportunidade generosa para mergulhar num das grandes histórias do nosso ideário contemporâneo.

7/10