segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Olive Kitteridge, minisérie. A ficção também é demasiado real


Olive Kitteridge podia vir com o rótulo de não aconselhada a públicos demasiado impressionáveis. A vida, no fundo, também. Ser uma minisérie acaba por ser apenas a cápsula através da qual nos é contada uma história que é real. A toda a largura, é isso mesmo: uma série crua, sem embalo, nem contemplações, sem rede, nem lições de moral. É realmente triste e realmente dura, agredindo-nos por não estarmos habituados a que nos falem assim, e não é, por isso, uma série com a qual seja fácil criar empatia. Na maior parte do tempo, o que nos resta mesmo é ficar introvertidos e a desconfiar, até nos darmos conta de que, na sua forma desiludida, tudo aquilo é afinal demasiado genuíno. No fim, criamos o élan, não porque ela chegue a ser nalgum momento agradável, mas porque não podemos evitar compadecer-nos do carácter das personagens e dos seus episódicos momentos de humanidade, que nos deixam respeitosamente reverentes e desarmados.


A minha cena favorita é uma em que o brilhante Richard Jenkins, num qualquer dia vulgar de reforma, vê no supermercado um cartão dedicável à sua mulher, sendo ela totalmente alheia a esse tipo de demonstrações de carinho. Ainda assim, compra-o na mesma, e oferece-o na mesma com flores... para receber a exacta reacção que seria de esperar. Ele fica bem com isso, no entanto. Mais, fica genuinamente contente, de olhos a brilhar, só porque lhe disse uma vez mais que a amava, e porque dizer isso era maior e mais importante que qualquer reacção que ele pudesse ter de volta. Porque ele não o fazia pela recompensa, fazia-o somente porque para ele era importante dizer, e isso era em si completo, era o princípio e o fim. O privilégio de poder amá-la era dele. O resto não interessava realmente. A cena é majestosa por ser tão simples, por ser praticamente impossível de emular, e de ter inventado ou escrito num guião. Tão desencantada, tão pouco lírica e tão naturalmente bonita por causa disso.


Olive Kitteridge é uma obra original de Elizabeth Strout, vencedora dum Pulitzer em 2009, e adaptada para televisão por Jane Anderson, uma dupla vencedora de Emmy e do Writers Guild of America. Narra 25 anos na vida de uma mulher de meia idade, numa pequena cidade do Nordeste americano, uma mulher austera e de tendência depressiva, e todas as suas relações pessoais e familiares. Não é, garantidamente, uma série para todos os públicos e, mais do que isso, para todos os estados de espírito. Apesar de curta, como a própria tipologia indica (4 partes de 1 hora), é um produto para ver com tempo e com paciência. É uma série para "querer ver", já que, na minha óptica, o primeiro impacto estará longe do amor à primeira vista. Tal como admito que, mesmo quem vir de fio a pavio, pode perfeitamente lidar mal com o seu desamor, com a cara fechada e as parcas exaltações. É uma questão de estilo e de subtexto, às vezes de um momento ou de mero clique, ainda que não seja mesmo uma série que vá falar a toda a gente. No meu caso, não passa à História como inesquecível, e diria que porventura nunca teve essa ambição, mas deixa-me, sim, como respeitoso admirador. Essencialmente em dois planos que, sem prejuízo para outros, como a fotografia (a série tem palco no envolvente e melancólico Maine, o Estado mais a nordeste dos Estados Unidos, na fronteira com o Canadá), me parecem claramente de excepção: a lucidez e a crueza da adaptação, transcendental nos pequenos episódios dentro de cada episódio, alguns em que o próprio diálogo é irrelevante; e a genuinidade arrepiante de ambos protagonistas, no retrato que fora idealizado.


Fosse a série uma peça de teatro e, no fim, Frances McDormand e Richard Jenkins mereceriam 10 minutos de ovação de pé. Não é só terem sido tecnicamente perfeitos e emocionalmente massivos; é, lá está, serem tão ridiculamente fiéis ao papel, tão competentes a interpretar e a dar vida ao conceito, tão naturais nos pormenores, tão irrepreensivelmente fidedignos, que é quase criminoso dizer que aquilo não é mesmo a autobiografia de ambos e que McDormand e Jenkins eram uns pseudónimos de vida quaisquer. Podia dizer que Frances McDormand faz aqui o papel de uma vida, mas não estamos a falar de uma actriz qualquer, pelo que maior prudência é de bom tom. Com o Emmy arrecadado em Setembro, justamente por esta performance excepcional, McDormand fechou nada menos do que a sua Tríplice Coroa de Actuação, depois do Óscar por Fargo, em 1997, e do Tony Award em 2011, pelo original da Broadway Good People. Aqui, a única maneira de a descrever é dizendo que foi verdadeira demais para não ser verdade. Olive Kitteridge é uma mulher severa, realmente fechada, cáustica e pragmática, má com as pessoas e de modos perfeitamente incorrigíveis. Daquelas mulheres capazes de tornar qualquer ambiente constrangedor, qualquer situação desconfortável, e que raramente tem pejo em fazê-lo. É radioactiva e provoca no próprio espectador uma vontade de afastar-se dela, um alívio ao vê-la pelas costas. Toda essa consistência faz com que os momentos de ruptura narrativa sejam tanto mais fascinantes. A cena com o filho na cozinha, no fim do terceiro acto, toca forte por isso, pela desistência em ser implacável, desvelando o seu fundo difícil mas bom, e completando um círculo emocional muito, muito difícil de conseguir.


Já Richard Jenkins, um histórico secundário, sai definitivamente como uma das personagens de estima maior. O seu Henry é o homem de quem toda a gente gosta. Uma figura quente, carinhosa, irreprimivelmente dedicada e altruísta, verdadeiramente incansável. Na linha da cena que descrevi na introdução, não o faz, contudo, pela romantização da personagem... mas porque lhe está na pele ser assim. Sem nada em troca, sem sequer ter de ir a lado nenhum, Henry é atencioso, bondoso e dedicado, genuinamente porque essa é a sua maneira de estar no mundo. É uma personagem admirável, que nos deixa consolados sempre que se encontra em cena, como um reforço positivo do que pode ser um mundo melhor. Este texto não estaria todavia completo sem Bill Murray. Fez, tão só, a última meia hora do último episódio, mas foi exactamente a lufada de ar fresco que a série precisava para se concretizar. Num registo global cuja imagem de marca foi sempre a indução de maneiras de estar e de sentir, e portanto, muitas vezes "mudo", a dialéctica de Murray é o oásis no deserto, um raio de bonomia num dia de morte, cuidadosamente talhado para vir brilhar ao sítio certo.


Olive Kitteridge venceu no mês passado 8 Emmys, incluindo Melhor Minisérie e, nessa categoria, Melhor Realização, Argumento, Actor, Actriz e Secundário. É uma das jóias de coroa da temporada. Não será a série mais apaixonante que já viram na vida, mas sairão definitivamente mais ricos por sua causa. Isso é muito mais do que pode parecer à primeira vista.

8/10

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Mr. Robot, temporada 1. Uma overdose de Revolução


É uma série transparente, no sentido de que ou fascina ou não se suporta. Simples quanto isso. E acho que essa é uma opção criativa que merece todo o respeito. Por um lado, porque cria uma audiência de culto, dando-se à liberdade de continuar fiel à sua visão e às suas peculiaridades; por outro, porque não engana à falsa fé quem lhe tenha dado uma primeira oportunidade. Não só tenho consideração por esse tipo de séries, como acredito que a individualidade é, quase sempre, o caminho para a excelência. Neste caso, infelizmente, caibo na segunda categoria.


Vi metade da temporada e foi positivamente suficiente para perceber que não era para mim. Mr. Robot versa ou, dalguma maneira, psicopatiza a respeito de um outcast, um vigilante hacker com depressão diagnosticada, ansiedade social gravosa e uma espécie de autismo mais ou menos tangível, que se vai descobrir mergulhado num autêntico turbilhão conspirativo, decalcado à imagem e semelhança duma mescla entre os Anonymous e a Wikileaks. A série investe, a braços largos, nesse maná moderno que é o cyber poder, instrumentalizando um peão com um talento fora do vulgar para uma suposta Revolução a borbulhar desde as catacumbas da clandestinidade. Nessa viagem, recrutam o peão, mas recrutam igualmente os seus infinitos demónios, criando uma mancha alucinogénica que vai contaminar toda a acção da série. O meu momento definidor, porque castrante, foi uma sequência, a meio do 4º episódio, em que o protagonista vive um delírio de mais de 5 minutos, motivado por abstinência. É ostensivo, é cansativo e é redundante. É o tipo de pincelada artística, de aluamento fora da caixa que, comigo, não funciona.


Na crítica férrea ao status quo, nos modos punk e no negrume da realização, a série assemelha-se constantemente a Fight Club, àquela agrura dolorosa da luta contra uma sociedade cega, hipócrita e corrompida. Quando o nível de ambição conceptual é esse, e para conduzir o espectador em tamanha jornada, tens de ser muito bom. Tens de ter mais uma carta na manga, mais uma ideia improvável, tens de ter particularmente um arquétipo dramático onde vás buscar alguma identificação. Mr. Robot é uma casa assombrada, um pesadelo em jeito de terapia de choque que te esgota, mas sem nunca encontrares a razão para continuar a ver. Admito, como é óbvio, que seja uma questão de gosto. Aliás, gabo a forma e a própria execução. Só não retiro qualquer prazer daquilo, daí que prosseguir fosse redundante. Não ali nada que me impressione, que me interesse e, no fim, que me inspire.


Não acabo, porém, sem salientar alguns créditos. Desde logo, e tal como já vim a mencionar, a realização, ou mais do que isso, a consistência conceptual de Sam Esmail (38 anos), que criou um produto muito agressivo, muito negro e afligido e de digestão muito forte que, sabiamente apelidado de thriller cyberpunk, será certamente um must para qualquer apreciador do género. Como disse à cabeça, é uma série de autor, que não se esforça por chegar a todos os públicos, sendo, por opção, um produto cuidadosamente trabalhado para satisfazer apreciadores. Mesmo nos casos em que não sou um deles, sei reconhecer a fidelidade. Depois, e inevitavelmente, elogiar a prestação devota de Rami Malek, tão metamórfica que quase nos dói a pele, num registo tantas vezes vítreo e siderado, assustado e perdido, que nos constrange mais do que apega. É um dos papéis mais relevantes do ano e, se não, o mais cáustico. Num registo global menos delirante, teria valido a pena seguir o veterano Christian Slater, o anarquista que recruta Malek para um grupo de hackers, e Martin Wallström, executivo jovem, ambicioso e hardcore da corporação que incorpora o mal. 

Quem gostar de Mr. Robot, vai gostar muito; quem não gostar, saberá disso ao 2º episódio. É um negócio justo.

5/10  

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Narcos, temporada 1. Quanto custa ser Pablo Escobar?


Como é que se biografa, afinal, o gangster mais bem-sucedido de todos os tempos?

Encarar vultuosas figuras históricas traduz um nível de risco que, em muitos casos, só podemos perceber com clareza à frente no caminho. Por um lado, um registo tão marcadamente biográfico sabe contar com um nível de assimilação altíssimo, ou seja, o primeiro instinto do público é reconhecer, confiar e ver; por outro, as obrigatoriedades históricas e o alcance insano do personagem induzem-se tantas vezes tão onerosos, que é fácil cair na armadilha de fazer um grande nada. Diria que Narcos, mais um original Netflix, com a responsabilidade monstruosa de encorpar o sucesso de House of Cards, sobreviveu, para já, ao mais difícil: é um produto sério, crível e interessante. Mesmo que ainda não seja uma grande série.


E é normal que ainda não seja, ao fim da primeira temporada. A excepção é verdadeiramente o contrário. Narcos sugere ter na base um trabalho de bastidores brilhante. A nível técnico, é uma série que se esforçou por ser inatacável. Tem uma cronologia cuidadosamente velada, com timing quando escolhe descolar da História para deixar a história respirar, ou seja, ao definir os momentos-chave em que se tenta transcender interpretativamente na recriação dos episódios que nunca ninguém viu. O que acaba por ter em cuidado, planeamento arquitectónico e trabalho de casa, falta-lhe, contudo, em raça. É, pese toda a droga, toda a violência e toda a tonelagem de mortes, uma série durante demasiado tempo morna. Interessante, de facto, num plano quase intelectual, ou documental, mas emocionalmente curta. Com paixão de menos. Ainda que seja justo reconhecer que foi em crescendo. Se a primeira metade da temporada é, de facto, lisa, o desenrolar é largamente mais rentável, muito por culpa das personagens nucleares terem perdido a vergonha. Ainda não é suficiente, mas os sinais são bons.

Nesse último terço da acção, os ponteiros alinham-se, e é quando podemos beber verdadeiramente esse mundo surrealista louco da Colômbia dos anos 80, onde infectou, como uma gangrena, uma figura tão estupidamente ilimitrófe como Pablo Escobar. Conseguimos sentir as ondas de choque e chocamo-nos com o desplante e com a completa irracionalidade dimensional de tudo aquilo, o tal "realismo mágico", que serve de conceito filosofal à série, traduzindo que, naquela Colômbia, aconteciam coisas que só podiam mesmo pertencer ao Fantástico, desde os tanques pelo Parlamento adentro, aos atentados sobre aviões comerciais e a todo o quotidiano de guerra civil de um narco-Estado. Há que enaltecer, por fim, os préstimos da realização, assinada a quatro autores, com destaque inevitável para José Padilha, que define o tom inicial e reedita a parceria memorável com Wagner Moura, que valeu os Tropa de Elite. A filmagem daquela moldura latino-americana, que ele tão bem conhece, fez tudo um pouco mais realista, e essa genuinidade fica como uma das imagens de marca da temporada.


Na qualidade de fã confesso de Wagner Moura, foi com um gosto desmesurado que o vi chegar ao mercado televisivo mais importante do mundo. Uma oportunidade de luxo, com um papel de algibeira e a benção da Netflix. Nos primeiros dois terços de temporada foi todavia impossível esconder a desilusão. Constantemente preso pelos arames, o seu Escobar pareceu ter a profundidade duma folha de papel, sempre desligado, superficial, injustificado e inconsistente. Acho que esteve muito próximo de alienar a própria série, que não teria sobrevivido sem que emendasse a mão. Só quando a paranóia chega é que o tabuleiro se vira. Uma personagem que era simples, sem ser empática sob nenhum prisma (um mafioso resultadista chapa cinco, mais ambicioso do que devia, mas sempre inconsequente), torna-se finalmente no vórtex do autêntico Inferno que o rodeia. A descolagem total da mais elementar racionalidade, o descontrolo cego e a auto-destruição obsessiva varrem tudo à sua volta e imprimem-nos tamanho desconforto e imprevisibilidade que, tal como já disse, vão buscar por si próprios a segunda temporada.


O que vale para Escobar, vale para o seu contra-parte, o Agente DEA Steve Murphy, assinado por Boyd Holbrook. É ele quem reclama um protagonismo incontestado desde a partida, assumindo as próprias despesas de narração da série (essa uma excelente opção editorial). O problema é que a personagem propriamente dita foi sempre escassa... até lhe ceifarem as amarras da normalidade vigente e o tornarem abertamente desamorável. Murphy foi-se transformando, do newcomer arrumadinho, até ao agente cru e grosseiro, erodido pelo clima febril onde teve de aprender a mover-se. A sua aparente escalada de desagregação será outro dos grandes trunfos do que estiver para vir. Num elenco bastante interessante, onde salientaria Maurice Compte (um oficial incorruptível que correu enquanto lhe deram pernas) e Juan Pablo Raba (número 2 de Escobar), a personagem mais consistente a tempo inteiro terá sido Pedro Pascal, o bem conhecido Oberyn Martell, de Game of Thrones. Foi o mais carismático e o que mais rapidamente se encontrou no papel de detective experimentado, meio rock&roll, meio pragmático. No fim, acaba por ceder a ribalta para que outros pudessem brilhar, mas merece o reconhecimento.

Narcos está longe de ser uma série acabada e merece os anticorpos que enfrentará em primeira instância, nomeadamente nessa tal dificuldade em seduzir a audiência durante boa parte do tempo. Não sei de quantos merecerá o voto de confiança, mas o seu tamanho parece-me inequívoco e os indícios que deixa fazem crer um regresso de maturidade e afirmação, com algo de ainda mais escobariano na forja.

7/10