quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Absolutamente um must


Considerei-a, no início do mês, a primeira jóia da temporada. Concluído o primeiro quinteto de episódios, sou forçado a insistir: Masters of Sex é uma das séries do ano e é impensável que ainda não a estejam a ver.

Michael Sheen é, provavelmente, o lead masculino mais interessante da temporada, fruto de uma personagem de uma riqueza ímpar. É um homem severo, frio, hostil, que parece incapaz de baixar a guarda ou de reduzir a distância, mas que não tem, contudo, ponta de maldade, e acaba por ser extraordinário que, mesmo que faça ostensivamente pelo contrário, caiam sempre uma série de migalhas pelo caminho que nos fazem empatizar com ele, com a sua vulnerabilidade, as suas assombrações pessoais, os seus medos e os seus desejos.

Lizzy Caplan tem uma aura que, definitivamente, não encontramos muitas vezes. É palpitante e carismática, e não há forma de deixar alguém indiferente assim que entra em cena, na fusão entre imagem, maturidade e uma avassaladora segurança de si, do que faz e do que quer. É mistificada como fantasia, e esse é um caminho no qual embarcamos de bom grado, já que ela está à altura do epíteto, e jamais de uma forma vulgar, mas é verdadeiramente o seu carácter aquilo que a torna apaixonante.

Por esta altura, também já emergiram os secundários: Nicholas D'Agosto é excelente no seu jogo permanente entre luzes e sombras, um médico-aprendiz realmente capaz, com tacto e genuíno bom coração, mas consumido por ambição e por não poder ter aquilo que mais queria; Caitlin FitzGerald, a esposa, é a mulher de cristal, dramaticamente frágil e ingénua, feita para afligir-se em silêncio, mas que vai colocar-se numa posição que me parece vir a dar-lhe uma margem de progressão tremenda.

Masters of Sex continua a surpreender de episódio para episódio. É uma série de época com toques de leveza e de bom humor, mas com constantes e massivos estremecimentos emocionais que nos deslumbram, como uma caixinha de surpresas que parece ter sempre mais um segredo para contar. Fiquei impressionado desde início, mas não achei que pudesse ter tantas camadas e fosse ser tão rica, requintada e densa nas suas narrativas paralelas. Facto é que, para já, não há outra no mercado tão bem escrita e interpretada, e isso fala por si.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Mud. Cinema em estado puro


Acredito que o verdadeiro cinema é intemporal. Não depende de técnicas, fases e nunca tem de ser visto em contexto. O grande cinema nunca passa de moda porque emana do seu elemento nuclear: a história. Com uma verdadeira história, um filme não precisa de efeitos, de thrill, de surpresa, nem de dominar o mundo. Até um filme gloriosamente simples pode ser um clássico perfeito. Em 2013, Mud é, provavelmente, esse filme.

Pelas apaixonantes margens do Mississipi, este drama sulista americano tem tudo. Tem uma beleza e uma pureza desconcertantes, é emotivo sem nunca ser baboso e versa um conto irresistível sobre inocência, sobre a sua perda, sim, mas, mais importante do que isso, sobre a escolha de conservá-la e de viver por ela. Mud é um filme sinceramente bonito, sem ponta de cinismo, que nos faz gostar dele, torcer por ele e acreditar como ele, um filme que se autoriza a ter um coração do tamanho do mundo e que deixa que os seus protagonistas façam as apostas irrazoáveis e façam os erros todos, porque, mesmo se no fim estiverem errados, como qualquer um lhes diria à partida, continuou a valer a pena. A transparência e a genuína convicção em ajudar sem julgar e sem contrapartidas, e em amar sem condicionantes, pela mera simplicidade de seguir sentimentos e de fazer a coisa certa, empresta-lhe uma aura que encontramos muito poucas vezes.

A história de um fugitivo atrás da mulher da sua vida e dos dois miúdos que o vão ajudar é uma criação extraordinária de Jeff Nichols, realizador-argumentista americano de 34 anos, que assina, aqui, apenas o seu terceiro filme. O seu talento como contador de histórias é verdadeiramente sublime e garante-lhe, para já, o melhor argumento do ano; a sua câmara, entre travellings, mudanças de ritmo e compassos, perpassa pelo filme como um pincel ideal. Depois, sendo natural da região onde filmou, o seu domínio do ambiente é, também, singular. Parte da imensa sedução de Mud reside, justamente, no deslumbre dos seus cenários, que aparentam ser colhidos do ideário das histórias de aventuras e nos esmagam uma e outra vez, com o apoio de uma cinematografia também ela excepcional, assinada por Adam Stone.

Matthew McConaughey faz, sem margem para erro, a melhor performance da carreira. É um fora-da-lei com ares de náufrago, um ícone dramaticamente romântico que, apesar de ser ardiloso, de ter errado e de o ir voltar a fazer, em momento algum tem um pingo de maldade. É o tipo vulnerável, destinado a falhar, mas terrivelmente comprometido, honesto e de bom fundo. O laço de mentor que forma com o co-protagonista rende sequências estupendas, tal como é de uma beleza total o momento em que contracena com Reese Witherspoon. A vencedora de Óscar também tem uma caracterização de personagem muito boa, ainda que, por ironia, isso se verifique mais a nível passivo, pelo que não faz, do que pelo que tem de fazer. Não era um papel que lhe desse muito espaço para brilhar, mas Witherspoon compõe o ramalhete com mérito.

O outro estrondo do cast está, porém, condensado nos meros 16 anos de Tye Sheridan. O miúdo, que se estreou há dois anos no idílico The Tree of Life, personifica com um carácter perfeitamente extraordinário toda a essência do filme. É o seu dínamo e, além de estar sempre à altura, foi capaz de transcender-se no momento certo. A simplicidade com que lê e se coloca perante as coisas, a sua candura e as lições que vai escolher tirar das suas dores de crescimento, ao ver de que é feita a vida, colocam-no, para mim, e sem pejo, na lista de oscarizáveis. É o melhor desempenho juvenil de que me lembro. Jacob Lofland, o seu parceiro da mesma idade, é outro puto cheio de chispa (grande direcção de cast). O veterano Sam Shepard, finalmente, cumpre o seu papel patriarcal e encaixa bem no resto do puzzle.

Mud é a prova acabada de que, para estar entre os maiores, não é preciso ser difícil nem caro. A grandeza de um filme começa e acaba na medida da história que esse for capaz de contar.

8.5/10

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O Império contra-ataca


Todo o organismo moribundo estrebucha antes de morrer. Todo o parasita atacado agride de volta, antes de ser incinerado. Esta foi, pois, a semana em que as forças inquisidoras do Santo Ofício começaram o seu ajuste de contas. Na segunda-feira, as Câmaras finalmente libertadas do jugo laranja abriram os seus portões para queimar o bolor e, desde aí, a caça aos infiéis não mais parou.

À vista do público, já houve garotice: o Governo Regional retirou à Câmara do Funchal a gestão de um dos maiores jardins da cidade, coisa apelidada pelo próprio ex-presidente, Albuquerque, de "absurdo"; os vereadores sociais-democratas, por sua vez, também já sancionaram que Cafôfo, que não tem maioria, não poderá contar com qualquer cedência, nem sequer a do bom senso. Já houve, igualmente, idiotice: na esventrada Câmara de Santa Cruz, o tribunal exigiu que se aumentem taxas para pagar dívidas... coisa ecoada nesse escarro de papel que é o Jornal da Madeira como um "escândalo" e uma traição de promessas eleitorais.

O mais grave, porém, não está aos olhos de todos: acumulam-se os casos de elementos da maior Oposição de sempre a serem purgados em todas as áreas, desde o afastamento de cargos na Função Pública até à cessão de contratos com o Governo Regional. O Império abriu oficialmente a sua caça às bruxas. Cambaleante, solta os leões uma última vez, na ilusão pútrida de que se pode recompor pelo castigo, pela coacção e pela guerrilha doente a todas as alternativas, na expectativa de torná-las ingovernáveis. O esvaziamento costuma ser proporcional à demência, portanto, o que devemos esperar a seguir? Raptos, à boa maneira de Pinochet, ou gulags, como os camaradas soviéticos?

Esta febre a anteceder o exorcismo é o legado final de Jardim. Derrotado, humilhado nos seus bastiões, este PSD vai tentar resistir como um verme e vai morrer como um. Vai continuar a investir tudo na sua lavandaria cerebral e vai continuar a mover-se na calada, a mandar recados, a aconselhar silêncios, a intimidar as pessoas e a lembrar que é o Grande Irmão que tudo vê... mas só até ao dia em que, com data marcada, lhe vão arrancar os olhos. É que, mesmo que sejam incapazes de aceitá-lo, a tirania plenipotenciária, para ser vivida em regime marcial, já ficou lá atrás. É verdade que, enquanto o Império respirar, todos são vulneráveis, todos podem ser as vítimas. A diferença é que as pessoas sabem que já não estão sozinhas. A diferença é que já não estão autorizadas a ter medo.

O Império está ligado às máquinas e, da próxima vez, qualquer madeirense sabe que a eutanásia mora, única e exclusivamente, nas suas próprias mãos. Isto vai acabar porque já não pode haver gente com estômago e pobreza de carácter suficientes para se continuar a associar-lhe. Os que hesitarem quando, na última batalha, o partido fingir que mudam as caras e apelar à velha Madeira dos brandos costumes, lembrem-se que votar PSD, seja em que nome for, é sempre votar este estado de sítio. E façam a coisa certa, se não por convicção ou por vergonha na cara, pelo menos, porque os vossos filhos merecem melhor.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Pacific Rim. Um blockbuster dos antigos


Foi um dos dois ou três filmes mais caros do ano e, a nível de capacidade digital, vive à altura dessa honraria. Os robots, os monstros e todas as sequências de acção são material de primeira água, digno de ser visto em alta definição, e cumprem o seu desígnio de filme majestático de Verão, irrepreensível para quem queira ter duas horas de escape a consumir espectacularidade por ela própria. Não deixa de ser, contudo, um filme bastante limitado nas suas traves mestras, absolutamente previsível e com uma ilusão de grandeza que lhe tira muitos pontos.

De facto, se o trabalho de Guillermo del Toro na realização, para efeitos de um monster movie, é quase intocável, já do seu argumento, partilhado com Travis Beacham (Clash of the Titans), é impossível dizer o mesmo. Pacific Rim até tem umas nuances interessantes, desde logo, a envolverem a história e a química do seu protagonista. Depois, é igualmente capaz de, muito à laia de Transformers, criar uma certa mística com os seus mega-robots. No entanto, as boas ideias ficam-se por esses arranjos de forma e não de fundo. O esqueleto da história - uma invasão de aliens que vêm do fundo do mar para eliminar a raça humana - é banal, o filme não tem um único momento em que seja capaz de surpreender e, acima de tudo, é autenticamente inquinado por um vitral invejável de clichés, que deixa a sensação de estarmos a ver uma colagem de plágios qualquer, sem nenhuma característica identitária própria. Entre regresso do filho pródigo, confrontações com lágrima no canto do olho, romance, frases enjoativas, discursos de batalha e sacrifícios heróicos, acho que não faltou nenhum.

Mesmo possuído pelo excesso de iconofilia tão caro aos americanos, Charlie Hunnam foi uma boa surpresa como lead. Acima do menino bonito e oco, é um tipo genuíno, capaz de agarrar as suas cenas, com arcaboiço interpretativo. Foi uma mais-valia importante. Idris Elba, pelo contrário, passou largos furos abaixo do que pode fazer. O papel pedia-lhe impessoalidade e frieza e o britânico nunca soube ser crível nesse colete de forças. Rinko Kikuchi, a japonesa que ocupa o principal papel feminino, foi um erro ao comprido, do argumento ao cast. Dos restantes, Max Martini tem grande presença e ficou bem na fotografia.

Em suma, Pacific Rim é um bom junk movie, como todos gostamos de vez em quando, caro e bem executado, e que não vai desiludir ninguém que saiba o que esperar e que se divirta com o que ele oferece. Não se pense, no entanto, que há nele alguma coisa acima da média.

6/10

terça-feira, 22 de outubro de 2013

This is the End. Quem dera nem tivesse começado


Ensinou-me uma lição: nunca ir tão contra o meu próprio instinto cinematográfico. James Franco e Seth Rogen são uma das duplas mais espectacularmente sobrevalorizadas do mercado, não gosto de quaisquer reminiscências de Judd Apattow, li a sinopse, vi o trailer e sabia que não podia dar nada pelo filme. Apesar disso, as críticas tinham-no surpreendentemente deixado com a cabeça fora de água, houve delas até simpáticas e lá achei que, com as expectativas tão baixas, talvez fosse a hora de dar-lhes um desconto. Nada mais idiota. Os poucos méritos do filme são completamente incinerados por uma presunção e um non-sense desesperantes, acabando este por ser um amassado tão exaustivo de palhaçada que é impossível ter-lhe qualquer consideração.

This is the End é a história do apocalipse a meio de uma festa em casa de James Franco. Nestes termos, ele e todo o resto do gangue interpretam versões caricaturadas de si próprios, enquanto o resto do mundo incendeia à sua volta e a Terra é invadida por demónios. Para não fugir ao léxico, o filme é uma tábua rasa de proporções bíblicas. Nasceu, com certeza, numa noite bem passada de álcool, erva e pastilhas, e só é pena que também não tenha morrido aí. Consiste, basicamente, em 1h40 de um grupo de amigos que existe na realidade, provavelmente tão pedrado como na realidade, a fazer um daqueles vídeos caseiros asneirantes, cujo único desfrute está reservado para quem nele participa. Juntaram-se todos numa casa, derramaram uns milhares de dólares para os efeitos, realizaram uma bestialidade juntos e fizeram disso um filme de circuito.

Sinceramente, gabo que tenham todos uma carreira com liberdade suficiente para fazerem qualquer devaneio que lhes passe pela cabeça. As caricaturas de si próprios até são decentes e demonstram fair-play, e o texto tem piada de tempos a tempos, com uns pontos extra para Danny McBride e Michael Cera. Depois, é evidente que se sabia, à partida, que não era um filme para levar a sério e essa também devia ser a medida pela qual avaliá-lo. No entanto, a verdade é que, mesmo para quem faz esse esforço de pôr as coisas em perspectiva, no final, é impossível tolerar. This is the End só é um filme consumível se também estiverem alucinogénos por perto, jamais por tentativa e erro, ou porque até pode ser uma ideia ou uma surpresa engraçada. Não é.

4/10

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Elysium. Blomkamp perdeu-se no caminho


Há quatro anos atrás, um até então desconhecido Neill Blomkamp estreou-se no grande ecrã, a escrever e realizar uma obra tão marcante que o fez, de chofre, chegar a nada menos do que aos Óscares, nomeado, sem discussão, para Melhor Filme e Melhor Argumento: District 9 foi um daqueles de que se faz carreira, ficção científica do tipo em que a acção é secundária perante o texto, o contexto e as performances. Blomkamp foi encarado como um quase reinventor do género e a sua nova oportunidade para provar o toque de Midas foi razoavelmente antecipada. Elysium não é, porém, um filme da casta do seu antecessor.

Lembro-me de pensar em como era brilhante a ironia de District 9, o facto do filme ser tão capaz e intenso a nível visual, mas dos seus trunfos terem sido, no fim de contas, as ideias, a subtileza, a classe de propósito com que foi feito. O sci-fi era só um acessório, um embrulho para contar a verdadeira história, e isso é que o tornou tão bom como os melhores. Elysium padece, pelo contrário, de uma certa ilusão de grandeza. Como quando o poder sobe à cabeça, o que pareceu é que Blomkamp pôde usufruir de recursos que antes não estavam ao seu dispor e, com isso, perdeu rumo e identidade. Curiosamente, apesar dos luxos visuais, patentes, em particular, na estação espacial, o filme não é particularmente rico a esse nível. Chega, até, a ser um bocadinho grosseiro, prejudicado, também, por uma edição verdadeiramente lamentável, martelada a todas as horas e que o articula com a delicadeza de quem monta blocos. Elysium não é agradável de seguir e, em vez de ter um fio, de ter previsibilidade, surpresa e clímax, tem um amontoado grande e bruto de episódios rápidos, destrutivos e superficiais.

É pena porque, se a nível da acção propriamente dita, o texto de Blomkamp é incompetente, a nível das premissas da história, não é (excepção feita ao romance, que é outro tiro ao lado). A história do miúdo orfão deixado para morrer, mas que tinha alma para vir a fazer grandes coisas, tem apelo, e todos os repetidos enquadramentos com o passado são francamente bons. Isto nota-se, especialmente, na última sequência do filme, que rende um fim digno e o faz subir alguns pontos. Mesmo que, desta vez, toldado pelo resto, Blomkamp mantém o talento para filmar emotividade no género e a sua aplicação de cenas surdas e utilização da boa banda sonora é dos maiores talentos do filme. Igualmente, o seu mundo pós-apocalíptico, sujo e destruído, é bem mais cativante do que o Elysium, ou seja, a nave espacial para onde a população mundial rica se começou a mudar, assim que os recursos terrestres se tornaram decadentes.

Matt Damon, ainda que com altos e baixos, é um bom lead, que valoriza o filme. O tipo conformado e institucionalizado, cujo destino vai encaminhar, ainda que por linhas tortas, para a epopeia que lhe estava escrita, a sua gastura, a sua impessoalidade triste, o pragmatismo, primeiro, e o heroísmo, depois, valem a escolha. Diria mesmo que o que teve de fraco foi culpa da acção bruta e não da caracterização ou da sua performance. Foi, porém, a excepção, num cast em profundo subrendimento (Jodie Foster no pior), e que tinha gente da estirpe de Sharlto Copley ou Wagner Moura.

O que fica de Elysium são os sinais de que Blomkamp não desaprendeu e de que continuam a haver ali ideias para cinema de outro quilate. Este foi só um rascunho.

6/10

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Drinking Buddies. Uma jóia fora do radar


É uma pérola no universo das comédias românticas, daquelas que só encontramos uma ou duas vezes a cada ano. Drinking Buddies é um retrato de alto quilate das inevitáveis zonas cinzentas de todas as relações, que fala do fruto proibido sem moralismos bacocos, com uma noção e uma maturidade que o tornam especial.

O filme centra-se na história de Luke (Jake Johnson) e Kate (Olivia Wilde), dois colegas de trabalho de extrema cumplicidade, e segue a forma como estes se aproximam perigosamente, enquanto as suas respectivas relações pessoais influem, omnipresentes. O trabalho de Joe Swanberg, que escreveu e realizou, é brilhante. Drinking Buddies plasma leitura, avaliação e sensibilidade, é excepcional nos silêncios e nos pormenores, nos toques e nas quebras de diálogo, terrivelmente realista na forma como ilustra o limbo entre amizade e romance, entre flirts e relações e, muito especialmente, fidedigno nas pequenas coisas que se fazem, que se vêem e que se sentem, mas que não se podem dizer. É um filme sobre química, com posse e ciúme, averso a mares de rosas e a falsos moralismos. Capta a essência da corte e do envolvimento entre duas pessoas com uma maturidade ímpar, sem tiradas sonantes, mas com reacções que falam muito mais do que elas, com dúvidas, mágoa e desejo, e muita coisa dita a medo, subentendida ou deixada por dizer, exactamente como na vida real.

O filme não tem propriamente um clímax ou um grande desenlace, mas se não ter uma estrutura rígida pode ser visto, por alguns, como uma fragilidade, acho que parte da sua chave está exactamente no facto deste ser uma colectânea de episódios que valem por si próprios, um retrato fidedigno das coisas como elas são, sem princípio-meio-fim, das coisas que não têm de "acontecer" para ser. A realização de Swanberg, por sua vez, ainda consegue engrandecer todo o produto. Tem delicadeza, movimento, cor, óptimos planos interiores e de pormenor, e uma grandíssima intimidade, porque perde todo o tempo necessário com as pessoas, com os seus jeitos e com os seus silêncios, e isso é basilar para o óptimo resultado final (completado por uma bela banda sonora).

O realizador é conhecido por pedir ao seu cast que improvise a tempo inteiro e o resultado não podia ter sido melhor. Neste registo, o grande Jake Johnson, o Nick Miller de New Girl, é um peixe na água. É o tipo engraçado, carismático e crianção que enche qualquer sala e de quem é impossível não gostar, e, extrapolado pela liberdade de diálogo, consegue criar uma simbiose incrível com Olivia Wilde, de uma naturalidade irresistível, difícil de criar em laboratório. A forma como a sua aura de todas as horas é, depois, perpassada por uma nuvem surda de ira e acidez, que ele não consegue remediar, é magnífica. Wilde abandona a capa de sex-symbol e surge, aqui, como a miúda normal em que a personalidade é que é profundamente sedutora, o que lhe rende, também, uma performance excelente. É vulnerável e é forçada a viver sempre numa fronteira, mas nunca deixa de ser concreta, e a sua última chamada à realidade é ouro cru em forma de cena. Anna Kendrick e Ron Livingston, finalmente, completam um elenco que funcionou realmente bem, fruto da fusão perfeita das suas características: ambos mais "velhos" na maneira de ser, ela absolutamente doce, ainda que ingénua, ele pragmático, terra-a-terra, sempre certo do que quer.

Como já disse, admito que nem toda a gente adore a narrativa flexível do filme mas, mesmo que aparentemente fora dos radares, Drinking Buddies é um dos imperdíveis do ano. Oxalá os Globos não o deixem passar em claro.

8/10

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Gravity. A experiência cinematográfica do ano


Era, assumidamente, o primeiro grande filme dos Óscares e andara, por estes dias, nas bocas do mundo, a receber elogios massivos da crítica e a reunir, do público, um consenso fora do comum. A forma justa de o introduzir é dizer que Gravity vive à altura dessa reputação. Não sei se é o melhor filme do ano, mas o estatuto de mais espectacular evento cinematográfico de 2013 ninguém lhe tira.

Num monumental 3D, o seu poder visual é de cortar a respiração. Ao nível da recriação do espaço e dos efeitos especiais, Alfonso Cuáron realiza uma obra com que a esmagadora maioria dos directores apenas pode sonhar. A execução digital do universo profundo, as panorâmicas da Terra, a articulação com o Sol, as avenidas do espaço, a profusão dos acidentes e as digressões dos protagonistas no vazio esmagam-nos como se tivéssemos efectivamente o pescoço mergulhado naquele espaço sideral. A cinematografia incrível é de Emmanuel Lubezki, génio por detrás da perfeição de Tree of Life, e o luxo de envolvência que o filme proporciona consegue bater o que James Cameron alcançou em Avatar. Trabalho bestial de Cuáron, próprio da galeria de mestres, e que lhe estende, desde já, uma passadeira para a época dos prémios. Tudo ponteado com uma brilhante banda sonora, escrita e conduzida pelo britânico Steven Price.

Contudo, apesar de tamanho deslumbramento, seria um erro de palmatória reduzir Gravity ao seu espectáculo visual. O que Cuáron criou, ele que co-escreveu o argumento com o filho Jonás, é um glorioso thriller psicológico, que transforma, por hora e meia, a sala de cinema numa verdadeira câmara de pânico, fazendo-nos sentir a claustrofobia e a pulsação dos que estão dentro da tela, ao ponto de nos impingir uma agonia física. Dessa agressão permanente, o filme ainda comete a proeza de derivar para sequências verdadeiramente desconcertantes, que ilustram, de uma forma cândida, a fragilidade das pessoas, ao colocá-las, a nível emocional, tão pequenas como os seus corpos que vagueiam no vazio. A vulnerabilidade de ser pó no meio do vento, o instinto de sobrevivência, mesmo quando já não parece poder haver esperança, a solidão extrema e total, a vertigem de desistir e a forma como se sabe, ou não, agarrar a vida, dotam Gravity de uma humanidade verdadeiramente singular.

Sandra Bullock tem uma performance monstruosa que a atira, desde já, para a antecâmara do Óscar. É uma anti-heroína completa, a pessoa comum que subsiste, não por coragem, mas porque, contra todas as possibilidades e contra todas as motivações, decidiu que a sua única escolha era dobrar o medo e a sorte. As inúmeras vezes em que é posta a prova, a nível psicológico ou a nível físico, são sempre profundamente críveis, porque lhe parecem sempre sair da pele. Sofremos com ela e compreendemos o tamanho da sua provação, e isso é o mais alto a que uma interpretação pode chegar. Clooney, por seu lado, é um secundário importante, valioso, primeiro, por dar cor ao contexto, e, depois, por emprestar-lhe espírito, naquela que é, para mim, a mais notável sequência do filme, o momento em que ficam ambos suspensos no espaço, presos, apenas, por um cabo na perna de Bullock.

A única maneira possível de acabar uma crítica sobre Gravity é pedir que o vejam numa sala de cinema. Vão, sem pensar duas vezes. É que pagar bilhete para se deslumbrar é, definitivamente, uma das vezes em que vale a pena.

8.5/10

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Fast & Furious 6. Ainda o melhor guilty pleasure do mercado


Há casos de militância em que uma crítica tende a ser redundante. Fast and Furious é uma dessas situações em que sou suspeito: a franchise tem química, tem carisma, tem história e continua a ser absolutamente competente a concretizar o core da sua acção. O tempo passa e continua a cravar legado e, acredito, a preservar a sua legião de fiéis. De Furious já se sabe o que esperar e só consome quem quer: a reunião do insubstituível velho gangue para cada nova jornada, um sem fim de sequências brutas de acção e uma trama romanticamente moral, seja no crime, num ajuste de contas ou, como agora, do lado da família e da lei. Admiro, muito especialmente, a capacidade da saga para continuar a manter os pés no chão e a ser pura na sua história, sem nunca descaracterizar o seu adn com ambições desmedidas. Hoje, usufrui de um carisma palpável e de uma identificação com os espectadores que é incontornável (um mimo os minutos de genérico, com a alusão a todos os velhos tempos).

Foi o filme número 4 da conta de Justin Lin e o taiwanês voltou a dar bela conta de si. FF continua a valer o bilhete pelo poderio de cada grande sequência - mesmo que não resista a exagerar aqui ou ali -, coisa que conjuga com a sua sempre aprazível corrida pelo globo, cheia de lugares ricos, a fazer a jornada da sua trama. Chris Morgan, no argumento, faz parceria com Lin desde Tokyo Drift e, se é  verdade que a génese da saga não dá espaço para quaisquer refundações, é justo enaltecer a excelente forma como o texto concretizou a linha mais identificativa da história de Furious 6, e aquela que ameaçava ser a sua grande vulnerabilidade: a "ressurreição" da personagem de Michelle Rodriguez. O tratamento dessa narrativa acabou por ser, não só simples e elegante, como uma efectiva mais-valia para a história, numa injecção de química que rendeu, por exemplo, a melhor cena do filme (Letty e Toretto no fim da corrida de rua).

O regresso de Michelle Rodriguez foi, aliás, um aumento de capital exponencial no cast. Mesmo que, agora, num contexto que a forçou a ser mais impessoal, a latina voltou a ser uma verdadeira chapa e é inevitável ficar rendido ao poder que empresta a cada cena. Se a partição da ribalta com Paul Walker foi quase sempre a regra, desta vez, este é, assumidamente, um filme de Vin Diesel, que o aproveita tanto quanto possível. É a sua história, a sua família e a sua saga e, em FF6, Diesel enche a casa, mais plenamente patriarca do que nunca. No resto, é um cast que preserva o je ne sais quoi de sempre e que, realmente, continua a brilhar como um todo.

Como o provou uma vez mais, Fast and Furious continua a resistir ao teste do tempo e, por mérito próprio, a recusar etiquetas de validade. No próximo Verão, com novo realizador e reforços do peso de Jason Statham, Djimon Hounson ou Kurt Russel, aí continuará para as curvas.

7/10

Now You See Me. A magia só enganou até onde pôde


2006 terá sido um ano que converteu muito bom cinéfilo à magia. Eu, pelo menos, fiquei fã: The Illusionist foi pejado de qualidade e The Prestige conseguiu, simplesmente, ser um dos meus melhores de sempre. A magia dava, afinal, para autênticas avenidas de coisas bem reais e essa dualidade sedutora vinha para ficar, mesmo que nos anos subsequentes não fosse voltar a ser alimentada. Now You See Me foi a primeira oportunidade para voltar ao género, desde aí. Como um truque mau, contudo, se é verdade que até nos engana durante boa parte do tempo e insinua ser bem maior do que é, o desfecho é tão raso que faz com que todo o filme desabe com ele.

Now You See Me conta a história de quatro talentosos mágicos de pequena monta que, num dado momento, são convocados por alguém que desconhecem para um endereço misterioso, onde lhes é apresentado um ambicioso plano de carreira. Um ano depois, eles são os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, um glorificado quarteto de magia que, no píncaro da sua digressão por Las Vegas, vai começar, aparentemente, a concretizar assaltos a bancos, no decurso do seus espectáculos. O filme tem bons traços de argumento, sobretudo na forma reverente como trata a magia, a sua história, os seus princípios e a arte em si. É forte a nível dessa recriação de contexto, interessante nos seus sucessivos truques e tem bons diálogos e boa interacção entre as personagens, sendo colmatado por um realização capaz de Louis Leterrier (Transporter ou Hulk). Numa avaliação global, contudo, a verdade é que deixa uma infinidade de questões por esclarecer, mercê de uma negligência quase total à sua própria sustentação. O filme vai acumulando camadas sem nunca responder a perguntas e é quando chega a hora de o fazer, no último acto... que se dá o seu espectacular falhanço. A parte "mística" é má e o mistério revelado é de thriller de 5ª categoria, colado a cuspo sem sentido e sem uma gota de génio.

Ao contrário do que se poderia supor, o cast (5 nomeados ao Óscar, 2 vencedores!) responde bem e merecia melhor. Jesse Eisenberg, acima de todos, é excelente, e continua a sua travessia no deserto à procura de um grande filme que finalmente lhe faça jus. A arrogância, a sagacidade e o seu ritmo paranóico já são uma imagem de marca e continuam a projectar as suas personagens. Woody Harrelson é o outro destaque, num registo de veterano de outros tempos, provocante e gozão, mas incisivo e carismático. No seu infindável rol de secundários, Morgan Freeman encontrou igualmente aqui um dos que melhor lhe assentou nos últimos anos. Já Mark Ruffalo e Sir Michael Caine estiveram na mó de baixo, parecendo sempre pouco confortáveis nos respectivos papéis.

Em dado momento, Now You See Me foi o tipo de truque com predicados e charme suficientes para querermos realmente acreditar nele. No fim, porém, o seu gigantesco nada capou pela raiz o que de bom houve no resto.

5/10

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

World War Z. Faltou identidade ao potencial


Com o livro homónimo, Max Brooks tornou-se, em 2006, num renomado best-seller e num dos mais admirados autores pós-apocalípticos do mercado. Apelidado de inadaptável ao cinema, World War Z foi mesmo considerado um reinventor do género. Numa época de profunda reminiscência da ficção zombie, o filme de Marc Forster, cuja produção atravessou um sem-número de percalços, reuniu, por isso, uma expectativa grande, mesmo que mais ou menos diluída pelo caminho, nesses contratempos. WWZ é, de facto, um filme capaz, com uma história que tem o mérito de não se limitar a ser vulgar, mesmo que acabe por revelar-se deficitário e fique longe de fazer escola como a sua obra-mãe.

O americano Matthew Michael Carnahan (autor de The Kingdom ou do excelente State of Play) assinou a adaptação do argumento, num processo verdadeiramente traumático, que implicou mais de um ano de atraso, a reescrita completa da primeira adaptação e uma terceira reinvenção do último acto, já escrita por Damon Lindelof e Drew Goddard, mítica dupla de Lost. No caminho, WWZ passou a ser um filme de acção no presente, abandonando parte substancial da premissa do livro, ao ponto do criador Max Brooks ter dito que este deixara de ter qualquer ligação à sua obra, à parte o título. O livro é uma colecção de relatos individuais elaborada dez anos depois da guerra desesperada contra a praga zombie, onde o narrador é um antigo quadro das Nações Unidas; Carnahan tornou-o, por sua vez, na jornada desse agente pelo mundo a partir da explosão do contágio, para tentar identificar a génese da epidemia e conceber uma forma de a conter, enquanto tem, ele próprio, de manter a família a salvo.

O filme é cativante durante boa parte do tempo. Fazer uma investigação à volta do mundo, em pleno pós-apocalipse, funciona porque mais ninguém o fez. Da Coreia do Sul a Israel e a Gales, acumula boa fotografia e é um filme puro, no sentido em que enaltece o carácter "científico" da epidemia por si, o efeito de ir investigar para resolver, e foge ao usual estado de sítio entre humanos. Mesmo assim, o filme falha na temporização. Não é corajoso o suficiente para fazer poucas coisas e perder mais tempo com elas, para deixar pontas soltas ou para fazer sacrifícios, tentando, ao invés, condensar toda uma temporada feliz de Walking Dead em 2 horas, o que o torna superficial e difícil de levar a sério. O desfecho, depois, o tal que foi reescrito três vezes, é manifestamente infeliz. A sequela está omnipresente, mas isso não justifica tão grosseira falta de suspense. O suposto zénite do filme acaba por não ser mais do que um piloto automático absolutamente sem sal.

Marc Forster - que dirigiu, por exemplo, o pior 007 de Craig - não faz uma grande realização. Ao tratamento das cenas de zombies em massa faltou classe e sobrou mau gosto. Faltou tensão e individualidade aos momentos de nervos e o filme não chegou a estar perto de convencer nesse campo. Faltou perder mais tempo nas cenas, ser menos ambicioso e ter mais tacto. Em geral, a verdade é que WWZ padece sempre de uma clara falta de alma. Brad Pitt devia ter estado melhor. Tem duas horas de palco para brilhar a solo e nunca chega aos níveis exibicionais que o celebrizaram. Pareceu, também ele, contagiado pelo défice de profundidade do filme e incapaz de ser mais convincente. À excelente Mireille Enos não deram qualquer espaço. A boa surpresa veio de Daniella Kertesz, israelita de 24 anos em estreia a este nível, que, apesar de ser uma secundária com importância nula para a trama, acaba por emergir, mercê da intensidade perturbante que emprestou ao papel.

World War Z não deixa de ser um filme competente no género, com potencial nas ideias próprias, bons ambientes e boas influências, que se vê com disposição. A crítica que fica é construtiva no sentido de que parece existir um potencial subjacente que, claramente, não foi capitalizado desta vez. O filme não foi capaz de achar a sua identidade, de se particularizar e de ter uma pincelada de génio quando chegou a hora. Quem sabe a sequela ainda é capaz de se reencontrar.

6.5/10

sábado, 12 de outubro de 2013

The Great Gatsby. Os grandes filmes acontecem quando menos se espera


Esteve nas minhas listas de mais esperados nos últimos dois anos, pela magnitude da obra e pelo elenco fantástico, mas, por algum tipo de preconceito à filmografia de Baz Luhrmann, atestada pelas linhas dos trailers e pela crítica em geral, já não estava verdadeiramente à espera de um grande filme. A questão era ver se tinha, pelo menos, salvo o essencial ou se se limitara, pelo contrário, a ser um desastre criativo qualquer. Nada mais errado. Do alto da sua profunda inortodoxia, The Great Gatsby é um dos maiores filmes de 2013.

Acima de tudo, é indispensável destacar, justamente, a realização de Baz Luhrmann. O que o australiano conseguiu acontece muito poucas vezes: um filme exposto de forma pouco convencional, com muita liberdade e pouca linearidade, abusivo a nível imagético, propositadamente exagerado... mas que, no fim da linha, se completa em todas essas dimensões e rende um produto excelente, de uma homogeneidade indiscutível. The Great Gatsby é um filme extraordinariamente gráfico, tantas vezes teatral e abertamente luxurioso. Especula imenso com o 3D e experimenta tudo, desde cores a cenários digitais e, até, a tipografia. Isso confere-lhe, contudo, um poder visual que é gigantesco. A majestade das suas maiores cenas, a cadência e a explosão ocular que provocam, sugam-nos para dentro delas e materializam, de uma forma espectacular, a época que retratam. Luhrman foi tão longe quanto possível na ambição das suas cenas e, ainda para mais, ganhou a aposta na aplicação ostensiva de música actual a todas elas (ao som de 'Young and Beautiful', de Lana del Rey, assina a grande cena do filme). O efeito é notável. Fora o brilho transversal, The Great Gatsby reúne, aliás, um punhado impressionante de sequências que tudo isso fundem.

A história de Scott Fitzgerald, que já tive oportunidade de ler, é grandiosa e intemporal. O drama do milionário icónico e misterioso que abala as fundações de uma cidade mundial tão só para fazer contas com o passado e resgatar a mulher da sua vida, e as ironias, as desventuras e a crueza da sua jornada, numa época tão gloriosamente mítica como os Loucos Anos 20, é co-adaptada pelo próprio Luhrmann de uma maneira irrepreensível. A narrativa foi muito bem desconstruída, fizeram-se bons ajustes de pormenor, fez-se contexto, a narração ficou muito bem e, em particular, num filme que é extremamente intenso e rápido, conseguiu-se preservar toda a profundidade. Os momentos-chave concedem todo o tempo para que os possamos sorver e isso plasma a excelente leitura de quem os adaptou. O filme tem humanidade e tem intimidade, e todo o seu excepcional desenrolar não é minorado pela poderio das três dimensões.

No cast, é recorrente dizer isto... mas Di Caprio é sensacional. Metamorfiza-se ao longo de toda a acção e capta rigorosamente todas as luzes e sombras do grande Jay Gatsby, assim como Fitzgerald o terá concebido. Primeiro genuinamente fascinante, depois assombrado e até louco e, por fim, simplesmente puro, cândido, bom. Era impossível fazer melhor. Tobey Maguire está igualmente muito bem, num papel focal, mas muito mais simples do que glamouroso. A sua génese pacífica fica como imagem de marca, preenchendo-se, primeiro, pelas dúvidas e, depois, pela profunda devoção ao homem que aprendeu a admirar. Sendo ele o narrador, a amargura e o desalento que tem omnipresentes acabam por completá-lo numa densidade notável. Carey Mulligan está bem, pese poder ter estado ligeiramente mais forte. É a mulher doce e ingénua, que quer voltar e, ao mesmo tempo, escapar do seu passado, num papel que desenrola tão realista e cru quanto possível. Joel Edgerton, finalmente, não causa impacto de início, mas fortalece-se com o evoluir da acção e acaba por estar nos píncaros numa das cenas finais.

Gatsby teve uma recepção pouco unânime da crítica e consigo admitir que, possivelmente, não seja para todos os gostos. É certo, contudo, que quem o saiba apreciar, desfrutará de um poder cinematográfico - e isto vai do visual à dimensão da história, da banda sonora ao nível das interpretações - que não aparece por aí assim tantas vezes.

8/10

sábado, 5 de outubro de 2013

Wenger e a pedra filosofal


O Arsenal foi uma das vítimas do Verão. Wenger até anunciou um rompimento com o passado recente e agitou o cheque pelo qual os adeptos há tanto ansiavam... mas, algures no caminho, os gunners pareciam ter desaprendido a fazer as coisas como gente grande. A novela-rainha foi Suárez, onde um Liverpool longe do velho status chegou mesmo ao ponto de gozar com a cara do rival. Nos entretantos, sucedeu-se a chuva de nomes da alta sociedade europeia, com as tampas mais dolorosas a virem de Higuaín, que preferiu trocar o Real por uma Serie A esquecida, e de Luiz Gustavo, que, titular do Escrete, partiu do campeão europeu para jogar, em vez, no meio da tabela da Bundesliga. No último dia do mercado, o mesmo Arsenal que não ganhava nada há oito anos parecia um nobre não só falido, como profundamente desacreditado. Depois das dezenas de capas de jornais a alimentarem a codícia da sua multidão, a sua única cara nova... nem isso fora. Flamini limitara-se a regressar a casa, numa viagem abençoada pelo Milan a título gratuito.

Por tudo isso, ninguém podia verdadeiramente imaginar o que estava para vir. Que, em cima do gongo, o comprador da jóia mais graúda do leilão fosse mesmo um coleccionador de arte francês emigrado no Norte de Londres, há tanto tempo esquecido da sua própria glória. Na penumbra do mercado, com o sangue frio de um verdadeiro especulador, Wenger bluffou até ao último minuto. Formado em Economia pela Universidade de Estrasburgo, ainda não seria desta que "O Professor" fraquejaria na sua ideologia, pagando fortunas que não concebia justificadas. Por uma vez na vida, contudo, Arsène perdeu mesmo a cabeça. Por uma vez na vida, gastar 50 milhões de euros numa gema pareceu-lhe uma ideia ridiculamente perfeita. Wenger encontrara o bloco sobre o qual reconstruir a sua Igreja.

Ver o impacto desmesurado de Ozil no novo Arsenal é uma dádiva para toda a gente que gosta de futebol. Desde o primeiro momento em que as botas do Mago de Oz pisaram um relvado britânico, que aquela camisola pareceu ter esperado a vida toda por ele. Quando Wenger chegou a Londres, o pequeno Mesut estaria ainda a tocar a bola nas ruas de um qualquer bairro turco de Gelsenkirchen; a verdade é que ele é a imagem e a semelhança de tudo o que o Arsenal personifica. Partilham ambos cada bocado do mesmo adn futebolístico: bola no pé, criatividade, carrossel, classe, classe e mais classe. Há jogadores que se diz tornarem melhores todos os outros à sua volta. Ozil é evidentemente esse estudo de caso. Ao ver a liderança na Premier League e a superioridade no grupo da morte da Champions, ao ver, acima de tudo, as brutalidades que este Arsenal anda a jogar, o alemão não parece um futebolista. Parece um guia espiritual, o autêntico guardião de um estilo que, sem ele, já não parecia poder voltar a ganhar.

Curiosamente, um dos mais entusiasmantes onzes europeus da nova época nem tem podido contar com cavalaria do quilate de Cazorla, Walcott ou Podolski. O Arsenal continua a padecer de uma onda de lesões estapafúrdia, em quantidade e em preponderância; a diferença é que, agora, nada disso é assim tão importante. Na vez deles, têm surgido todos quantos necessários, do novo comboio galês da Premiership a uma canhota francesa que começa a exorcizar humildemente a assombração de Van Persie. Agora, joguem os que jogarem, parece que vai sempre funcionar. É que, enquanto o senhor dos 100 milhões continua a vegetar num ocaso constrangedor em Madrid, há um Harry Potter que vai inundando Londres de magia, por metade do preço.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Orange is the new Black. Muito mais fama do que proveito


Fraquinha.

Falaram dela na passadeira vermelha dos emmys como um dos maiores buzz do Verão e é facto que tem recebido críticas positivas e colhido muito boa aceitação do público. Certo é que, pelo piloto, fica difícil perceber. Orange is the new Black é uma dramedy inspirada na vida de Piper Chapman, uma americana de classe média-alta que teve de cumprir um ano numa prisão de segurança mínima, uma década depois de, aos 22 anos, ter servido de correio a dinheiro de droga. As suas memórias desse tempo renderam-lhe um best-seller e é nele que a série se inspira.

Difundida na plataforma online Netflix, tal como House of Cards ou Arrested Development, foi adaptada por Jenji Kohan (criadora de Weeds e vencedora de um emmy), mas, sinceramente, tem muito pouca coisa por onde se lhe pegue. Toda a fusão de estilos comédia-drama tem um mau enganche e a série não está sequer perto de ser atraente em nenhum deles. Parece, pelo contrário, sempre artificial, oca, sem pingo de alma. Não me lembro de nenhuma gag que tenha tido piada e todos os momentos dramáticos são enervantemente balofos, e não têm sequer tempo para respirar, ou não lhes seguissem, por sistema, uma espécie de graça qualquer.

Taylor Schilling também não tem unhas para deter uma série. Tem uma personagem cheia de peculiaridades, atrapalhada, relativamente emocional e supostamente doce, uma tipologia à la Zooey Deschanel, que é muito fácil de gostar. Acontece que, ao contrário da cara de New Girl, Schilling não tem qualquer empatia. Não consegue encarnar o papel, parece quase sempre deslocada e é muito mais gozona do que capaz de ter piada. Quando põe o pé em ramo dramático, isso ainda piora. O resto do cast também não plasma boas sensações - o lendário Jason Biggs (American Pie) parece andar de colete de forças... -, à excepção de Laura Prepon, que vai crescer na série e denotou presença para colocar-se acima dos demais.

Em suma, o piloto faz pouco pela série; seja como for, Orange is the new Black já foi renovada para uma segunda temporada.

Derek. Gervais numa comédia-drama (estranha)


Série particularmente estranha do léxico gervasiano. Derek é uma comédia-drama sobre um autista que, com mais uma mão de peculiares responsáveis, serve de ajudante num lar de idosos. Alguns traços da sua acção estão omnipresentes, como o constrangimento das piadas, mas, ao contrário da génese da obra de Gervais, Derek tem, efectivamente, uma conotação dramática verdadeira, no quadro dos idosos "pobres, enfraquecidos e esquecidos" e na maneira como todos os personagens terão de lutar para poder manter as portas do lar abertas.

Filmado no seu tradicional mockumentary (um formato que, aos poucos, também se vem a gastar) é difícil, no resto, perceber as suas traves-mestras. A personagem de Gervais tem um interesse quase nulo, ainda que tenha despertado controvérsia: os críticos retrataram-na como uma piada barata a deficientes, ao passo que o criador o rechaçou completamente, dizendo que o que personificou foi a pureza de alguém que só quer ajudar, sem ser minimamente ofensivo. Seja de que maneira for, a primeira vista soube a muito pouco. As piadas foram condescendidas e infantilizadas, e esbateram-se sem qualquer peso pelos tradicionais 22 minutos de episódio. O lado que despertou alguma atenção foi, sinceramente, o mais sério, em que o piloto foi capaz de produzir dois ou três momentos bons, com narração e banda sonora incluídas, que sugerem uma possível cobertura à série.

Como é que Gervais terá conjugado a sua lógica de escrita habitual com papéis focais pobres e um background diferente de tudo o que já fez, é uma dúvida de monta... ainda que não grande o suficiente para continuar a consumir este outro produto da Netflix.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Masters of Sex. A primeira pérola da temporada


Pelo menos, parece.

Notavelmente desenvolvida por Michelle Ashford (nomeada ao Emmy como co-argumentista de The Pacific), conta a história de William Masters e Virginia Johnson, a parceria improvável entre um ginecologista e uma ex-cantora de boate, que, no fim da década de 50, se tornaram investigadores pioneiros na pesquisa sobre a resposta sexual humana. Juntos viriam a registar os primeiros dados de sempre sobre o campo a nível anatómico e fisiológico, tendo por base um método de observação directa, então chocante, e nunca dantes levado a cabo. As suas principais conclusões, a respeito da estimulação sexual feminina e do orgasmo, fizeram deles investigadores icónicos e autores de culto.

Ashford adapta aqui um livro de Thomas Maier (Masters of Sex: The Life and Times of William Masters and Virginia Johnson) e, a avaliar pelo piloto, ameaça ter feito um trabalho de eleição. Masters of Sex é uma série híbrida no melhor sentido da palavra, determinadamente séria sem ser pesada, com belíssimas madeixas de humor, mas longe de ser cómica, com um texto tão rico quanto acessível e um inefável manto de curiosidade. É esse, aliás, o mais irresistível de todos os seus trunfos: na fusão entre descoberta, intimidade, preconceitos de uma geração e construção de conhecimento, mais do que qualquer género, Masters of Sex é uma série genuinamente interessante.

Os protagonistas também marcam pontos desde a primeira hora. Michael Sheen tem uma densidade enorme. Não é o tipo carismático ou arrogante que se costuma alugar para lead mas, em vez, um homem inseguro, ainda que determinado, estranho, ainda que com um certa aura. Projecta uma vulnerabilidade magnífica, um contra-peso notável entre o médico supra-sumo que é e a fragilidade dos seus fantasmas pessoais. Lizzy Caplan brilha à mesma altura. É carismática, ágil, tremendamente auto-confiante e tem uma presença extraordinária. Tal como a sua própria personagem, parece uma escolha por instinto, e facto é que acerta à primeira vista.

O piloto da Showtime (29 de Setembro) não podia ter deixado melhor impressão: a série foi reconhecida pelo Critics Choice como uma das mais prometedoras do ano e já lhe viu serem garantidos os 12 episódios da primeira temporada. Pela amostra, a sensação que fica é a de um must para o Outono 2013.