quinta-feira, 10 de abril de 2014

Uma quarta-feira qualquer


"You find out life's this game of inches, so is football. Because in either game - life or football - the margin for error is so small. I mean, one half a step too late or too early and you don't quite make it. One half second too slow or too fast and you don't quite catch it. The inches we need are everywhere around us. You've got to look at the guy next to you, look into his eyes. Now I think you're gonna see a guy who will go that inch with you. You're gonna see a guy who will sacrifice himself for this team, because he knows when it comes down to it you're gonna do the same for him. That's a team. That's football guys, that's all it is."
Al Pacino, Any Given Sunday

20 minutos dos quartos-de-final. 1-0, três bolas na trave, um furacão vermelho e branco a varrer cada bocado da relva do Caldéron. Uma arritmia em forma de exibição, hipertensa, sufocante, perfeitamente avassaladora. Mais perto ou mais longe do Olimpo, o Barça continuava a ser Barça. Continuava a gozar duma mão de futebolistas incomparável, capaz de perverter sempre a estratégia de qualquer mortal. Todavia, o facto de qualquer jogador catalão ser melhor do que o seu respectivo adversário não estava a ser mais do que lógica amassada. Mais do que universo a ser devorado pela radicalidade de um livre arbítrio, assim que, por cada elegante pirueta blaugrana, apareciam três ou quatro leões ao mesmo tempo, como se tivessem mais jogadores ou o seu campo fosse mais pequeno, numa carga irreprimível e sem fim, comprometidos com cada lance como se deles dependesse a vida ou a sua morte.

O Atlético não é o melhor onze que vimos jogar, o mais talentoso ou, alguma vez, o favorito. Mas é aquele que levaríamos sempre para a guerra. O Atlético é a equipa que não te desilude, porque não tem dias maus e não depende do adversário, nem da sorte. É a equipa que nunca te vai deixar mal porque, mesmo se tudo o resto falhar, sabes que jamais te deixará sozinho, que jamais deixará de lutar. Porque toda ela é de uma desconcertante e impagável honestidade competitiva, que não demora a convencer-te do quão é especial, e que demora ainda menos a mostrar-to de todas as vezes. Woody Allen escreveu um dia que o talento é sorte, o que conta na vida é a coragem. O Atlético é a equipa que gostávamos de ser.

Se um colectivo se mede pela abnegação, pela audácia e pela solidariedade, pela crença inabalável de que não há impossíveis, mais do que em nós próprios, naqueles que nos rodeiam, então o Atlético é mesmo a melhor equipa do mundo. A melhor porque é muito mais do que isso. É um batalhão, um bando de irmãos, uma profissão de fé. Uma equipa feita muito melhor do que é, porque nunca joga sozinha. Ontem não estava a sua estrela, um dos monstros do ano, e a Simeone bastou reiterar que 'por cada jogador do Atlético que caia, outro se levantará'. Que o suplente, ao fim de um ano de ocaso, não só jogaria, como ia marcar. Foi de Adrián o passe decisivo. O Atlético não joga com 11, joga com 25 de cada vez, com o terceiro guarda-redes, o último lateral, o médio dos juniores e um ultra da claque. Na Antiga Pérsia, a tropa de elite do Imperador tinha um nome especial, baseado no facto de, fossem quais fossem as baixas e as circunstâncias, ter permanentemente um corpo de 10 mil homens: chamavam-se Os Imortais. Este Atlético já não morrerá no coração de muita gente.

No banco, El Cholo, de fato breu e cruz de prata ao peito, parece ele próprio uma figura mitológica. Um último evangelista com o mapa para a Terra Prometida, um feiticeiro que pede aos seus humanos para ousarem ser gigantes, única e exclusivamente por confiarem nele. Um general com os gritos, os gestos e a aura dos loucos, com um carisma capaz de arrancar até gente aos mortos, um líder que os tornou a todos tão incrivelmente melhores, que talvez tenha, de facto, algum super-poder. No campeonato mais bipolar do Mundo, que não ganha há 18 anos - então com Simeone... em campo - o Atlético já era líder isolado. Agora eliminou o Adamastor de uma Era, e voltou às meias-finais dos Campeões, 40 anos depois. A sua travessia não tem sido só um hino ao futebol. Tem sido um tratado de transcendência, no campo como na vida. Num clube conformado à sombra e à derrota, Simeone foi o profeta que lhes ensinou que se quisermos todos, somos muitos mais. Que se estivermos todos, somos muito melhores. Que se acreditarmos juntos, podemos tudo.


Aos adeptos do Atlético chamam-se colchoneros porque, feitos na classe operária madrilena, era na precariedade de modestos colchões que sobreviviam aos piores dos tempos. Na cidade do clube do século, foi em cima da resiliência dessa gente que o Atleti se construiu. Foi na altivez das suas durezas, e exactamente por causa delas, que esculpiu a sua mística e se cunhou "eternamente grande". É tanto mais certo por isso que a vida lhes tenha emprestado o líder que eles merecem. Há uma cena do 300, de Zack Znyder, em que explicam ao Rei Leónidas que determinado exército tem mais homens do que os seus espartanos. Ele responde-lhes, "Homens sim. Mas quantos soldados?". Hoje em dia, é essa a pergunta que qualquer adversário do Atlético deve fazer.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

À altura da ilusão


Imagino-me a entrar num pub com o cachecol de lã, em vermelho e branco puro, sem letras e sem emblemas, escapando ao frio gelado da rua. Lá dentro, os Beatles a tocarem em fundo, como num ritual em dia de jogo, com cerveja e inglês cerrado, no meio de uma procissão de fé capaz de trazer à vida o poster da equipa bicampeã europeia em 78. Imagino-me a sair de sobretudo, a cruzar um mural de Paisley e a prestar reverência contrita à estátua de Shankly, ao lado de um miúdo esbugalhado de espanto, enquanto o pai lhe conta quem foram eles, e porque ali estão, eternamente maiores do que os outros mortais. Imagino-me a chegar aos metafísicos portões de ferro de Anfield e a ficar encadeado por eles, fixo nas letras encimadas por todos os tempos. 'Nunca caminharás sozinho'. Poucos momentos antes de, em pé, no Kop, ser também eu uma modesta voz a plenos pulmões, cantando o hino sagrado numa experiência extra-corporal, como se tivesse estado em Liverpool todo e cada dia da minha vida.

Há clubes grandes, há clubes históricos e há clubes ricos. O Liverpool está no raríssimo lote de clubes místicos, porque nada daquilo se pode remotamente comprar, porque nada daquilo pode ser substituído por vitórias, por troféus ou, sequer, pelo tempo. Apaixonei-me pelo Liverpool nos anos que já não eram os seus: o último campeonato, por exemplo, foi ganho três meses antes de eu ter nascido. Apaixonei-me porque, em consciência, era inevitável. Porque qualquer um que ame futebol está condenado a essa irrecusável proposta do que o jogo pode significar para a vida das pessoas, de como pode tornar-se tão maior do que elas. Como Dalglish, que se despediu pedindo que não chorassem por ele, porque "ninguém podia alguma vez ser maior do que o Liverpool'. O futebol é pessoal, tem de ser. Quando um futebol nos arrepia, sabemos sempre que chegámos ao sítio certo.

Estava à frente da televisão quando, em Istambul, aconteceu a outra final da minha vida, numa segunda-parte onde nunca me poderão convencer de que o Liverpool jogou só com onze. Quem tiver olhado com atenção, terá visto, lá evocados, Keegan a cruzar para Gerrard ou Rush a recargar o penalty decisivo. Todas as lendas de todos os tempos voltaram à Terra nessa noite sobrehumana, como almas canalizadas pelas gargantas daquela gente que, a perder uma final europeia por 3-0 ao intervalo, cantou assim no descanso. Esses milhares que tiveram o privilégio de estar no Atatürk, no fundo, limitaram-se a viver à altura do mantra de Shankly, e sabiam que "o futebol não é um jogo de vida ou de morte, é muito mais importante do que isso". 

À parte esse dia maior do que a vida, porém, o Liverpool mais forte que vi, a temível némesis europeia de Mourinho, era uma equipa de Benítez. Feia, armada, desapaixonada, lobotomizada de carisma. Um Liverpool de Benítez não era verdadeiramente o Liverpool. Os anos que lhe sucederam também não foram amáveis. A equipa não deu o salto em frente nem se reencontrou, derivou na tabela e teve de abdicar da Champions. 2013-2014 tem, contudo, sido uma época especial. Envergonhada de início, orgulhosa nas suas insuficiências depois... e deslumbrante neste epílogo. No último sábado, à oitava vitória seguida e ao 88º golo marcado, a equipa para quem o top-4 era um sonho risível de Verão, isolou-se no comando da Premier League, a um mês do fim.

Se o velho Paisley, até hoje o único treinador da História a ter ganho três Champions, pudesse olhar para o último quarto de século e escolher uma saída, acredito que chancelaria sempre a proposta de jogo deste Liverpool. Isso fala por ela. Uma equipa tão jovem quanto apaixonada, tão inglesa quanto evoluída, tão inexperiente quanto abusada de talento, tão culta e preparada, quanto positiva, entusiasmada, entusiasmante. Liderada por quem, ainda na semana passada, reiterou que nunca será o dinheiro a construir as grandes equipas, e que faz ainda mais sentido por tê-lo no banco.

Uma equipa com o luxo de ainda ir a tempo de desfrutar dum monstro sagrado do panteão de Anfield, numa das melhores formas da carreira - o quanto merecias esse campeonato, Gerrard - e de um rebelde indomável nascido nos confins do Rio da Prata, que perpassou todos os excessos para, na era ronaldo-messiânica da História, apresentar uma folha de préstimos igual às deles. Uma equipa em vermelho pulsante, que personifica um espírito, que ressuscita as aspirações de uma causa, uma equipa que está certa e que merece tudo o que de bom lhe for acontecer. Uma equipa à altura da ilusão que é o Liverpool.

O City continua a ser favorito, não sei torcer contra Mourinho e não faço ideia de como é que esta extraordinária Premier League pode acabar. Sei é que num Liverpool vivo é uma honra poder acreditar.

Walk on, walk on with a hope in your heart
And you'll never walk alone
You'll never, ever walk alone

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Foi assim que aconteceu


Se fechar os olhos, ainda consigo imaginar-me a trautear a música do genérico numa noite gelada no Porto, entre cobertores, tarde e a más horas, com Faculdade na manhã seguinte. Não comecei a vê-la em 2005 e não continuei a vê-la até 2014, mas foi, sem sombra de dúvida, a série mais profundamente marcante da minha era universitária. Marcante não por ter sido a que mais me deslumbrou, não por ter sido aquela com que mais aprendi, mas pela sua desarmante colagem ao nosso ideário. Se calhar, as séries eternas são aquelas maiores do que nós; é, contudo, pelas que estão à nossa medida que nos apaixonamos. O How I Met Your Mother foi sempre uma do nosso tamanho. Palpável, contagiante e tão profundamente carismática nas suas infinitas particularidades. Não foi refundadora de um conceito, mas é inegável a vénia a todas as vezes em que foi tão bem foi escrita, tão perspicaz, genuína e tão criativa. Com tanta intimidade, tanta identidade e tanto grupo debaixo da pele.

Porque tive de consumir as primeiras temporadas por atacado - que foram sobejamente as melhores -, lembro-me de falar delas com um carinho desarmante, de todas as suas pequenas coisas que, ao longo do tempo, víamos e reconhecíamos como se fosse connosco. Da forma como uma série universalizava hábitos que desconfiávamos serem só dos nossos e como criou, muito mais do que isso, uma assinatura tão sua, concretizada em cada Intervention, num General Knowledge com continência, no Bro Code ou num qualquer Thanksgiving, da mesa do canto no MacLaren's ao imortal T2 com escada para o terraço. Falar naqueles bocados de dia-a-dia e no que eles valeram, nas lembranças e nas invenções, nas relações e nos rompimentos, do frenesim entusiástico e pueril até ao peso da maturação. No fundo, no tempo e no senti-lo passar, na vida da série e na nossa. E falar deles, claro, iconizados para todo o sempre no nosso imaginário, com a familiaridade surreal a que só as séries que marcam gerações podem aspirar.

Parei de vê-la há três anos, assim que me licenciei, porque tenho uma regra que é nunca prolongar uma série mais do que é devido, nunca poupar-lhe o golpe de misericórdia. No fim da sexta temporada, a realidade é que o auge já tinha passado e a série ameaçava arrastar-se indefinidamente num limbo doloroso. Perder a magia a cada mês era, pois, coisa que não podia permitir a algo que me trazia tão boas recordações. Ontem, porém, foi diferente, como tinha de ser. Agora que tocou o último sino, era inevitável voltar para prestar a minha respeitosa despedida. Se me perguntassem, teria feito quase tudo diferente: do derradeiro guião à edição, da narrativa individual ao desenlace. Isso, todavia, tem uma importância muito relativa, quando colocado na perspectiva de que ali se fechou um livro com uma década.

O que conta é que, durante aqueles 45 minutos finais, pudemos voltar a lembrar tantas coisas e a sorrir uma última vez com todas elas, porque as corremos juntos. Ao vermos as caras do primeiro episódio nos créditos, pensarmos como tem sido e como será na nossa vez, numa nostalgia do que já fomos e do que ainda vamos ser, na melancolia da camaradagem, das histórias únicas e irrepetíveis, da juventude sem data e da omnipresença - you've got to be there for the big moments -, até ficarmos com o vago aperto sobre a vida que muda e que separa, e sobre o que fica depois disso.

Não sei se algum dia o How I Met será equiparável ao Friends, à luz da História. Sei que, para mim, para a minha geração, teve com certeza esse alcance. E que, para nós, há algo que, por pequeno que seja, também ficou ali, com eles. É esse o tesouro da televisão.