sábado, 16 de maio de 2020

O Bicho que nos salvou


Não me parece que seja possível algum dia esquecer aquele primeiro silêncio, quando acabou o último directo do Bruno na quarentena.

Foram tempos extraordinários, estes que vivemos, que provavelmente só conseguiremos processar daqui a muitos anos. Num dia tínhamos a nossa vida normal e, no dia seguinte, passámos a ter a nossa vida de filme, encerrados em casa, com cidades desertas, uma pandemia na rua e o mundo em suspenso. Ninguém teve tempo de se preparar, nem sequer para a ideia; só tivemos tempo de fugir e esperar que, como nos viriam a lembrar ao longo de muitas noites depois disso, numa frequência clandestina de sobrevivência, havia de correr tudo bem.

Na vida, nem sempre há heróis, mas nos filmes sim, e o Bruno, perante circunstâncias nunca vividas, foi o herói que o país precisava que ele fosse. Escrevo isto sem qualquer pejo, nem ponta de hipérbole. Ao longo de dois meses especialmente difíceis, em que tivemos de deixar de parte quase tudo o que gostávamos, e em muitos casos, as nossas próprias pessoas, o Bruno teve a bondade de estar em directo todas as noites a garantir que pelo menos a sanidade ficava.

O Bruno, temos isso hoje perfeitamente claro, é um dos melhores do mundo naquilo que faz. Não sei se mais alguém nas circunstâncias dele, com o poder que ele reuniu nas mãos, teria tido a grandeza e o altruísmo de levar o Bicho como ele levou. De levar o carinho e a vulnerabilidade e a esperança das pessoas como ele levou. É por isso que os melhores são os melhores. Outros infinitamente menos talentosos teriam sucumbido ao proveito próprio, ao negócio e à oportunidade. Mas não o Bruno. Nós que lá estivemos, sabemo-lo demasiado bem. Com o Bruno, e contra tudo o que podia ter sido, foi sempre pela gente. Pelos amigos dele e por cada um de nós que lá foi por bem, só para beber um pouco de luz na escuridão. Numa era marcada pela urgência da megalomania digital, o Bicho foi um portal para outro encanto qualquer. Foi pureza, honestidade e temperança, foi o melhor que há na amizade e na cumplicidade, foi de coração.

Por muitas coisas que viva, nunca me poderei esquecer da singularidade daquela despedida ontem. Das varandas de Lisboa, e dos quatro cantos do país e do mar, da Madeira até ao Pólo Norte, iluminados de Natal, e da quantidade de gente que fez questão de aparecer, ou de escrever ou de ter um pequeno gesto onde quer que estivesse, só para dizer "obrigado", até ele deixar de conseguir falar e de nos emocionarmos a todos. O Markl disse a dada altura que aquilo era como um final feliz de um filme em que o herói salvou o mundo. Por mais coisas que viva, sei que não voltarei a estar num coliseu que durou dois meses e que acabou com 170 mil almas em directo, um coliseu do tamanho e da distância de onde quer que tenha estado um português a acender as luzes de Natal na varanda, no dia 15 de Maio de 2020, em homenagem ao gajo que nos salvou.

O Bicho não foi só a experiência cultural, imortal e paranormal de uma geração, foi o nosso Live Aid dentro de casa, e ontem dentro de cada uma das nossas ruas, foi o fim do Seinfeld de um país pequeno à beira do mar, mas com um génio, e um coração e uma identidade e uma humanidade absolutamente comoventes. Não me parece que seja possível algum dia esquecer aquele primeiro silêncio, quando acabou o último directo do Bruno na quarentena. Mas não foi um sonho. Porque depois fui à varanda e ainda estávamos lá, a brilhar. Vai correr tudo bem.