quarta-feira, 28 de maio de 2014

A moral dos homens

 
'Se treinas com Zanetti todos os dias e não aprendes nada, não sou eu que posso ajudar'
Mourinho sobre Balotelli

Houve um tempo em que o futebol vestia fato e gravata. Onde o sucesso se media em décadas, não em temporadas, e em que havia tempo para fazer heróis. Todas as casas tinham os seus, porque não se mudava de clube como quem muda de camisola, e por isso os estádios estavam sempre cheios, porque se sabia realmente quem estávamos a apoiar. Os treinadores adversários bebiam vinho na antecâmara e os valores mais importantes em campo eram a lealdade, a excelência e o exemplo. Houve um tempo em que o futebol era um jogo de cavalheiros. Podem duvidar, mas eu tenho provas. Pelo menos tinha, até à semana passada.

O Calcio é a grande liga que eu nunca vi. A melhor do mundo, mas só nos anos que me antecederam. No meu imaginário, a Serie A foi quase sempre uma nuvem pouco recomendável de futebol ultrapassado pelo tempo, um depósito decadente de equipas esquecidas, de ídolos em fim de carreira, de estádios decrépitos e de ultras pirómanos que tornavam tudo pior. O carácter de monstro adormecido só se insinuou aqui e ali, a canalizar o veneno imortal que sempre celebrara o futebol pátrio, nas Juventus de Lippi e Capello e, evidentemente, no maior de todos: o Milan europeu de Ancelotti. Ao Inter, por seu lado, sobrava ser o parente pobre dos grandes. Aquele perdedor crónico que ninguém consegue levar muito a sério. Um sorvedouro da fortuna Moratti em negócios dúbios, um quadro daliano com requintes perversos de via sacra. Mancini foi tricampeão, sim, mas nos anos em que os rivais foram saqueados pela corrupção. Teve, por isso, o crédito dos títulos de papel. Não é difícil sugerir, portanto, que encontrar uma só referência neste caos devoluto parece risível.

No entanto, qualquer um que tenha pronunciado o seu nome neste final de época não conseguiu tirar um semblante respeitoso da cara, ou deixar de falar dele com a veneração reservada àquelas grandes personagens de quem nos contam histórias, e perante as quais só podemos reafirmar a classe ou o carácter, com aquele olhar ilusionado que guardamos para coisas que são muito maiores do que nós. Zanetti é um jogador dos livros de História que vimos em campo. Um guardião tão intrínseco de uma altivez competitiva que, hoje em dia, parece inventado. Zanetti não jogava feio, não batia, nunca traía. Não sujava os calções, não se despenteava, jamais se cansava. Não gritava, não abusava da autoridade, tão pouco desiludia. Isso e dificilmente alguém que tenha jogado ao seu lado pode gabar-se de ter rendido mais. Perguntaram-lhe, por estes dias, se nunca se zangava. Ele respondeu que muito mais do que podíamos imaginar, mas que é sobretudo aí que é preciso saber tratar as pessoas. Quem acha que o futebol não ensina nada sobre a vida, não sabe nada sobre a vida.

Il Capitano foi o argentino mais internacional de sempre e o único a superar a barreira dos mil jogos oficiais. Foi o interista com mais minutos da História, o segundo da Serie A e o quarto de todos os tempos. Mas estar lá todos podem. Zanetti não foi só um profissional especial, foi um titular até ao fim. Aos 36 anos, quando o jogo finalmente fez a justiça de celebrá-lo campeão europeu, ele aceitou-o na condição de melhor defesa-lateral do continente, só porque, para ele, nunca podia ser menos digno do que isso. No ano passado, aos 39, rasgou o tendão de Aquiles, no que parecia um muito aventado fim de carreira. Em vez de se reformar, porém, entendeu que só sairia nos seus próprios termos. No regresso, ao fim de seis meses, entrou em campo, serpenteou por entre dois adversários e deu um golo. Para ele, nunca houve nada mais importante do que liderar pelo exemplo. Nem o tempo.

O mito é tanto mais radical se pensarmos que, de todos os sítios, foi-o no Inter. Não têm preço todos quantos devotam uma carreira a uma casa, mas há lugares onde é mais fácil. Durante 20 anos, contudo, Zanetti aparentou a idade e o alcance exibicional do primeiro dia, pela mesma devoção de quem acorda todos os dias apaixonado. Acho que foi esse o segredo daquele sorriso indistinto e da eterna juventude: um amor como nos filmes, mas a um escudo nerazurri. Mesmo nas piores noites, o Inter tinha Zanetti, e se tens Zanetti, vale a pena continuar, porque nem tudo está perdido. Não há nenhum rival que, do alto do que tinha, não tenha invejado o meio homem, meio lenda, a alma intemporal não de um clube, mas de uma era inteira.

Depois de Puyol e de Giggs, este é um ano triste para o ideário futebol. Camus escreveu uma vez que tudo o que aprendeu sobre a moral dos homens, aprendeu-o nos campos, jogando futebol. A minha geração teve o privilégio de aprender com eles.

ZON Sagres 13/14: os melhores


1 - Enzo
2 - William Carvalho
3 - Gaitán

Oblak; Danilo, Luisão, Garay, Jefferson; William Carvalho, Enzo Pérez, Evandro; Gaitán, Lima, Derley.

Ricardo, Rojo, Paulo Oliveira, Adrien, Markovic, Candeias, Slimani.

Treinador: Jorge Jesus.


Equipa-revelação: Vágner (Estoril); Aderlan Santos (Braga), Bauer (Marítimo), Miguel Rodrigues (Nacional), Djavan (Académica); Danilo Pereira (Marítimo), Pedro Tiba (Setúbal), Rafa (Braga); Mané (Sporting), Bebé (Paços), Rafael Martins (Setúbal).

terça-feira, 27 de maio de 2014

Questão de fé


'Ya me puedo morir tranquilo'
Ramos

Sérgio Ramos é um dos defesas mais sobrevalorizados de toda uma geração. Espectacularmente mediático, há meia década que não deve falhar 'equipas ideais' de coisa nenhuma. Vice-capitão e guardião espiritual do monstruoso Real, reclamou, desde a primeira hora, a vaga na profética era da selecção espanhola, sustentado no colosso físico e técnico que é. Todos quantos se perderam a ver futebol europeu aos anos a fio saberão, todavia, o que falta a Ramos. Escrevi, há um par de épocas, que "tivesse corpo ou pés ligeiramente piores e era um jogador de 3ª divisão." De facto, muito poucos poderão reclamar uma carreira comparável à do sevilhano com uma cognição tão má do que é o jogo. Ramos é dos defesas de elite mais irresponsáveis e menos fiáveis que já vi jogar, e esse julgamento mantém-se, mesmo após a sua melhor época de sempre: Ramos jamais pensa a jogar.

Ironicamente, lembrei-me disso depois daquele golo ao minuto 93 e, desta vez, tive de sorrir. Mesmo de uma forma estranha, acho que foi aí que lhe fiz finalmente jus. Quando falo do físico e do talento como sustentáculos da sua carreira, falto-lhe no essencial: o coração. Com todos os seus inúmeros e incorrigíveis defeitos, Sérgio Ramos tem o carisma dos únicos. Daquele punhado de caudillos capazes de ressuscitarem mortos, de contagiarem legiões inteiras com um único olhar. Ramos não pensa a jogar. Na Luz, porém, com um sonho do tamanho de uma nação a ruir à sua volta, nenhum outro podia ter marcado aquele golo. Não o melhor do mundo, não o mais caro, não o melhor em campo. Só um que reagisse antes de pensar. Um que lembrasse, no limite, que o futebol, como a vida, é mais emoção do que o resto. E que, se sentirmos o suficiente, provavelmente estamos certos. Com todos os seus perniciosos defeitos, não havia um único madridista em Lisboa que acreditasse mais naquele empate do que Sérgio Ramos.

O Madrid mereceu ganhar. Sobretudo porque, ao contrário dos últimos anos, a conquista não foi uma neurose. O Real ganhou porque percebeu que o fim não tinha de justificar os meios, que nada daquilo tinha de ser uma provação esquizofrénica, com facas nos dentes e vale-tudo. Ganhou com a temperança de um sábio e com a bola dos melhores. Modric e Di María, a médios-interiores, são duas das figuras do ano. Que bendito jorro de futebol nos deram, justamente celebrado para a posteridade na relva do último dia. Angelito, em casa, pareceu possuído pelo demónio. Inventado por Ancelotti, joga mais distante do que nunca da baliza, mas parece cada vez mais perto. Hoje alia solidariedade e disciplina à condição de último dos fantasistas, sacramentada em cada slalom de moldura com que deixava meio Atlético para trás. Modric, posto de uma forma simples, parece bom demais para ser verdade. Pensar que Mourinho o condenou a um ano de banco é tão doloroso como uma lobotomia a sangue frio. O croata é um Dumbledore em campo. Necessariamente mais sábio do que os outros, provavelmente mais capaz, encarrega-se de sacrificar qualquer notoriedade ao desígnio de guiá-los a todos ao seu destino, qual grande arquitecto do Universo. A maior de todas as vitórias de Ancelotti foi o back to basics. Foi confiar que, com os melhores e a querer jogar bem, está-se sempre mais perto. O futebol não tem de ser um drama, não tem de ser um sacrifício. O futebol é mais simples do que parece.

O Madrid mereceu ganhar, mas não há nada que este Atlético merecesse perder. Não pude honestamente torcer pela última vitória, porque era hora de uma lenda continuar a forjar a sua História, mas ter vibrado de coração no Camp Nou, há uma semana, será para sempre um privilégio. Como já escrevi, o Atlético foi a equipa que gostávamos de ser. Um grupo de homens tão infinitamente maior do que as suas circunstâncias, que perverteu o dinheiro, as expectativas e as probabilidades, para lembrar orgulhosamente que o futebol é só outra forma de democracia. Que se acreditarmos o suficiente, formos corajosos e trabalharmos juntos, então não há nada que nos possa roubar o sonho. Mesmo se, no fim, faltarem 140 segundos. Se a final fosse um filme, o meu acabava sempre um instante antes daquele pontapé de canto. Fim aberto, acreditem no que quiserem.

Champions 13/14: os melhores


1 - Ronaldo
2 - Courtois
3 - Modric

Courtois; Carvajal, Ramos, Godín, Alaba; Bale, Modric, Gabi, Di María; Ronaldo, Ibra.

Cech, Lahm, Miranda, Pepe, Koke, Arda, Diego Costa.

Treinador: Simeone.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Sorrir à morte


'Death smiles at us all. All a man can do is smile back'

O Benfica nunca pensou que perderia esta final. No ano passado sim. Porque era o Chelsea, porque tinha sido o golo do Kelvin. No ano passado sim, e é por isso que a encarou para fazer um dos maiores jogos da época. O Benfica que perdeu em Amesterdão teria resolvido a final de Turim com uma naturalidade quase desconcertante. Por ironia do destino, contudo, é quando parece mais fácil que a vertigem come por dentro. Podia ter sido sobranceria, excesso de confiança ou desleixo. Não foi: no momento em que entrou na relva, o Benfica que ia ganhar percebeu que tinha tudo a perder. O Benfica que, desta vez, já entrou campeão, soube, então, da fragilidade pesada que é ser favorito.

Claro que faltou Enzo. Que faltaram Markovic, Salvio, Fejsa, Sílvio, Sulejmani. Muita gente grande logo quando era preciso cruzar a fronteira mais dura. No entanto, como bem reconheceu Emery na antevisão, o maior mérito deste Benfica era nunca ter parecido unipessoal. Era ser a máquina cuidadosamente trabalhada para não ter insubstituíveis, que este ano já ganhara de todas as maneiras e com todas as caras. Claro que os ausentes contam, e claro que jamais se pode dizer que o mal de uma equipa é falta de transcendência, mas este Benfica continuava a ser melhor do que o adversário. Como o foi. Para a História, o amoralismo cru dirá que só contam as derrotas. Que o Benfica perdeu para o Chelsea por não ser favorito e para o Sevilha justamente porque o era. Eu digo que o Benfica foi humano. Perdeu uma apesar da coragem perante as dificuldades, outra por causa da agonia pelas expectativas. Perdeu pela mesma razão que as podia ter ganho. Humano.

É extrapolável dizer que ao intervalo já se pode saber alguma coisa mas, no Delle Alpi, já se sabia. Não me lembro honestamente de nenhum outro jogo do Benfica de Jesus em que a bola tenha queimado tanto nos pés. Em que se tenham perdido tantos lances, tomado tão más decisões, criado tão pouco. O Benfica, percebeu-se cedo, tinha o mundo aos pés e não tinha pés para agarrar o mundo. Ninguém quer ter medo de falhar, mas o problema é que ele nunca pergunta antes de vir. Se só acontece ao Benfica? Os pesadelos acontecem a todos, acontecem sobretudo aos que lá estão a sonhar. Cedo a equipa viu-se febril e cedo percebeu que o mar de rosas estava defunto. Cada bocado de responsabilidade alegada passou, pois, a ser um obstáculo, o medo passou a ser um contra-relógio.

Porque, de facto, foi a melhor equipa da prova, mesmo um Benfica ferido de capacidade individual e obliterado de discernimento colectivo podia, sob qualquer prisma, ter ganho o jogo. Na impossibilidade de lidar com o seu colete de forças mental, sem conseguir capitalizar todas as virtudes que o celebraram este ano, a equipa foi atrás do perigo num reflexo e regressou aos excessos de outros tempos. Tentou sobreviver no limite, no mata-mata, na parada e resposta. E, nunca relevando o Sevilha, que não foi nenhum espectador, teria ganho com sentido. Há que fazer-lhe essa honra. O futebol, porém, nunca foi justo. Achei que podia dar até aos 90', mas não se pode ignorar que nenhum lugar é pior para nascer torto do que uma final. Isso ou que os penalties dificilmente perdoam quem está "a perder".

O futebol não é azar, mas oito finais perdidas não são só futebol. O Benfica podia ter feito mais, o Benfica merecia ter ganho mesmo assim. Porém, quando sobra pouco de racional, outra vez, sobra ainda menos a cobrar, a desesperar. Em Amesterdão foi desumano, mas ninguém se pode corromper duas vezes com a mesma tragédia. Uma noite mais, o Benfica fez o seu dever, uma noite mais, nenhum benfiquista teria trocado lá estar. No fim, isso é que conta. O resto, talvez tenha sido a vida, talvez tenha sido a maldição, talvez haja nova final em 2015 para descobrir.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Short Term 12. Do bom coração


É um filme inspiracionalmente indie, curto, com alma e com um alcance social muito demarcado. Short Term 12 é um abrigo para jovens retirados aos pais pelos serviços de segurança social, em casos que orbitam essencialmente à volta de maus tratos infantis. Não é um filme surpreendente ou profundamente agressivo, mas tem uma densidade apreciável nos três ou quatro ganchos emocionais que, na ausência de um zénite na história, acabam por emprestar-lhe a identidade necessária. Quem assina a obra transversalmente é Destin Daniel Cretton - realizador, argumentista e produtor - que, aos 34 anos, aventurou-se, assim, na primeira longa-metragem da carreira, baseada na sua própria experiência a trabalhar com jovens necessitados. O maior trunfo do filme será mesmo essa genuinidade, a elegância com que agarra as vulnerabilidades tratadas, o ângulo empático que lhe imprime e a intimidade latente com um cast tremendamente jovem. Trabalho promissor do havaiano.

A narrativa complementar é a da relação amorosa dos encarregados pelo abrigo, um casal - Brie Larson e John Gallagher Jr. - oriundo igualmente de famílias problemáticas, com um percurso nas redes sociais de apoio e que acabam por abraçar esse mesmo trabalho chegados à idade adulta. O foco jaz em Brie Larson, enquanto admirável educadora que, paralela e ironicamente, é varrida a nível emocional quando se força a lidar com os seus próprios dramas. Não é um desempenho impressionante, mas é bastante fidedigno e sempre coeso, e há qualquer coisa de particularmente crível nos seus modos, no seu alheamento e na sua obstinação. Gallagher Jr., cara conhecida de Newsroom, também assenta bem, num papel de que se gosta naturalmente, pela maturidade, boa disposição e dom de acolhimento, ainda que, também por isso, acabe por ser relativamente plano. É obrigatório ressalvar, finalmente, o excepcional trabalho da direcção de cast ao recrutar um grupo de adolescentes brilhante, que valoriza de uma forma incontornável o filme de ponta a ponta.

Short Term 12 é equilibrado, realista e tocante. Impõe-nos respeito, mas com um optimismo incorrigível, preocupando-se sempre em fazer-nos acreditar em finais felizes. Merece estima por isso.

7/10

O grande poder e a grande responsabilidade


Não acredito em vitórias providenciais. Um mar de rosas é só um estado distópico qualquer próprio de idiotas e demagogos. Nem a política nem a vida podem ser mares de rosas, e que não o pareçam é só um sintoma de saúde. Na semana em que a câmara do Funchal parece ruir sobre os seus próprios alicerces é uma boa altura para lembrar que, como eternizou Emiliano Zapata numa noite quente do México, mais vale morrer de pé, do que viver de joelhos. Infelizmente para todos os arautos da desgraça a Revolução de 29 de Setembro não se perdeu. Não se perdia, sequer, caso amanhã fracassasse um executivo inteiro, porque as ideias são à prova de bala. É que, nesse dia, não votámos um programa eleitoral. Não votámos em caras, nem em medidas, nem nas particularidades da gestão da coisa pública. Não votámos nos medicamentos para os idosos, no IMI, nem votámos nos jardins municipais. O que votámos nesse dia foi romper com 40 anos de carneirice e hostilização política, em pôr um fim na oligarquia e no regime de partido único, em implodir a ditadura de cristal simplesmente porque isso é Democracia, e porque era a coisa certa a fazer, fossem quais fossem os custos. O que votámos nesse dia foi o orgulho na nossa cidadania política. Se voltavam todos a fazê-lo? Não sei. Sei que o meu, pelo menos, não tem preço.

Esta semana, o Funchal tem assistido a um vendaval mediático que, em última instância, já sugeriu eleições antecipadas, por cisões no seio da maioria. Passaram sete meses. A oposição recusou pelouros e o PSD empenhou-se na guerrilha séria que o traduz como guardião irredutível dos interesses das pessoas, mas as fundações, essas, fraquejaram do lado de dentro. Se me perguntassem se, ao fim deste tempo, estava à espera de divergências alegadamente insanáveis entre o Presidente e os seus vereadores? Não estava, de facto. Mas quem disso quiser tirar conclusões pomposamente homéricas, só o poderá fazer por manifesta desonestidade intelectual. Durante a campanha, chamaram de tudo à Mudança. Particularmente de "saco de gatos", sem disciplina, experiência nem estrutura, uma aberração que jamais funcionaria numa tão expressiva gestão camarária. Neste momento, há muita gente que se regozija pelo tão certa que acha que estava.

Trocado por miúdos, contudo, "saco de gatos" era a definição para um conjunto de pessoas de matriz não partidária, com provas ostensivas de competência nas suas mais diversas áreas, que acharam que a política e a causa pública são o lugar dos mais capazes, não uma empodrecida chantagem clubística, não o mercado negro de influências do polvo sufocante que sempre conhecemos, e que sempre nos sintetizou a liberdade em favores, que sempre nos deu a dádiva de ocupar-se do assunto opulenta e gordurosamente, só por gostar tanto de nós, e que jamais nos preocupássemos com isso. Portanto, quem via um 'saco de gatos', quem achava ou acha que o 'saco de gatos' é um problema, desde um 25 de Abril que está no lugar errado.

Se eu estava à espera que as fissuras viessem de dentro? Não estava. Se é imperdoável haver problemas? Só para quem acha que o poder do Rei-Sol vem mesmo de Deus. Mais tarde ou mais cedo, as dores de crescimento eram inevitáveis. Ganhar é a parte boa, mas foi para governar que os escolhemos. Foi isto que assinámos. As pressões, a rudeza da gestão diária, os lobbys, a falta de experiência. Alguém achava que podia ser fácil? Ter vergonha na cara também não é. Quando escolhemos o caminho certo sobre o caminho fácil, fizemo-lo por saber que era a hora, e por saber o que isso valia a pena. Essa vitória fomos nós que a ganhámos e também é a nós que a compete segurar. As pessoas não mudaram, o princípio não mudou. Hoje, como sempre, andar a falar para o lado, a ser ligeiro, a bufar banalidades ou a comer redundâncias é o prato dos tolos. E os tolos são o prato das hienas. Sejamos todos melhores do que isso, como naquela noite imortal de fim de Verão.

Como é óbvio, todavia, não é só a nós que compete estar à altura do voto. Mais do que nunca, é ao presidente Paulo Cafôfo, e aos vereadores Filipa Jardim Fernandes, Edgar Silva, Gil Canha e Idalina Perestrelo. Nunca vi a culpa arranjar soluções, pelo que não contem comigo para nenhuma caça às bruxas, tenham sido a precipitação ou a falsa grandeza, a má leitura ou o abuso a estarem na origem dos males. O que me parece é que, por momentos, se esqueceram todos do essencial: que se lá entraram como unos, hoje representam-nos a todos e, mais do que isso, representam uma esperança que não têm o direito de pôr em causa. Tão grande em consciência, quanto frágil como uma centelha. Que ela não se volte a trocar por décadas de breu, é maior do que vós e é infinitamente maior do que os vossos egos. A vossa falência seria um estrago irreparável e faria-nos perder dez vezes mais do que aquilo que ganhámos há tão pouco tempo. Não nos provem errados porque, mesmo se mais e mais a puserem em causa, a Mudança vive. Tudo o que precisamos é que, agora, sejam vocês a estar à nossa altura. Ganhámos todos, não nos façam perder sozinhos.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Porque é que o City mereceu ganhar


Ninguém gosta deles. Isso é tão factual como ninguém poder dizer, em consciência, que na Velha Albion existe um mau campeão. O Liverpool foi o vencedor do povo, sabemos todos. A esquadra vermelho-coração que nos fez sonhar, tão estupidamente romântica que poder não torcer por ela pareceu sempre uma barbaridade qualquer. Gerrard é o ídolo com quem tivemos a honra de escorregar juntos, o herói que nunca nos perdoaremos não ter visto celebrar ontem o seu maldito campeonato na relva santificada de Anfield. Nada disto pode, todavia, pôr em causa o que o City fez por merecer. O Golias de azul-celeste está condenado a ser muitas coisas más. No fim do dia, porém, nunca é o dinheiro que ganha os campeonatos. O City foi primeiro pelo talento, sim, pelas principescas condições, claro, mas, sempre mais do que isso, pela competência do trabalho. Pela compostura, pela experiência, pelo sangue frio e pela excelência patente em 89 pontos e 102 golos numa liga que não é dura, é olímpica. No fim, pela própria estatura emocional de um punhado de grandes senhores que merecem todo o nosso respeito, e que são provas vivas de que até as máquinas se movem a cascos de alma.


O grande vencedor é evidentemente Manuel Pellegrini. O melhor treinador que o sheikh Al Mansour recrutou na sua dinastia podia perfeitamente não ter sido suficiente, ou a liderança dos maiores não dissesse respeito a muito mais do que capacidade técnica. O City sempre pareceu, aliás, o lugar à medida de uma popstar como Eriksson ou de um egomaníaco como Mancini. O clube sofisticado para lá do jogo, onde, como à mulher de César, raramente basta ser, é preciso parecer. Pellegrini era tanto um humilde fazedor de indisputáveis milagres com os mais pequenos, como o homem que falhara espectacularmente em Madrid, nessa pele que tinha tão pouco a ver com ele. Quando chegou a hora, contudo, o City arriscou no método sobre o perfil. O título, esse, é definitivamente indissociável das características humanas do chileno, quase como se lhe brotasse das pontas dos dedos.

O clube gastou três dígitos de milhões em reforços e, na folha salarial mais onerosa da liga, nunca houve ruído. A gestão do onze foi tão boa como a gestão do balneário e, se olharmos para Pellegrini, é fácil perceber porquê, na autoridade elegante, na segurança de si, na eficiência. São essas as principais qualidades do campeão. Ninguém simpatiza com o City, ninguém tem tão monstruosas sensibilidades para gerir, ninguém esteve, sequer, tanto tempo atrás do prejuízo. O Arsenal, por exemplo, passou 128 dias na frente da liga. O Chelsea 64 e o Liverpool 59. Os baby blues limitaram-se a lá estar uma exígua semana e meia. Perderam em casa e fora para Mourinho, e em Anfield, no "tudo ou nada". Na Europa, saíram pelos fundos, como sempre. Mesmo assim, 'El Ingeniero' nunca fraquejou. Qual epicurista, averso aos tormentos do mundo, surfou imperturbável na espuma das borrascas alheias até entregar o bombardeiro ao porto seguro. A compostura de Manuel Pellegrini ganhou o campeonato.


Porque é sempre de soldados que se fazem as grandes conquistas, é incontornável destacar três. Vincent Kompany levantou a segunda liga em três anos e poucos saberão como ele o tanto que elas custaram. O capitão não é só o melhor central da liga e um dos dois melhores do mundo. É um líder cujo carácter mede o do próprio talento, uma referência cujo impacto nos colegas e no jogo é estupidificante, e ao lado da qual tenho a certeza que é um privilégio jogar todas as semanas. É possível que a melhor ideia que o City teve neste imenso empreendimento em que se lançou há uma década tenha 1.93m e fale flamengo.


No coração do ataque onde se voltaram a derramar 50 milhões de euros em reforços, onde há anos e anos se andam a contratar os mais fortes do planeta, quem continua a resolver é o santo da casa. A fiabilidade de Edin Dzeko está no domínio das coisas que já não se fazem, num lote cuja forma, certamente, já se perdeu. Grosseiramente leal, jamais levantou um dedo às horas de sacrifício no banco, em benefício da constelação que vende camisolas, e são incontáveis as vezes em que, nessa insultuosa escassez de minutos, já os veio salvar a todos. Dzeko é um profissional por devoção, é o jogador que qualquer treinador devia matar para ter ao seu lado. Os bis frente ao Everton e ao Villa, que ganharam o campeonato, eternizá-lo-ão, se não agora, no lugar onde um craque merece.


Finalmente, um senhor para quem Homero podia bem ter escrito uma Ilíada. Tê-lo visto em campo este ano foi um privilégio de tal monta, uma experiência tão genuinamente impressionante, que muito pouco sobrou para escrever. Yaya é a força da natureza, o gladiador com a pujança de mil homens, o colosso capaz de ressuscitar e arrastar uma equipa às costas, o que não é necessariamente uma metáfora. Que época, por deus. Dizer que foi o melhor médio do mundo no ano da graça de 2014 é só um eufemismo.

O City foi um bom campeão e um grandíssimo adversário, e é por isso que isto vale tanto a pena. Agora acabou, o que dói de cada vez, o que merece toda a gravidade sempre. Valha-nos o Mundial para luto até ao retorno da única verdadeira igreja futebolística.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Blackfish. Porque o cinema também é activismo


"I think that, in 50 years, we'll look back and go: oh my god, what a barbaric time"

Foi veiculado como um dos documentários mais impactantes do ano, mas acabou por falhar os Óscares, coleccionando apenas a nomeação aos BAFTA. A verdade é que Blackfish é, efectivamente, um trabalho poderoso, completo e tocante, com o dom de educar e conquistar-nos ao mesmo tempo. O documentário versa sobre a delicadíssima questão do cativeiro das baleias assassinas, para fins de espectáculo, partindo de um incidente em 2010 num SeaWorld, a maior cadeia de parques aquáticos do mundo, no qual uma orca mata uma das treinadoras mais experientes da casa. Este veio a despoletar uma exaustiva batalha jurídica nos tribunais americanos, ainda em curso, com o fim de atacar e transformar a legislação vigente. O trabalho guia-nos numa perspectiva histórica, remontando à década de 70, e às origens dos processos de caça dos grandiosos mamíferos, percorrendo depois, à lupa, o mascarado histórico de tragédias no ramo, numa perspectiva a todos os níveis perturbadora.

Com uma investigação de fundo, frutífera em filmagens em bruto, artigos de jornal e actas judiciais, sustentada por múltiplos depoimentos, quer de testemunhas anónimas, quer de antigos treinadores reconvertidos a activistas, Blackfish expõe-nos as entranhas dantescas de um monstro-negócio de milhões e milhões de dólares, feito no branqueamento consciente de uma insuportável exploração animal e do perigo brutal que é fundir, na mesma piscina, seres humanos e esses gigantescos predadores fora de habitat, agrilhoados num cenário castrador e psicologicamente traumatizados, postos em situações-limite que, de facto, só os podem tornar em bombas-relógio. A transformação de mentalidades dos antigos tratadores, à medida que foram expostos às cruezas quotidianas e à compleição do negócio, carrega-nos consigo, e as suas descrições dos efeitos colaterais em animais tão vastamente inteligentes acaba por realmente dar-nos um nó na garganta.

Dirigido e co-escrito por Gabriela Cowperthwaite, Blackfish é, no fim de contas, um objecto de sensibilização para todas as pessoas que já entraram ou que gostavam de entrar num parque aquático, e a consciencialização de que o cativeiro não tem meios termos poéticos e é necessariamente sinónimo de barbárie.

7.5/10

quinta-feira, 8 de maio de 2014

23 convocados. Os melhores, os fiéis e os necessários


Rascunhar a convocatória do seleccionador em Verão de grande torneio será sempre um dos mais unânimes passatempos nacionais. A realidade diz, porém, que chegada a hora esse é, quase sempre, um exercício redundante, que muito raramente se presta a corroborar surpresas de monta. De facto, um Mundial não é notícia de ontem. É o resultado prático de dois anos de qualificação, com todas as experiências, nuances e calejamento de um grupo mais ou menos definido de jogadores que, na maior parte dos casos, até é geracional e sobrepõe esse ciclo bienal de apuramento. A última chamada é sempre crua. Não é hora de inventar a roda, mas de encontrar a fusão entre os melhores e os que foram treinados exactamente para esse efeito. A Selecção, como toda a gente sabe, tem uma equipa titular definida desde o pós-África do Sul e não há nenhuma razão para crer que ela possa ou vá mudar. Para além disso, ficaria mesmo bastante surpreendido se a convocatória do próximo dia 17 não fosse a seguinte (titulares a negrito, não que fosse necessário):

GR: Patrício, Beto, Anthony Lopes.
DEF: J. Pereira, Pepe, Bruno Alves, Coentrão, André Almeida, Ric. Costa, Neto.
MED: Veloso, Meireles, Moutinho, William Carvalho, Amorim, Ruben Micael.
ATA: Ronaldo, Nani, Postiga, Quaresma, Varela, Hugo Almeida, Éder.

Desmistificada a questão, diria que qualquer projecção da convocatória, para ter significado, terá de ser um esboço, por assim dizer, dos 12 suplentes. Haverá deles com lugar cativo, sim, mais ou menos justificado, mas é na especulação sobre o banco que há margem para pensar a Selecção e ser inteligente sobre o alcance das opções. Ao contrário do senso comum, não acho que a equipa tenha de ser, no sentido lato, o lugar onde moram os 23 melhores jogadores da Nação. Esta deve ser, na verdade, o grupo que dê maiores garantias de sucesso, e esse sucesso não é directamente proporcional nem ao talento, nem à forma, mas, na minha opinião, à complementaridade e ao plano emocional. Grosso modo, os meus critérios para acabar a lista seriam, por esta ordem, a capacidade para oferecer soluções diferentes, a experiência, o talento e o valor para o balneário.

BALIZA


Patrício e Beto são positivamente inquestionáveis. Parecia certo que Eduardo nunca perderia um lugar, mas o pasmo de época no Braga foi suficiente para varrer uma das sensações do Mundial-2010. A baliza, curiosamente, desafia as premissas anteriores, uma vez que o terceiro guardião é uma figura honorária que, garantidamente, não terá qualquer minuto. Neste sentido, compreendo se Paulo Bento optar por Anthony Lopes, titular do Lyon aos 23 anos, numa lógica de incorparação do futuro. A minha escolha seria, contudo, Ricardo (Académica). O guardião da Briosa anda há épocas a ser um dos melhores da Liga e, no dealbar de mais uma grande temporada, aos 31 anos, representaria uma oportunidade honesta para o seleccionador mostrar que não olha só para os grandes e para o estrangeiro.

DEFESA


Garantido será que só existem 7 bilhetes para a defesa, distribuindo-se os lugares vagantes por dois centrais e um lateral. Aqui, acredito que Paulo Bento escolherá bem. Cédric fez uma época boa, e tem o lobby da formação do Sporting, Miguel Lopes tem experiência e Antunes uma canhota. Para o lateral suplente, todavia, o critério só pode ser a polivalência. O lugar seria, portanto, de Sílvio, não tivesse ocorrido a fatalidade da lesão. Assim, André Almeida (Benfica), com dois anos a dar boa conta de si pela provas europeias, e onde foi preciso, é a opção correcta. No coração da defesa, só tenho pena que Fonte (Southampton) não tenha tido oportunidades no último ano. Se não preconceito, foi desconsideração enviesada do seleccionador sobre o bastião de uma das grandes defesas do melhor campeonato do mundo. Nesta fase, contudo, chamá-lo seria ilógico. Paulo Oliveira (Guimarães) é o futuro da posição, mas as vagas devem ser de Neto (Zenit) e Ricardo Costa (Valência). O primeiro por, qualitativamente, ser, de facto, o terceiro melhor da esquadra, o segundo pelo incontornável capital no balneário.

MEIO-CAMPO


Neste momento, deixar William Carvalho (Sporting) em terra seria uma barbaridade tão bíblica, que nem a sério se pode levar. O melhor jogador português da liga não só foi a bestial revelação do ano como, por todas as características e mais algumas, seria sempre, no meu entender, o titular da casa #6. Provavelmente não será, mas é certo que estará na lista (pelo menos, depois do episódio-Fernando...). Sobre os médios-centro, acho que há duas concepções essenciais: desde logo, e mais importante, salvaguardar o perfil da equipa, com um interior puro, sábio, que equilibre sempre. Só vejo dois jogadores com essas características: Rúben Amorim e Adrien. O subcapitão do Sporting fez, de facto, uma grande época, e de certa forma merece a pressão que se tem exercido para que conste da lista final; todavia, partilho da provável decisão do seleccionador. Rúben Amorim (Benfica) é melhor jogador, fez óptima época, é bem mais rodado e está no grupo há mais tempo. Sem discussão.


Pelo contrário, o último elemento do miolo deve romper o padrão. Deve ser diferente dos que lá estão e deve oferecer soluções que os outros não podem. Será das vagas mais metamórficas: até ver, Rúben Micael é o dono do posto; André Martins foi cultivado durante o último ano e André Gomes e Josué já foram ambos observados de perto. Sendo muito objectivo, diria que carregar Rúben Micael seria ridículo. É o #10 mais evidente dos seleccionáveis, mas padece de um pequeno problema: não ter absolutamente qualidade para lá estar. A época no Braga faz o cheque-mate. Sobra, assim, um porta-bandeira juvenil de cada um dos grandes, todos bastante particulares. O melhor jogador? André Martins. O que, na minha opinião, pode causar mais impacto a sair do banco? André Gomes (Benfica). Tem o físico, a passada e a personalidade.

ATAQUE


Sobre o debate mais icónico, também reconheço o tão difícil que é Quaresma (Porto). Também discuto a sua operacionalização numa equipa que não está sequer próxima de jogar para ele e, mais do que isso, a sua utilidade, produtiva e emocional, na pele de suplente. Tudo pesado... e convocava-o sempre. Há talentos que só um louco recusaria e o que Quaresma pode fazer numa fracção de segundo, num único lance, é mais relevante do que outros em torneios inteiros. Diz a regra que os três últimos lugares deveriam corresponder a um extremo e a dois pontas-de-lança... o tipo de coisa que valerá a pena desconstruir. Primeiro, porque Portugal tem mais e melhores soluções no transporte do que na área; depois, porque joga com um único avançado; finalmente porque, em boa verdade, se o desespero chegar, é Ronaldo quem vai ao meio, não um Edinho ou um Nélson Oliveira. A minha opção era, então, sacrificar dois soldados de Bento.


Varela é um tipo leal, brutalmente comprometido e tem a seu favor o facto de, por mais do que uma vez, já ter inventado um milagre. É um amuleto e dificilmente não será convocado. Acredito, no entanto, mais na qualidade do que na fé e, por mais esforçado que seja, Varela é só um jogador comum. Incomparável, por exemplo, ao alcance da capacidade de Danny (Zenit). O madeirense nunca foi feliz nas quinas, é verdade, mas só por desonestidade se poderia pôr em causa o seu incrível rendimento na Rússia ao longo de tantos anos. É versátil em relação aos outros extremos, joga por dentro e pode, inclusive, apresentar-se como um #10. Esquecê-lo era o tipo de luxo para quem não tem a nossa parcimónia de recursos.


Na eterna sombra de Postiga, Hugo Almeida terá assinado uma das melhores épocas da carreira. Está no grupo vai para uma década e sugere uma solução alternativa que tem de estar prevista. Não consigo, contudo, deixar de optar uma vez mais pelo talento. Éder (Braga) teve um ano difícil, mas não engana. Ao físico e ao jogo-alvo, acrescenta agilidade, leitura e instinto. E, sejamos crus, é infinitamente mais jogador do que Almeida. Para o bem e para o mal, também chegaria fresco ao Brasil.


Para o fim, o joker. Acho que cabe um em qualquer convocatória e, no nosso caso, não há rigorosamente nada a perder. O meu jogador número 23 seria Bebé (Paços). No Natal, pouco parecia sobrar ao mais meteórico negócio da História do futebol português. A eurodisseia do Paços fora um fracasso e a travessia no deserto insinuava prolongar-se muito para lá da segunda metade da época. O que aconteceu ao ainda jogador do United desde aí foi monumental. Com a produção e os golões a falarem por si, as suas características únicas tornam-no, neste momento, terrivelmente valioso. Compará-lo aos candidatos a terceiro ponta-de-lança é tão primário que dispensa mais explicações.

Como referi à partida, não espero quaisquer surpresas no dia 17. Fica apenas o registo para memória futura.

GR: Patrício, Beto, Ricardo.
DEF: J. Pereira, Pepe, Bruno Alves, Coentrão, André Almeida, Ric. Costa, Neto.
MED: Veloso, Meireles, Moutinho, William Carvalho, Amorim, André Gomes.
ATA: Ronaldo, Nani, Postiga, Quaresma, Danny, Bebé, Éder.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Lone Survivor. Mais uma incursão no herói americano


Lone Survivor é um filme superior ao nível de um elemento em especial: a realização. De facto, pouco mais se poderia pedir ao trabalho de Peter Berg, ele que anteriormente já explorara o registo em The Kingdom (2007). A história verídica de uma missão falhada dos SEAL nas montanhas do Afeganistão é arrebatada com um realismo digno de registo, espectacular mas de uma forma crua, abusivo da tensão em cenários apertados e muito cirúrgico. Não é um filme "em grande", isto é, não vive de efeitos especiais, nem de grandes milícias, nem de cargas épicas, sendo, ao invés, um retrato ocular, pessoal e, por isso, crível, a respeito do carácter da jornada de quatro homens deixados à própria sorte, com a ira do mundo no seu encalço. Não investindo em exageros, é um filme passível, todavia, de impressionar e, quanto a isso, destaco as excepcionais sequências dos personagens a despenharem-se, em carne e osso, por desfiladeiros inteiros. São daquelas que marcam.

Diria, contudo, que os méritos do filme se esgotam nesse competente jogo da câmara. Não que seja pouco - e são tantos os filmes de acção, até com premissas melhores, que não têm essa qualidade de leitura, por défice ou excesso -, mas também não é suficiente para o colocar no patamar em que o chegaram a aventar na época dos prémios. Saber que a história é verídica nunca deixa ninguém indiferente e é inevitável que isso injecte, por si só, mais crédito ao produto final. Há, porém, que saber distinguir o que é a qualidade da história pela sua raiz, do que é a qualidade do texto, ou seja, da capacidade do argumento em modelá-la para ser cinema. Neste caso, se Peter Berg merece muitos pontos pela direcção, perde outros tantos no guião. Lone Survivor é um filme perfeitamente vazio, sem qualquer densidade dramática. Tem má caracterização, maus diálogos, não tem carisma e não tem nada que, no fim de contas, dê coesão emocional aos préstimos visuais da história. É tudo demasiado ligeiro e, pior do que isso, reduz-se ao lirismo do ideal heróico americano, o que o torna oco, menos sofrido e, consequentemente, menos sério.

O cast também não colaborou. Simpatizo bastante com Mark Wahlberg, com a sua personalidade, história de vida e com os seus projectos de produção, mas não posso fazer nada em relação às suas limitações interpretativas. Quando lhe pedem para fazer drama, então, é penoso. Num registo mais flexível, como em 2 Guns, também no ano passado, as coisas até lhe saem bem; de contrário, Wahlberg é só uma rocha que não passa nada, tanto pior se torturado pelo peso de ser protagonista. No mais, sem nenhum grande actor a bordo, e antecipando-se os tempos de antena para a martirização, o filme já estava, de certo modo, ceifado à partida. Só merece algum reconhecimento Ben Foster, que era o mais capaz do lote e foi mesmo o melhor.

Lone Survivor é generosamente tenso, com uma temática fácil e bastante bem filmado. No resto, é só raso.

6.5/10

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Nebraska. A vida não é preta e branca


Nebraska é um filme adorável a todos os níveis. Adorável de uma forma envergonhada, daquela que nos seduz e nos desarma, dando cor à existência por libertá-la de pragmatismos crus. Não é lírico, mas passa a sua mensagem de uma forma extraordinária, pelas metafóras, pela assimilação e pela vida que nunca é preta ou branca, mas muito menos óbvia do que isso, aqui de alguma forma replicada na própria alegoria semiótica a cinza. Nebraska conta a história de um velho pai nas muralhas escusas da demência e do último grande empreendimento da sua vida: cruzar meia América para ir reclamar um alegado prémio de um milhão de dólares. O prémio, como é bom de ver, nunca foi mais do que propaganda boçal, mas às unhas de quem percebe a vida a fugir-lhe debaixo dos pés, servia tão bem mesmo assim. O compadecente filho mais novo vai, então, guiá-lo numa redundante viagem de milhares de quilómetros que representará, naturalmente, muito mais do que isso. Materializará um regresso aos lugares da memória, numa jornada sobre vazio e sobre propósito, sobre ilusão honesta e ainda ir a tempo de alguma coisa e, acima de tudo, sobre a compaixão anuente que nos torna humanos.

Dois anos depois do excepcional The Descendants, e no padrão de Sideways, Alexander Payne apresenta-nos mais um incontornável projecto sobre família e fraternidade, confirmando-se como um dos mais importantes realizadores dos últimos anos. Nebraska é um filme impecavelmente medido, doce e bonito, com uma grande fotografia e óptima banda sonora, ao qual o preto e branco assenta exactamente como uma luva. Não é fácil escrever sobre família, mas é igualmente árduo filmá-la de forma genuína. Payne capta-o, mais uma vez, com a candura, o tacto e a ironia que já o celebrou e assina mais um grande trabalho. Ao contrário dos filmes supracitados - que lhe valeram em ambos os casos o Óscar para Melhor Argumento Adaptado -, aqui o texto ficou a cargo de terceira pessoa: Bob Nelson, um argumentista televisivo de pequena monta que, às portas dos 60 anos, escreveu a primeira longa-metragem da carreira. Os Spirit Awards galardoaram-no com o prémio de Estreante do Ano e, de facto, não podia ser mais merecido. Como desfio no parágrafo inaugural, o texto de Nelson é de uma riqueza apaixonante, sendo delicado, inspirador e emotivo no seu trejeito de cara fechada. Um dos Argumentos do ano, como bem reconheceu a Academia.

Interpretativamente, também ficou tudo em óptimas mãos. Bruce Dern é imenso no retrato da velhice crua, que nos tira tudo e nos parece empurrar sem rede para um final inevitável. Carrega o filme no seu jeito seco, todo ele trémulo, desajeitado e ácido, mas capaz de emprestar aos olhos o brilho dos sonhos impossíveis, qual D. Quixote atrás de gigantes, desconfiando que são só moinhos, mas que valem a pena mesmo assim, por fazerem-no correr e porque, no fim, a jornada é mesmo a única recompensa. E é supremo o desfecho em que todo o personagem se desfaz num sorriso juvenil averso à austeridade, tão vindo do âmago que nos toca como o de um velho conhecido. June Squibb é, por seu lado, outra estrela na companhia. Parece, à partida, limitada a determinado tipo de personagem, mas chancela-se como uma secundária de luxo, bestial no seu carácter corrosivo, maus modos e agilidade hostil, que a tornam irresistível cena sobre cena. Will Forte, o filho mais novo, parece, conquanto, algo bidimensional para o que poderia ter sido o papel, ainda que o seu tom pachorrento acabe por pontear plenamente o curso final.

Nebraska não é um filme para nos tirar o chão ou varrer-nos de surpresa, mas exala qualidade em todos os seus momentos. Pode condicionar quem tiver menos paciência, porque dá-se ao seu próprio tempo e acrescenta cenas por mera composição estética ou reforço de contexto, mas é uma história francamente bonita, que não deve deixar de ser vista e cujo fim, acredito, não dispensa um sorriso nos lábios.

7.5/10

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Fazer a própria sorte

 
'- Esta época, o que é que mudou no Benfica e no Porto, já pensou nisso?
- Já... mas tenho uma opinião diferente da sua. Não faço um juízo de valor por esta época, faço-o pelos cinco anos em que estou no Benfica, e pelo que eram o FC Porto e o Benfica antes e pelo que são agora. Só por este ano, não'
Jesus, depois da meia-final da Taça da Liga

Jorge Jesus nunca foi um bem-amado. Provavelmente, nunca será, ou não fosse ele a exacta antítese do modelo consumeiro dos 'treinadores de que se gostam'. Jesus tem uma facilidade para ser intratável, vezes demais no limite da falta de educação. Não mede palavras nem gestos, tem pouco tacto e tem a capacidade comunicativa de uma rocha. Dá espalhafato, é agreste e nunca aparenta sangue frio. Este é, não custa lembrar, o mesmo ano da molhada com a polícia em Guimarães e do festival de horrores em White Hart Lane. Desconfio que, até neste preciso momento de euforia, não seriam assim tantos os benfiquistas a assinar-lhe um contrato vitalício. Foram inúmeras e recorrentes as ocasiões em que o quiseram ver pelas costas, em que fantasiaram com outros perfis, em que, até, desamoraram as suas conquistas. Acredito que a sinopse é suficiente para perceber que, se chegou a treinador de maior longevidade da liga, no maior clube português, Jesus não pode ser só um treinador razoável.

Quando comecei a ver futebol, o Benfica não era uma das três melhores equipas portuguesas. Ser eliminado de forma idiótica da Taça UEFA era só normal e uma boa venda era fazer meia dúzia de milhões com Tiago ou Manuel Fernandes. Houve anos que até sorriram pela certa - lembrem-se Camacho, a nível interno, e Koeman lá fora -, mas, até Jesus, o Benfica tinha ganho um campeonato em 17 temporadas. O seu legado fala por si em todo e cada um desses vectores. Os mais ásperos dirão que duas ligas em cinco anos é pouco. Que outras duas perdidas no último fôlego foram inadmissíveis. Que Jesus beneficiou de dinheiro, jogadores e estabilidade como nenhum outro nas duas décadas que o antecederam. E todos terão alguma razão... ainda que, se fizerem disso argumento, não tenham claramente a noção da realidade. A ingratidão e o irreconhecimento são dos piores defeitos na vida, como no futebol. Se há uma regra de ouro no jogo é que nada acontece por acaso. Podemos todos crer que, quem ganha, merece sempre. Questionar a folha de serviços de Jesus nestes cinco anos não seria só desonesto; seria estúpido. Goste-se ou não do estilo - e remeto para o primeiro parágrafo -, se há uma coisa jamais questionável nele é a sua espectacular competência. Como táctico, como criador de talentos e como aculturador de vitórias. Talvez Jesus seja um arruaceiro. Mas é um dos melhores arruaceiros da Europa.

As vitórias são necessariamente a medida do sucesso e o Benfica precisa das finais que faltam para poder regenerar-se da tragédia que ainda tomba na sua memória colectiva. Porém, acho justo dizer que, se acabasse agora, se acabasse assim, Jesus já teria ganho. Sou um profundo admirador da sua qualidade desde sempre e um defensor inquestionável do seu mérito. Na fim da época passada, contudo, achei honestamente que era impensável continuar. Que o futebol é parte treino, parte emoção, e que se Jesus só podia ser excelente em metade, então o Benfica estava condenado. Que o único desfecho lógico para os dois era partirem caminho e começarem de novo. Tê-lo-ia sacrificado quando, ao minuto 90 da segunda jornada, já perdera o campeonato, ou quando a Liga dos Campeões se tornou num enorme nada, às mãos de um perecível Olympiakos. Jesus, pelo contrário, fez o impossível. Depois de ir ao inferno, depois das perversões de um purgatório de saídas escusas e a ter de reinventar a equipa pela milionésima vez, o Benfica foi ao campeonato, vai às Taças com requintes maquiavélicos e repete uma final europeia, com direito a jornada épica.

Filipe Vieira é um dos indissociáveis de tudo, pela visão, pela coragem e pelo tipo de instinto dirigente que, de facto, pode marcar uma era. Todavia, o Benfica deve a época à assombrosa capacidade de um homem em particular e, de facto, a um trabalho cujo alcance excede em muito 2013/2014. O tal que faz sempre feio na fotografia, mas que nunca parou de melhorar tudo aquilo à sua volta, o tal que provou hoje, com chave de ouro, que a sua excepcionalidade técnica dobrou, em última instância, a própria fronteira emocional. Neste momento, o Benfica parece capaz de derrotar qualquer adversário, com quaisquer jogadores em campo, seja até com quantos for. Jesus tornou a equipa numa máquina tão competente, que a sorte e o azar passaram a ser-lhe indiferentes. O Benfica deve mais a Jesus do que Jesus deve ao Benfica.