sexta-feira, 30 de agosto de 2013

The Place Beyond the Pines


Realizado por Derek Cianfrance, criador de um dos filmes absolutamente maiores de 2010 - Blue Valentine -, e protagonizado por dois dos nomes em melhor forma do cinema actual, The Place Beyond the Pines assumiu-se como uma aposta tão segura quanto entusiasmante desde a primeira hora: era um dos meus filmes mais esperados do ano. A história do motard que abraça uma carreira de crime para prover pelo filho que acabou de descobrir, e da forma como a sua vida se vai cruzar com um polícia jovem e inescrupoloso, procurou ser provocante, negra, surpreendente e, sobretudo, romântica. No fim de contas, procurou mas a verdade é que nem esteve perto de conseguir. The Place Beyond the Pines é só uma ideia bem pior do que achava de si própria, perdida nas suas considerações vagas sobre poesia e noir, e sempre mal sustentada, incompetente na narrativa e na caracterização das personagens.

A história parece, desde logo, grande demais para ser contada. Ao fim de um quarto-de-hora já foi debitada uma tonelada de coisas, e ainda nos estamos a ligar ao certo para perceber o que aquilo é. O filme nunca é capaz de sacudir essa sensação: parece estar sempre a atropelar-se a si próprio, a querer ser muito rápido e muito em grande, quando o que isso lhe vale, sem provavelmente perceber, é obliterar a coesão e a sustentação da história. The Place Beyond the Pines é um filme ambicioso, mas oco. Quer ser um grande drama, mas não é capaz de fugir à superficialidade das duas narrativas principais que, ainda por cima, são coladas a cuspo, com uma falta de criatividade gritante e uma injecção de clichés pela espinha. Pode-se dizer que o filme se divide em duas metades, e se o primeiro momento de choque é, de facto, surpreendente, o segundo "twist" é desastroso. É óbvio e completamente enjoativo, e deriva o resto do filme para uma espécie de novela mexicana de qualidade bastante discutível.

As interpretações não salvam a honra do convento. Ryan Gosling é bastante fraco, em mais um papel enervante à la Drive, como sex-symbol bad-boy que fará o que for preciso para salvaguardar a família, enquanto murmura mais do que fala. Não é um registo especialmente feliz, depois da notável strike de 2010/11 - Blue Valentine, Crazy Stupid Love, The Ides of March -, que o deixou, então, injustamente à porta dos Óscares. Bradley Cooper, ele sim, a quente de uma nomeação da Academia, pelo incrível Silver Linings Playbook, também não é capaz de brilhar, mercê de um papel relativamente mal escrito, que exagera nas suas metamorfoses e o torna confuso e artificial. A nota positiva vai para Dane DeHaan (26 anos), a melhor das performances a uma considerável distância. Carismático, afectado e assombrado, agarrou um papel que não era assim tão rico e convenceu pela intensidade, assinando, talvez, os melhores segmentos do filme.

Apesar de claramente deficitário no argumento, o trabalho de Cianfrance na realização é excelente, e é o melhor que o filme tem para oferecer. Estranha-se primeiro, borrado pela tal balbúrdia de coisas para contar, mas é indiscutível que, no fim, é um exercício de alto nível, inteligente, com timing, bom gosto e fluidez, a que lhe soma uma boa fotografia e uma óptima banda sonora. Os seus méritos continuam lá; desta vez foram só sabotados por um texto pretensioso demais para a sua pobreza.

6/10

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Before Midnight

 

18 anos. Before Midnight não é o epílogo de uma trilogia normal, mas de uma que demorou uma vida a fazer. Em 1995, Richard Linklater- realizador-argumentista -, Ethan Hawke e Julie Delpy puseram na rua um pequeno romance indie tão sedutor quando incapaz de medir o culto que viria a personificar. Acho que o grau mais alto a que um filme pode aspirar é o de entrar no imaginário colectivo. Before Sunrise foi um desses filmes perfeitos. Tão puro quanto despretensioso, foi, tal como eles, um amor à primeira vista. Europa, uma viagem de comboio e uma miúda bonita. Um assomo de coragem e uma noite, uma única noite, perdidos deliciosamente por uma cidade tão apaixonante quanto os dois. Conta-se que o aumento do turismo em Viena foi mesurável nos anos seguintes, menos, conquanto, do que o imaginário de todos os 20 anistas que tenham entrado num comboio para cruzar a Europa, nestas duas últimas décadas. Before Sunrise foi um tipo-ideal, em simbolismo, ambiente, qualidade extrema do texto e química entre os protagonistas. Teve tudo.

Em 2004, Before Sunset cumpriu o assomo de manter-se na mesma bitola. Bem menos juvenil, com mais uns quantos anos no tempo real e no tempo da história, mas, como nos melhores romances, a demorar quase nada até parecer que a última vez tinha sido ontem. Uma tarde de reencontro inimaginável em Paris, o mesmo contra-relógio e o mesmo fim aberto, e a merecida nomeação ao Óscar para Melhor Argumento. Mais uma hora e meia de um par perdido a pé por ruas fora, de excitação mal disfarçada, numa viagem para não deixar ninguém indiferente e que ninguém queria que acabasse. Deste último capítulo, não era certo o que esperar. Se uma mudança na forma, se uma mudança no tom, se, de facto, um fim, na verdadeira acepção da palavra.

Before Midnight é, realmente, um filme mais diferente do que os seus antecessores, por culpa de um contexto que é diferente e obrigatório. O momento já não é o da descoberta, da sedução e da ilusão. É o dos anos de história vivida e da vida para ser gerida. É o momento de sombra em que as traves mestras começam a ceder, e onde emergem o gasto e o embate. É um filme menos puro e mais adulto, mais difícil, que nos seduz menos, mas que se aprende a admirar o mesmo tanto. O lirismo está sempre adstrito ao seu código genético, e é mais ou menos omnipresente, mas Before Midnight não evita que ninguém se magoe. Volta a ter um texto extraordinário (Linklater, aqui em co-escrita com os protagonistas, continua a ser genial), mas, desta vez, é cru, até hostil, ao marcar distâncias, repensar necessidades pessoais e retratar desencanto, o tempo que passou e as histórias perfeitas que não existem. É o fim do espectro como ele tinha de ser, o quadro completo com todas as suas dimensões, e com a maneira como Jesse e Céline decidem reagir a elas pela última vez. Se a paixão são só as coisas boas, essa ficou nos dois primeiros capítulos. Midnight é um filme sobre o que o amor nos exige, sobre conseguir ficar ou ter de partir quando há coisas que já se perderam, um filme não tanto sobre gostar, mas sobre saber ou não continuar.

Hawke e Delpy estão no ponto em que começaram há duas décadas. O mesmo enleio, o mesmo toque, o mesmo laço, seja como for que acabe. Ele tão errante, sem jeito e certo de si como então, ela sempre sensual, pungente e afligida pela dúvida. Papéis feitos à sua medida e que eles brilhantemente elevaram ao expoente de ícones. Before Midnight não teve o desconcerto de outros tempos, como um adulto já não tem o rasgo da juventude. Exactamente da mesma forma, ofereceu uma profundidade cáustica que só agora seria possível. Ser diferente não belisca o imenso estatuto que partilha com os antecessores; é, pelo contrário, o que o reafirma como tal, porque os completa. Os Before serão a obra magna da carreira de todos os envolvidos, e uma que, em 18 anos, o foi até à última hora.

8/10

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

"We are the happy ones"


Tarde de sol, casa cheia, ilusão a jorrar da rua para as bancadas. Alegria, um entusiasmo tão genuíno quanto mal disfarçado, um quase frenesi para poder viver tudo aquilo outra vez. Dizem que não devemos voltar ao lugar onde fomos felizes. No momento mais frágil da carreira, ele voltou. E eles voltaram com ele, como se nem tivessem forma de lhe agradecer. O Chelsea ganhou dois títulos europeus nos últimos dois anos, e, mesmo assim, arrisco a dizer que nenhuma dessas finais pôs os olhos daquela gente a brilhar tanto como este último domingo de Agosto, contra o pequeno Hull. Ganhar não é tudo na vida e, no fim de contas, o que fica no coração da gente é a forma como se o faz. É provável que qualquer blue preferisse perder com Mourinho do que ganhar com Benítez ou outro qualquer, e isso diz quase tudo. Não conheço nenhum adepto que, em vez de um treinador, não preferisse ter lá um dos seus.

Ainda não tinha feito 14 anos, e aquele Chelsea já se prestava a ser uma das equipas da minha vida. Foi amor à primeira vista, a cada carga de cavalaria liderada pelo generalíssimo Frankie, com um recém-prodígio holandês e um irlandês de ruivo sério a desconcertarem nas asas, a melhor dupla de centrais que vi jogar (Nesta-Maldini a par, sendo justo) e o mais carismático de todos os avançados-centro a que o futebol europeu assistiu no novo século. Mais um soldado checo então ainda averso a capacetes, um luso de brandos costumes a fazer a lateral-direita valer os 20 milhões de vez em quando, um francês pequenino que foi sempre uma âncora imensa, um 10 inglês que chegou a jogar o suficiente para o chamarem de brasileiro e um avançado com tanto de albino quanto de trunfo, nascido quase no Pólo Norte. Um exíguo ano depois do propalado melhor campeão de sempre - os Invencíveis de Wenger - uma equipa que, na verdade, quase só tinha gente para se provar, bateu esse recorde de pontos. I'm not one of the bottle. I think I'm a special one. Nunca ninguém poderá dizer que ele não avisou. 

O resto toda a gente sabe. Num deserto árido de títulos, notoriedade e reputação, ele esculpiu à mão um gigante europeu. Bicampeão na relva onde toda a gente sonha ganhar, mais um saco de taças e outras duas meias-finais continentais que ficarão para sempre a ser devidas à eternidade. Um projecto futebolístico temível e inesquecível, glorificado por uma legião de fiéis que o venerou como um herói em todas as horas. Uma explosão simbiótica de futebol, militância e carisma incapaz de deixar alguém indiferente. O jogo muito maior do que um jogo, no patamar onde só moram os que já não podem morrer. Reza a lenda que, no dia em que se despediu, Drogba chorou no balneário como uma criança. Lampard descreveu o momento em que o viu sair pela última vez como o mais emocional de toda a carreira. O povo, esse, dedicou-se a fazer-lhe o luto nos longos anos seguintes e a velar, sem pudor, e contra quase todos, pelo seu regresso sebastiânico.

Passaram 10 anos desde o primeiro dia. No campo, porém, foi como se nunca tivesse acabado. Foi isso que se viu no orgulho insuperável a encher a cara de todos os que o receberam de pé. Welcome home, Jose. We are the happy ones. Ele, mais velho, mais batido, mal pôde segurar a emoção nos olhos. Uma, duas, três vezes a ter de levantar-se e a agradecer, ele que não estará sempre no Chelsea, mas àquela gente que, como o provou uma vez mais, estará sempre lá para ele. O jogo rendeu vitória, claro. E o melhor foi Lampard, só porque era mesmo dia para as coisas que nunca mudam.

Até onde irá este Chelsea, não se prevê. Certo é que, em consciência, já tenho o meu campeão. Há viagens no tempo que ninguém pode recusar fazer, e os heróis são para sempre.