segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Fomos aqueles por quem estávamos à espera


Em toda a vida, haverá apenas um punhado de dias com importância política suficiente para defini-la. Boa parte das pessoas nem chegará a tê-los, porque nunca se identificará o suficiente, nem acreditará em algo pelo qual valha a pena lutar. Para outros será um presidente, para uns um governo, para alguns um partido e para poucos um homem. Para mim, foi hoje.

As pessoas de fora nunca poderão perceber o que significou o 29 de Setembro de 2013 para a Madeira. Exactamente como o resto da nossa realidade política, é o tipo de coisa que só compreende o alcance quem a viver. Há 35 anos, um partido e um Governo tornaram-se numa e na mesma coisa para a ilha e, durante essa eternidade, isso nunca esteve sequer perto de mudar. O PSD foi veneno na água. Foi a mão que suborna e chantageia, que ameaça com dinheiro e com emprego, e que nela mantém a gente a comer, porque nunca se morde a mão que nos alimenta. A febre foi radicalizando ao ponto de já nem ser branqueada. Desta vez, Jardim ameaçou abocanhar a RTP Madeira ou implodir financeiramente as Câmaras que o traíssem. É esse o tipo de impunidade com que a Cosa Nostra se habituou a fazer as suas coisas e, como num romance orwelliano, inculcaram-nos que o que não existia era alternativa. Que havia o partido-Estado ou o Adamastor, o PSD ou o fim. As pessoas, agredidas por essa lobotomia, habituaram-se a aceitar o culto do chefe e o culto do medo, a aceitar essa violência doméstica e a conservá-la de uma maneira estranha, porque, como qualquer abusado, achavam que isso era tudo a que podiam aspirar.

O que aconteceu hoje na capital e em 2/3 da Região não é o sucesso de bons presidentes, nem a derrota de um mau partido, não é o triunfo das alternativas, nem a hecatombe de um ditador. É a vitória dos que acharam que há um dia em que toda a gente tem de importar-se. Dos que acharam que nenhuma cor pode ficar 40 anos no Poder, simplesmente porque isso é errado. Dos que arriscaram dar o passo em frente e fazer História, por mera consciência e por sanidade, e porque entenderam que devíamos a nós próprios esse respeito. Dos que acharam que um partido não pode ser esse polvo de Estado e dos que já não admitem viver num regime autoritário legal. Dos que não aceitam o despesismo eleitoralista barbárico que nos arruinou o futuro, pejado de obras aberrantes que só encheram os bolsos à camorra, e dos que defendem que ainda conta para alguma coisa não perseguir jornalistas, nem caçar quem pensa de maneira diferente. Dos que querem ter igualdade de oportunidades sem ter de fazer juramento ao partido e dos que querem falar alto sem serem aconselhados, e sem perderem o emprego ou a sorte dos filhos. O 25 de Abril não foi hoje, mas o nosso 25 de Abril é isto.

Ver Cafôfo na varanda a reclamar a vitória no Funchal foi daquela emoção que dá um nó na garganta. É que, disseram-me a vida toda, aquilo não era possível. Ver que foi, que aconteceu e que eu o fiz acontecer, é de uma magnitude indescritível. No dia em que votei pela primeira vez numas Regionais, aquele voto, aquela cruz insignificante no boletim, foi o vórtex que nos mudou a sorte a todos. Um dia, escolhi acreditar que isso valia a pena. Que a Madeira não tinha de ser uma caricatura de Absolutismo e que podíamos ter orgulho na nossa maneira de estar enquanto sociedade política. Nunca fiz parte de Juventude nenhuma e nunca tive nada a ganhar. Mas acreditei que as coisas podiam mudar, porque achei que isso era a única coisa a que a minha geração se podia permitir. Porque se eu não puder acreditar em nada aos 23, nunca vou poder. Hoje, o futuro veio-me dizer que sim, que valeu. Que o dia em já não somos um feudo monárquico, e em que os madeirenses levam a cabeça mais levantada do que nunca, porque quiseram e puderam ser melhores, chegou. Guevara disse, uma vez, que não era um libertador, porque esses não existiam. Eram as pessoas que se libertavam a elas próprias. Hoje foi o dia em que fomos livres.

2 comentários:

Andreia caetano disse...

Extremamente bem escrito, uma vez mais, e de uma sensibilidade estrema. os meus parabéns Paulo Pereira.

Andreia Caetano

MSG disse...

Grande texto Paulo.
Parabéns pelo teu talento para a escrita e pelo teu inconformismo ante a injustiça.
Abraço.