“Não somos favoritos. Mas vamos ganhar.”
Fernando Santos
Para quem não ganhou nada na vida, estar quase a
ganhar pode ser cruel.
Não é a nossa pele. É demasiado justo, demasiado
apertado, demasiado desconfortável, como um fato que não queremos vestir. Como o exagero de responsabilidade que não queremos assumir. Não era suposto, não nos era
pedido e é ingrato termos agora de dever alguma coisa. Perder era muito mais fácil. Porque é mais leve jogar sem esperarem nada de nós. É mais leve viver sem esperarem
nada de nós. Temos o talento, o coração, e temos uma capacidade de
sacrifício absolutamente inqualificável. Só não queremos ter de ganhar. Esse é,
possivelmente, o único sacrifício que nunca aprendemos a fazer. Entramos
e saímos sempre com as nossas ideias. E há uma grande dignidade nisso. Em
não ter vergonha de nunca ter ganho nada, em ter brio de segurar o nosso lugar.
Há também medo que lhe baste. Nunca ganhámos, não porque era impossível; nunca
ganhámos, porque também era assustador.
Para a França, por exemplo, perdemos a vida toda.
Uma das primeiras cassetes de futebol que vi chamava-se “Os Patrícios no
Europeu de 84”, cortesia d’A BOLA, o jornal que foi, singularmente, enquanto
lhe lia as caixinhas todas fascinado ao sábado ou ao domingo de manhã, a razão
pela qual quis ser jornalista. O Euro 84, também jogado em França, foi a nossa
primeira participação internacional em quase 20 anos, depois do que Eusébio fizera em Inglaterra. Ir àquelas coisas era uma improbabilidade tão grande, um passo tão
ilógico sobre o abismo, que os portugueses desse tempo lhe davam nome. Os
“Magriços” no Mundial de 66, os “Patrícios” no Europeu de 84. Os novos
descobridores, os novos missionários, os embaixadores na vanguarda de um mundo
desconhecido do que poderia vir um dia a ser o futebol português.
Já vi aquele França 3, Portugal 2, muitas, muitas vezes.
O talento ridiculamente singular do Chalana, o gigante mais esquecido dos
gigantes do futebol português, um Astérix mas contra franceses, a vir da
esquerda para dentro num ziguezague primordial, que gravou na relva o ADN do extremo português, para todos os que vieram depois dele. O tamanho
do Bento na baliza, toda aquela tropa de choque na defesa e no meio-campo, de
portugueses vintage que pareciam ter 30 anos de carreira ou mais, como o João
Pinto, o Álvaro Magalhães, o Frasco, o Sousa ou o Pacheco. A classe do Nené e a
força do Gomes e do Diamantino, num ataque que podia ter sido quase tudo. E
claro, a graciosidade do Jordão, aquela elegância inigualável de quem veio só marcar dois
golos à França, antes de voltar a um cocktail na Côte-d’Azur, onde era devido.
O que mais me fascinou nesse jogo, de todas as vezes que
o revi enquanto miúdo, era aquela sensação de vitória. Aquele encanto de ter
enchido o campo e ter estado a cinco minutos da final, aquela ilusão de quando o
Jordão salta ao segundo poste no prolongamento e a cabeceia no ângulo, aquela euforia que é tanta demais, que nem parece de verdade. Vi o jogo tantos anos
depois e achei, mais do que uma vez que, se calhar, quem sabe, aquela bola suja
do Platini poderia não entrar um dia. Acho que nunca acreditamos realmente que ela entrou. Que nunca perdemos realmente esse França 3, Portugal 2. Não sei se essa pureza é boa ou má. Sei que, da
mesma forma, continuamos a não ganhar muitas coisas muito depois.
Em 2000, lembro-me de ter ido festejar aquele golão em
moinho do Nuno Gomes para o meio da minha estrada. Era o meu primeiro Portugal num
grande Campeonato. Em 2000, por ironia das ironias. No ano em que pudemos tudo. A melhor geração, a melhor Selecção,
o melhor futebol, o melhor Figo, o melhor marcador. O Europeu que refundou
Portugal. Tinha 9 anos e, com 9 anos, ainda se acredita em contos de fadas e em
heróis com final feliz. 28 de Junho de 2000, a ver na televisão de caixa da
minha antiga sala esse jogo no Estádio Rei Balduíno, em Bruxelas. É a primeira
vez que me lembro de chorar a ver futebol. Não chorei em 2004, nem me lembro
honestamente de voltar a chorar com a Selecção depois disso. Mas lembro-me daquele penalty do
Abel Xavier como se fosse hoje. Do ódio, da impotência, do desespero. De ter
gritado roubo até já ter deixado de ser uma criança. Infelizmente, a vida é quase sempre um penalty, de uma forma ou de outra.
Em 2006, não posso dizer em consciência do que é que
estava à espera. Esperava não encontrar a França, por exemplo. O Euro2004
pesava mas, durante esse mês na Alemanha, parecia afinal nem pesar assim tanto. Ao último
apóstolo da Geração de Ouro, tinha sido dada mais uma última oportunidade.
Passámos a Inglaterra, claro, e é difícil não achar que podíamos passar o
mundo, depois da Batalha de Nuremberga. Mas tudo nos
levou à França e ao Casamento Vermelho dessa meia-final. Uma chuva de
Castamere, uma execução à espera de acontecer. Scolari provou-nos, epicamente,
que era possível viver duas vezes. A França lembrou-nos o que era invadir-nos
três.
Todos esses jogos têm em comum o facto de não sermos
favoritos e, ainda assim, parecermos ter tudo a perder. Ainda antes do jogo, o chão, a
confiança, até o destino. Não falo do que achavam de nós, falo daquilo que achávamos
de nós próprios. Falo, afinal, dessa falta de convivência extrema com o sucesso. Dessa
vertigem que era, quem sabe, poder ganhar. Tínhamos melhor futebol, tínhamos tanto
maior carisma, só não tínhamos forma de dever aquilo a nós próprios. De não
nos assustarmos e não cairmos. Para a França, perdemos a vida toda. Perdemos
emigrantes, perdemos futebolistas, perdemos financeiramente, perdemos três
invasões e perdemos, até, essas três meias-finais. É exactamente por isso que,
amanhã, tinha de ser a França. Porque já não temos mais nada para perder.
Se perdermos, que se foda.
Se há alguém que aprendeu da forma mais dura o que é lhe
arrebanharem os sonhos, fomos nós. Se há alguém que já aprendeu tudo o que
tinha para perder, fomos nós. Não temos mais nada a provar a ninguém. Muito
menos a quem tinha a obrigação de cá estar. Não temos mais gente, mais dinheiro, nem mais tamanho. Mas vamos jogar a nossa segunda
final em 12 anos, com quatro meias-finais nos últimos cinco Europeus. Nos últimos 20 anos
jogámos futebol que dava para o continente inteiro, e o raio que o parta, metemos
portugueses no melhor que há no continente inteiro. Demos espectáculo,
emprestamos coração e trouxemos alma para dar e vender, deixamos em campo o
sangue e o suor, e chorámos vezes de mais. Ninguém fez mais por isto do que
nós. Ninguém.
Se perdermos, que se foda.
Mas tudo o que este Europeu provou é que não há mais
nada que nos possam tirar. Desta vez, não viemos pela glória. Não
viemos para gostarem de nós. Somos chatos, somos nojentos, somos iméritos,
somos sortudos e somos toda a merda que nos quiserem chamar, e que dê para colar nas
paredes do balneário de Saint-Denis. Mas também somos este caminho todo até
Paris. Desta vez, viemos para gostarmos de nós próprios. E ter amor próprio
come a cabeça a muita gente, sobretudo se fores pequeno, sobretudo se a vida de grande for feita dessas pequenas perversões de andar a brincar com as presas
entre os dentes. O que os franceses claramente não percebem, é que, desta vez,
nos estamos a cagar para eles. Que, desta vez, vão ter de comer com este bicho que não
entendem, que não lhes fará vénia, nem lhes beijará a mão, e que lhes vai faltar
à puta do respeito todo, por mais que eles se estrebuchem nos Versalhes da vida
onde sempre viveram. Não temos sangue azul. Mas, desta vez,
eles vão ter de vir à rua ganhar, se quiserem. E o que os corrói é este
desamor. Este despeito. Esta arrogância de quem já não tem medo, nem tem vergonha, nem tem mais pena
de si próprio.
Se perdermos, que se foda.
Mas, na rua, o campo nunca é inclinado. Na rua, somos todos
do mesmo tamanho. Quem sabe, talvez não seja desta, em Paris. Se não for,
inimigos na mesma. Mas não tenham dúvidas de que, se quiserem ganhar, os
franceses vão ter de sofrer coisas que nunca sofreram. Vão ter de ser melhores
em campo, no banco e nas bancadas, vão ter de querer mais, sacrificar mais, aguentar mais, enervar mais e sobreviver mais. Vão ter de sair
do altar e virem ver se são bons o suficiente.
Já nós, fizemos isso a vida toda.
Se perdermos, que se foda.
Escrevia um jornal inglês esta semana que o único mérito
que ninguém pode tirar a Portugal é o de ser incansável. É a impassibilidade
de continuar a remar mesmo quando não saímos do mesmo lugar. Quando não se
criam jogadas, quando não se marcam golos, quando o adversário vem numa e
noutra vaga. Nós nunca paramos de remar. Para mim, isso é crónica moderna de
um super-poder. Amanhã, a França terá melhores jogadores, mais futebol, mais
passado, melhor forma, mais gente. 80 mil pessoas. O que os franceses devem
perguntar a si próprios é se isso é suficiente. Para aguentar.
Se perdermos, que se foda.
Foi isso que o Fernando percebeu antes de irmos. Foi isso
que o Cristiano percebeu antes dos outros. O que nunca foi nosso, não podemos
perder. O que não é suposto ser nosso, não podemos perder. Mas se questionarmos
o tempo suficiente, se aguentarmos o tempo suficiente, se fizermos com que eles
duvidem de si próprios o tempo suficiente, então, de repente, deixa tudo de ser uma piada. Não vai ser chato, vai ser tortuoso. Não vai ser nojento, vai ser um
suor frio.
Se perdermos, que se foda.
Mas amanhã, sentados à volta da esfera armilar que fala
deste povo e desta língua em cada canto do mundo (dizia hoje o Engenheiro, "por todo o lado onde passei, havia um português"), o que nos resta não é apoiar,
nem gritar, nem ficar a torcer. O que se nos propõe é um desafio muito mais radical: é
acreditar mesmo no que não estamos a ver, é esperar mesmo pelo que não parece ir
chegar, é saber que nada em estar ali é de menos e perceber que não há nada para além da miragem de uma vitória moral. É não fraquejar e é sonhar acordados. Porque já não é um sonho. É amanhã. Pensem o que era desta
terra se acordássemos todos na segunda Campeões da Europa. Pensem em não dormir no domingo. É isso, é hora. Sonhem acordados.
Se perdermos, que se foda.
Mas, por uma vez, pensem em chorar,
mas duma puta alegria. Pensem no que é derrubar a maior de todas as nossas barreiras e não ter, enfim, vergonha de ser feliz. Pensem,
e se ganharmos?
6 comentários:
tão certeira esta crónica de nós próprios!
Do melhor que tenho lido.... E se ganharmos? ;)
Hoje já somos gigantes, na vontade, na competência e no sonho!!! Hoje somos iguais na legitimidade de querer e merecer o título de campeões da Europa!!! Hoje seremos e somos a maior surpresa desta França invejosa e pedante!!! Hoje vamos de uma vez por todas exorcisar o nosso fado de pensar no pior é não dar espaço à invasão do melhor de nós!!! Hoje será mais um dia nos nossos 863 anos de história!!! Se perdermos ou ganharmos que se foda!!! Já somos imparaveis e este mundo com a nossa história também já é nosso!!!
Extraordinária crónica, magistralmente escrita. O fado português talvez se transforme hoje numa Lusitana Paixão.
Se ganharmos?
... que se foda!
Textaço, meu caro. De arrepiar. Saudações aqui do Brasil.
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