sábado, 25 de abril de 2020

Abril, a urgência e a responsabilidade


A Ditadura em Portugal durou 48 anos.

Ceifou vidas e ceifou gerações. Foi o mais longo regime autoritário do século XX na Europa Ocidental. Não sei se temos noção de que somos livres há menos tempo do que fomos oprimidos. Hoje, temos a sorte de poder esquecer. Quem viveu e morreu perseguido e preso, torturado, assassinado ou condenado à indignidade, ao atraso e à pobreza, não se esqueceria com certeza. Temos essa sorte. Pergunto-me, em dias como hoje, quanta gente gostaria de ter podido viver isto, pelo menos uma vez. Quanta gente gostaria de ter podido sonhar com esta utopia de 46 anos de liberdade e que morreu sem um pingo de esperança no país que deixava aos filhos, porque não teve essa sorte. Pergunto-me, em dias como hoje, quantas gerações de portugueses foram aconselhadas a não sonhar, a não ter esperança e a não quererem ser livres, pelo seu próprio bem. Quantas gerações, no caso dos madeirenses até muito depois da Revolução, foram educadas a ter medo de ter uma opinião, uma consciência e a ser gente de corpo inteiro, sem vergonha, sem comiseração e sem miséria.

O bom de Abril é que toda a gente é livre de fazer o que quiser. De comemorar ou não comemorar a Revolução, de ser indiferente ou apaixonado, de acreditar nela ou de desprezá-la. Num país que passou metade do último século pisado e humilhado, é normal que a Democracia ainda desconforte muita gente. É essa a raiz da sua superioridade moral. A mim não me deixa de custar, no entanto, que num país que vive há menos tempo em democracia, do que viveu em ditadura, pareça faltar sentimento de urgência, propósito e convicção. O 25 de Abril acertou em quase tudo. Melhorou quase tudo, transformou-nos em quase tudo. Mas se pecou nalguma coisa, talvez tenha sido na sua falta de auto-estima. Na educação para a cidadania e no combate ao abismo da memória. Para mim, restituir esse caminho é uma questão de dever cívico. Não tenho dúvidas de que o povo estima o 25 de Abril, mas não tenho a certeza se percebe a sua preponderância e a sua actualidade, quando num dos momentos mais difíceis, inéditos e imprevisíveis da nossa História Moderna, tanta gente estaria disponível para sacrificá-lo.

A Revolução não é nossa para sacrificar, porque não fomos nós que nos sacrificámos para torná-la possível. Nós só ficámos com a parte boa. O 25 de Abril não é nosso para sacrificar, porque a Democracia e a Constituição, os direitos, as liberdades e as garantias, os serviços públicos e o Estado Social não se sacrificam; são eles justamente a fina linha que nos separa do vazio nos tempos em que vivemos. Tenho a certeza de que hoje é mais importante do que nunca celebrar Abril. E é ainda mais importante por tudo o que vimos nas últimas semanas. Quando o terror se sente no ar, instigado pelos mesmos de sempre, o povo aflige-se, fraqueja e esconde-se no escuro. Passa a temer a sua própria sombra e a desconfiar de tudo, inclusive do que dá por adquirido, inclusive da bondade da candeia que alumia o caminho. É por isso que toda a luz é essencial. É por isso que temos hoje a missão, como muitos outros melhores do que nós e muito antes de nós, de não arredar pé e arrepiar o caminho. Quantos portugueses foram aconselhados até hoje a não serem livres, na sua vida, no seu trabalho, na sua sorte, na sua terra e no seu destino? Se é para sacrificar alguma coisa, que seja por eles. Os outros não passarão.

Hoje, como em todos os dias dos últimos 46 anos, não nos cabe apenas celebrar. Cabe-nos defender um país que acredita numa vida digna para todos, venham de onde vierem, estejam onde estiverem. Um país de cada qual, segundo a sua capacidade, a cada qual, segundo as suas necessidades. Um país que, com todos os seus defeitos e insuficiências, é um exemplo de progresso e humanismo em toda a parte. Um país em que ninguém fica para trás, com saúde e educação universais, com protecção social e laboral, o que para nós são só mais uns direitos, mas em meio mundo são só mais uns sonhos. 46 anos depois, nem tudo está cumprido, mas que nunca nos falte o sentido, a gratidão e a memória para celebrar um país com liberdade e com esperança. Celebrar Abril é urgente, hoje e sempre, para que o presente nunca nos fuja por entre os dedos. Muitos outros antes de nós, e muito melhores do que nós, gostariam que essa tivesse sido a sua resistência e a sua única responsabilidade.