terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Uma terra de deslumbramento


Haverá sítios em que se vive mais rápido, e sítios em que se vive maiores, mas não estou certo de que haja sítios onde se viva mais intensamente. Numa década definida pelo regresso a casa, ao contrário de muitos outros da minha geração, de antes e depois, que não tiveram a mesma sorte ou a mesma oportunidade, este é o momento justo de reconhecer que provavelmente não poderia ter sido de outra maneira.

É provável que a ilha nos destine a todos à sua maneira, uns com a missão de ir, outros com a responsabilidade de ficar. É, decerto, impossível que alguém lhe fique indiferente e é garantidamente impossível qualificar com palavras a comunhão mística que existe entre um ilhéu e o mar e a rocha que o viram nascer. Esta terra corre-nos no sangue. Nascer ilhéu é, na sua própria acepção, cumprir uma profecia que transcende o tempo e o espaço, as partidas e as chegadas, a natureza e as pessoas, os encontros e as despedidas, o calor e a água, e todos os excessos e todas as provações, todos os vícios e todas as estações.

Não sei se um madeirense vive tanto porque um dia escolhemos ser assim, ou porque simplesmente já nascemos a ser assim. Desconfio que a forma como se vive nesta rocha olímpica e tropical é indissociável da ultra-periferia dos primeiros insulares, que nasceram nos limites do mundo conhecido, e de todo o gigantismo moral que é preciso para viver longe, numa ilha pequena, num mundo deste tamanho. Desconfio que no nosso próprio ADN já vêm marcadas as tempestades no mar, os ciclones no ar e as insolações em terra, e que por isso há demasiada energia cá dentro para ficar guardada, na ilha, como em cada um de nós. E é por isso que corremos tanto, festejamos tanto, excedemos tanto, vivemos tanto. Podia não ser assim?

Disse Tolentino Mendonça, numa entrevista no início da década, que "a ilha é um universo onírico. A dimensão da insularidade e a relação com os elementos é muito forte, é uma coisa da qual nunca mais nos livramos. A ilha não é o lugar do crescimento, mas sim da exposição radical ao mundo. A experiência da Madeira é, de facto, uma experiência de universalidade."

A Madeira estará sempre onde cada madeirense estiver. E haverá sítios em que se vive mais rápido, e sítios em que se vive melhores, mas não estou certo de que, ao fim de mais uma década, haja sítios onde o deslumbramento possa ser vertiginosamente maior do que isto.

Bom ano a todos, deste lado do mar.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Marriage Story: uma honestidade comovente


Parafraseando uma frase Cruyffiana, fazer cinema simples é a coisa mais difícil do mundo. Contar as relações mais básicas entre as pessoas, provavelmente também. Marriage Story é um filme simples, porque retrata-se de uma forma muito tangível e quase mundana, sem efeitos e sem ter de inventar quase nada; e é garantidamente um filme brutal, como consequência do seu próprio realismo.

O filme é uma das peças mais singulares da temporada, desde logo pela aparente arrogância e crueza da proposta. É um filme sem tempero, mesmo que perante uma digestão muito difícil, dando-se a isso com aquilo que parecia ser, à partida, uma certa sobranceria estilística. Confesso que tinha muitas reservas, porque fazer um filme destes aparentemente a frio, sem pára-quedas e sem fazer concessões a ninguém, normalmente rotunda, e sendo muito sincero, num testemunho pouco tragável. Não é comum resultar num filme notável, mas Marriage Story é isso mesmo: um filme, a todos os títulos, surpreendentemente notável, sem jamais ter falta de noção de si próprio ou perder-se na sua própria angústia.

O que impressiona mais, numa obra sobre perda e desencarnação plenas, é nunca ser demasiado fechado sobre si mesmo; pelo contrário, é a sua notável capacidade para falar connosco, para nos deixar todas as pistas humanamente assimiláveis pelo caminho, e garantir que, enquanto caía, fazia-o com uma empatia intocável para com o público. Marriage Story instiga-nos uma atenção, um cuidado e uma curiosidade permanentes, não de uma forma exploratória, mas antes, quase altruísta, é sempre cativante, e quase sempre impressionante, até na fidelidade para com as pequenas coisas, a partir de um argumento absolutamente invejável, daqueles que às vezes é preciso viver muitas vezes para sonhar escrever (cortesia todo-o-terreno de Noah Baumbach, que produziu, escreveu e realizou), e de um elenco absolutamente extraordinário, com um colosso chamado Adam Driver, definitivamente no topo do mundo, e com a melhor Scarlett de sempre, a parecerem ambos ali genuinamente insubstituíveis e na plena expressão de todas as suas capacidades, rematados, por fim, com um admirável leque de secundários, onde jamais poderia menosprezar o rescaldo de alma que foi rever Alan Alda.

Marriage Story tem o dom de nos fazer viver um processo extremamente doloroso de uma forma sempre razoável, justa e corajosa, e essa honestidade emocional, tantas vezes tão difícil, no ecrã e fora dele, sem melodramas, nem espectáculos, é justamente aquilo que nos arranca todo o respeito que lhe é devido. Porque podia ser connosco, porque se calhar já todos andamos naqueles mesmos lugares e já todos pisamos aqueles mesmos abismos da vida, e porque sobreviver à vida é, muitas vezes, o que nos faz seguir em frente. A vida não é cinematográfica, e o grande cinema tem a responsabilidade de ser mais como a vida, do que como a arte.

Mesmo no fundo, depois de tudo o resto já ter falhado, só há uma excepção que confirma a regra: Marriage Story é romântico até ao fim, mesmo se não puder ser feliz. Essa falência está-nos no sangue, essa esperança é o que nos salva mesmo se não houver salvação, e não somos ninguém para dizer que não é legítimo que assim seja. Era muito difícil fazer de algo feio e complicado, algo simples e honestamente justo, comovente e bonito. A carta final está lá para provar-nos que é sempre possível. É provavelmente a cena mais bonita do ano.

8/10

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

The Irishman: uma homenagem ao Cinema


Era ainda uma simples ideia e já não havia forma de nos tirar o sorriso da cara. Scorsese, De Niro, Pacino e um filme de gangsters saído das nossas memórias mais felizes, como se já todos o tivéssemos vivido em vários momentos e de muitas formas, ao longo dos anos. Uma equipa de sonho saída directamente da História da Arte, não por dinheiro, fama ou devaneio, nem sequer por eles, mas por reverência ao cinema e a tudo o que ele representa para todos os fiéis discípulos desta enorme viagem. Um filme que foi buscar o Pesci à reforma, minha nossa senhora. Mesmo se não fosse muito bom, The Irishman saberia provavelmente muito bem. Mesmo se não fosse o marco que é. Não pelo que tem de passado, mas pela sua intemporalidade para o presente e para o futuro.

The Irishman é um all in de Scorsese. Honra lhe seja feita, é mais um, na verdade. É uma antologia imensa e imensamente ambiciosa, quer na profundidade e na delicadeza da fórmula, quer na largura da narrativa, em que o velho Mestre arrisca tudo, porque ao fim de todos estes anos, essa continua a ser a sua única maneira de o fazer. Uma distribuidora normal provavelmente não lhe daria 3h30 de filme, porque não haveria tempo, mas The Irishman é exactamente a antítese da urgência dos dias em que vivemos: é um filme para esperar e para desfrutar, para afligir e para envelhecer connosco aos poucos, como as nossas histórias preferidas, as nossas maiores provações ou os nossos melhores amigos.

É essa a grande vitória de Scorsese: triunfar com um filme feito exactamente nos seus termos, mesmo numa plataforma inédita, mesmo num formato que nem sabíamos que gostávamos e com as suas velhas glórias, todos agora nos idos dos 70, mesmo sem sabermos se ainda podiam voltar a sê-lo. The Irishman é essa redescoberta permanente, é a restituição do mais puro deslumbramento e da elegância com que o cinema reinventou o último século, um épico de filigrana, como uma fotografia de pasmar, e tempo para conversar e para partilharmos tudo, o lusco-fusco e os gestos, as personalidades que não se substituem e as decisões difíceis que mais ninguém pode tomar. Um filme de Mestre, de um dos maiores de sempre, que volta a usar a mística e os mistérios da Máfia para falar dos nossos próprios vícios, das nossas falências e dos nossos destinos, e ainda assim, do código que nos distingue e do carácter que nos aproxima uns aos outros. Um trabalho fantástico que contou obviamente com a contribuição habitualmente impagável de um argumentista como Steven Zaillian.

The Irishman é um filme de alto quilate, que nos perturba e nos comove mesmo quando não nos apercebemos logo disso. Poder fazer esta viagem com a coragem e a alma do melhor De Niro, que se supera aqui com uma generosidade e uma humildade interpretativa até onde porventura nunca tinha ido, com a fúria e o génio do melhor Pacino, que será vertiginoso até morrer, e com o carisma e a classe do melhor Pesci, todos, por deus, já nomeados para os Globos de Ouro, é demasiado bom para ser verdade. O epílogo do filme deixa-nos com o coração pequenino e liberta-nos nas veias uma nostalgia difícil de controlar. Espero que The Irishman não seja a despedida de nenhum deles, muito menos desta forma de fazer cinema; mas em tudo o resto, é um monumental e arrepiante mausoléu de carreira para a melhor geração de sempre. De uma coisa podemos ter a certeza: se isto é uma homenagem, os homenageados somos nós.

8.5/10