sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Steve Jobs. Conceptual, poderoso, viciante



Steve Jobs não é o homem mais importante do filme. É irónico, no filme sobre a sua vida, mas o mérito de um dos musts do ano é mesmo de quem o escreveu.

Normalmente, idolatram-se actores ou realizadores. Idolatra-se quem aparece nas fotografias, quem dá as entrevistas, aqueles, no fundo, de quem se vê o trabalho. É difícil idolatrar os heróis não cantados. Ao pensar nisto, lembro-me sempre do meu velho John Spencer que, ao receber o primeiro Emmy da carreira, aos 56 anos, se dirigiu ao seu argumentista para dizer:
"I serve at the genius and the art of Aaron Sorkin, one of the great writers of all time. An actor is only as good as the material he gets; and we were given gold week after week after week. I don’t know how he does it."

A série era West Wing - Os Homens do Presidente. Aaron Sorkin, pois claro, o seu pai criador. Uma e outro são, até hoje, os melhores que já vi. Sorkin tornou-se, para mim, uma figura de culto. Um monstro sagrado dos guiões, o maior de todos. Capaz de idealizar o que mais ninguém escrevia, com a cadência que mais ninguém imprimia. Para quem escreve umas coisas, para quem sonha escrever mais e melhor, para que consome cinema e televisão, Sorkin foi um deus. Um iluminado filosofal, da forma e do conteúdo. As primeiras quatro temporadas de West Wing, após as quais abandonou a sua própria criação, são património da Humanidade. O mestre contudo, assombrado como os maiores, com problemas graves de toxicodependência, não voltou depois a atingir semelhante Panteão, ainda que todos os seguidores tenham continuado a deslumbrar-se a episódios, como ao ver as fintas de um velho craque nos anos de ocaso, em Studio 60, Newsroom ou, em cinema, ainda com Moneyball. Este texto não seria suficiente para exprimir toda a admiração que tenho por Aaron Sorkin. Ainda assim, não ousei apostar tudo neste Jobs.

Por ironia do universo, Sorkin ganhou o Óscar que lhe estava no destino, infelizmente, e como acontece tantas vezes, quando não o merecia. Quase num insulto honorário ao seu próprio génio, com um dos seus trabalhos mais vulgares. The Social Network (2010) foi um filme tarefeiro, desencantado e inevitável. Um filme para ganhar dinheiro, que alguém tinha de fazer. Um filme sem um pingo de alma, que lhe rendeu um Óscar de secretaria, logo a ele, que nunca precisaria de um. O meu medo em relação a Steve Jobs era, por isso, incontornável. Era que fosse o próximo filme de artifício, sobre uma figura pop da cultura tech, era a ameaça de ser mais um prego sombrio no vulto dum vanguardista. Não foi. Steve Jobs é, na verdade, o grande trabalho de Aaron Sorkin desde o adeus à Ala Oeste da Casa Branca. Isso quer dizer que é muito, muito bom.


Por mais evidentemente suspeito que seja para falar, este é o arquétipo de um filme de argumentista. Um filme em que o guião é a jóia da coroa, aquilo que o enche de vida e o faz pulsar, tão bom que perpassa a óptima câmara e as boas interpretações. Ali, ao fim do primeiro quarto-de-hora, o texto já ganhou. Já nos bateu de frente, dobrou e convenceu, a um ritmo tão electrizante, tanto à imagem do seu autor, que tudo o que temos a fazer é agarrar-nos à cadeira e sobreviver à viagem. Jobs é como um filme de acção, mas em diálogos. Esse sempre foi o mais pleno de todos os super-poderes de Sorkin. As conversas relampejantes, cortadas em monólogos, aceleradas em andamento, de porta em porta, de sala para sala, com o mundo a rumorar à volta, o "walk and talk" e o "smart and funny" que fizeram de West Wing um produto gravosamente profundo e, ainda assim, magnanimamente cool.


Jobs é um filme em três actos, que biografa o Da Vinci dos computadores decantando-o nos bastidores de três das suas apresentações mais emblemáticas - Macintosh, NeXT Black Cube e iMac -, num espaço de 14 anos (1984-1998). E é tão brilhante na forma como no feitio. Falhar uma biografia é, de resto, muito fácil. Ser redundante e desinteressante e não conseguir, afinal, reinventar a roda. Neste caso, o formato do filme foi metade da vitória. Uma moldura inortodoxa, porque imprevisível, capaz de desmanchar criativamente algo que era normal não se saber por onde pegar. Como seria natural, é também o filme de um homem só. Não é lírico, como não era suposto que fosse, nem simpático, nem inspirador, como é parte substancial da obra de Sorkin. É, pelo contrário, provocador e subversivo, impingindo uma personalidade fortíssima, quase limite, à sua figura nevrálgica. Este Steve Jobs é um vulcão que nos hipnotiza pelos seus modos, pela sua energia e pela sua intensidade, e do qual não podemos simplesmente desligar, num análogo síndrome de Estocolmo, que nos faz intolerar toda a sua arrogância e, ainda assim, não conseguir abstrair-nos da sua aura atordoante. É poder em estado puro.


Na sua terceira chamada aos Óscares, depois de Slumdog Millionaire (2008) e 127 Hours (2010), Danny Boyle apresenta-nos o seu trabalho mais grandioso. O britânico tende a ser um realizador que deixa os filmes respirarem bastante pela sua teia de ideias, puxando-se a um segundo plano, alguém que se evidencia mais pelas suas escolhas temáticas, do que pela sua técnica. Como em tudo o resto aqui, porém, o argumento de Sorkin transforma-o para melhor. Pede-lhe atenção e reacção, pede-lhe que esteja à altura e que, qual maratonista-guia, corra com a câmara ao mesmo ritmo de tudo o que lhe escreveram. O resultado é de alto nível e a realização é outro ás do filme, porque de excelência. Toda a cena ressurgida do despedimento de Jobs da Apple, desde a conversa num átrio deserto dum coliseu à memória da sala de reuniões fatídica, a combustão, a escalada, o corte de planos e as aberturas, tudo é material de uma majestade palpável, que eleva o filme a um plano olímpico e lhe dá a altitude dos Óscares.


Uma biografia não se poderia ter feito sem o protagonista, como é óbvio. Fassbender deu o litro e foi essa figura-chave... ainda que este não seja um filme das interpretações. Sou um fã confesso do germano-irlandês, e muito me bati por um Óscar há dois anos (12 Years of Slave), pelo que tenho a consciência tranquila ao dizer que a sua performance é boa para o filme, mas não é assim tão boa para ele. O papel é imaculado, consistente, inerentemente competente em tudo o que lhe poderiam pedir. Tem costas para aguentar o peso, incorpora uma imagem de marca e Sorkin será, hoje, um treinador orgulhoso. Todavia, no final, gabamos o ritmo, o poder e a não linearidade do retrato... mas não temos ali um papel da nossa vida. Infelizmente, faltou aquele momento, aquela "extra mile". Jeff Daniels, que não adoro, cresce com o filme, Kate Winslet, sem demasiado espaço, é equilibrada a tempo inteiro e Michael Stuhlbarg assenta bem, ao passo que Seth Rogen é mau, como sempre, e Katherine Waterston (a ex-namorada) é invisível. O traço mais forte do cast, à parte Fassbender, é a sua filha... representada sucessivamente, e sempre bem, por três actrizes diferentes, dos 5 aos 19 anos. A perturbadíssima relação paternal entre ambos, um terreno querido de Sorkin, acaba por ser o ovo da Páscoa do filme. Não o vemos de imediato, tão a ferros e tão desamorável mas, ao fim e ao cabo, consegue ser tão dolorosamente impactante, e até tragicamente bonito, nos seus diversos laços, até ao diálogo final.


Steve Jobs é evidentemente um dos filmes do ano. Um emocionante regresso à elite de um dos maiores guionistas de sempre, um incinerante retrato de uma das personalidades mais singulares da História Contemporânea, um filme conceptual, poderoso e perfeitamente viciante.

8/10

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

007 Spectre. O filme que ninguém queria fazer


Os Bond de Daniel Craig têm um antes e um depois.

Diz-se isto porventura mais do que era devido mas, em 2006, o que fez Casino Royale foi romper com um paradigma vencedor de 40 anos: o do agente galã por si só, subversor de qualquer narrativa com a mesma facilidade com que virava copos de martini e amassava as mulheres mais bonitas do mundo. Sempre fora por isso que as pessoas seguiam a filmografia do agente dos agentes: pelo glamour, pela catarse despreocupada, pela desconstrução conspirativa sem levar nada demasiado a sério. Casino Royale, realizado por Martin Campbell, e co-escrito pelo trunfo Paul Haggis (argumentista dos dois vencedores de Óscar anteriores, Million Dollar Baby e Crash...), não foi só um filme ambicioso. Foi um marco refundador do que podiam ser os Bond e todo o género espionagem por arrasto, à semelhança do que foram os Batman de Nolan para os super-heróis. Uma porta escancarada para o melhor drama e, com isso, para o quebrar da barreira entre o que era um filme de entretenimento e o que podia ser um filme de elite, "sem género".


Como qualquer operação tamanhamente basilar, nada disto se faz de uma só vez. É por isso que Quantum of Solace, dois anos depois, foi um filme perdido, inócuo e emparedado num propósito que o excedia largamente. Se o atentarmos, porém, como meio para chegar a um fim, a valia está lá. Afinal, é a partir desse desconto de tempo que se constrói o melhor Bond de sempre. Skyfall teve o melhor realizador e a melhor realização. A melhor fotografia, o melhor vilão e a narrativa mais encarnecidamente pessoal. Sam Mendes, o primeiro oscarizado a dirigir a saga, varreu do avesso todas as convenções, John Logan, o reforço de luxo no argumento (Gladiator, The Last Samurai, The Aviator), tornou tudo demasiado fácil. Skyfall, o primeiro Bond a passar a fasquia dos mil milhões, Óscar até de melhor música original, foi afinal, e como se comprovou agora, a medida impossível de suceder.


O lançamento de Spectre ficou marcado por uma série de episódios muito pouco amoráveis, muito alheios àquele rastro cósmico que costuma envolver todo o lançamento Bond numa gigante passadeira vermelha. Desde logo, o aparente enfado de Sam Mendes em repetir a experiência, ele que a recusou em primeira instância e só lá foi com um dedicado convencimento dos seus pares; depois, e muito mais pronunciadamente, o asco do próprio Daniel Craig, que passou a temporada promocional a falar do quanto estava farto da saga e do quanto a queria ver pelas costas. Depois de visto, se há percepção que transpira do filme de uma forma cristalina é essa: ninguém o queria realmente fazer. Spectre é a ressaca de Skyfall. Um filme à força, uma cláusula de contrato, um tarefismo de serviços mínimos. A falta de comprometimento com aquilo, de tudo e de todos, chega a ser desconfortável.


Daniel Craig assina, sem grandes subterfúgios, a sua pior performance no papel. Completamente apagado, como um jogador que vem de uma época de luxo e que já não encontra motivação para começar tudo outra vez. Craig está cansado e é cansativo, está sempre distante (até com as contra-partes femininas) e, desta vez, a rudeza da sua cara e dos seus modos não respira rigorosamente para além disso. Léa Seydoux confirmou, a seu turno, todas as reticências que havia quanto à sua escolha e fica a léguas de deixar qualquer marca, como uma das Bond girls mais transparentes de sempre. O argumento, e novamente com John Logan a bordo, é tão primário que chega a ser constrangedor. Spectre deveria representar, alegadamente e à luz da História, um momento estruturante na linha da acção, com o vilão maior, a Bond girl mais perene e a organização arqui-inimiga por excelência; o que vemos, pelo contrário, é uma amálgama de meias-ideias todas superficiais e miseravelmente mal concretizadas, coladas umas às outras com a mesma coesão de quem empilharia fascículos de Ian Fleming num canto da sala. A escala de subrendimento, porém, ainda piora.


Depois do maior showdown da série, Sam Mendes entrega porventura o filme mais modesto da sua carreira, um que, quanto muito, parece ter revisto por alto, enquanto fazia outras coisas a sério. Nem deu para disfarçar. Visual e cenograficamente é sempre pobre, não havendo uma única cena que fique na memória. As sequências de acção, por sua vez, só fizeram pior a emenda do que o soneto, de cada vez que tentaram "arriscar". Sobra, por fim, o maior de todos os pecados. Não teria existido rigorosamente ninguém mais capaz à face da Terra para interpretar a némesis de Bond, o notório Ernst Stavro Blofel. Christoph Waltz era o homem certo no lugar certo, uma felicidade inevitável à espera de acontecer. O seu desaproveitamento quase integral, quase insultuoso, será lembrado como um indesculpável falhanço histórico. Escreveram-lhe um papel minúsculo e escreveram-no a correr. Escreveram-no sem um único traço, um único twist, um único golpe de sorte. O deserto de cena no laboratório do deserto de Tânger, aquele espectacular punhado de nada, resume tudo isso de forma muito mais cruel do que eu o poderia fazer.


Spectre é um filme quanto muito suficiente para consumo, mau se entrarmos em qualquer parâmetro de comparação. Vale pela marca, pela boa notícia que é Andrew Scott (o excepcional Moriarty de Sherlock) e pela última frame de Monica Bellucci, um sopro divino que há muito merecia inscrever este currículo. De resto, é um filme inconsequente, pouco pensado e pior executado, que faria recuar a franchise pelo menos uma década, em termos de ideário. Faria, se fosse para levar a sério. Não é.

5/10