domingo, 17 de outubro de 2021

Tá na Hora


A minha geração não se apaixonou pelo Marítimo. A minha geração apaixonou-se por uma ideia do que tinha sido, e do que podia ser, o Club Sport Marítimo. Em retrospectiva, 22 anos depois da primeira vez em que entrei nos Barreiros, é cruel a realização de que quase tudo o que sonhamos, foi um sonho adiado. Os que vieram antes de nós, viveram muitas coisas: nos anos 20, fomos Campeões de Portugal; nos anos 50, fizemos as grandes campanhas além-mar; nos anos 70, chegámos à 1ª Divisão; nos anos 90, chegámos à Europa. Os que vieram antes de nós, viveram muitas coisas; a nós, tocou-nos sobreviver a coisas demais, e não me parece que em circunstâncias piores do que as dos fundadores, ou de todos aqueles que dobraram os nossos marcos históricos.

Na próxima sexta-feira, dia 22 de outubro, os sócios do Marítimo serão chamados a escolher, pela primeira vez num quarto de século, entre duas visões distintas para o futuro do clube. Todos terão as suas razões e motivações para votar, e é fundamental que o façam. Não me parece, contudo, que nenhum tenha como ignorar que o atual projecto desportivo do clube está completamente esgotado. Isso pode não ser suficiente para votar na mudança, mas essa será, em todos os casos, uma escolha perfeitamente consciente, e de acordo com a forma como cada maritimista olha para o seu clube e projecta o futuro do seu clube.

Quem aprecia o Marítimo de serviços mínimos, completamente esvaziado de ambição, mística e identidade, não só divorciado dos adeptos, como confortável com essa distância, não só gerido como uma empresa sem alma, mas propositadamente gerido para decapitar terceiros e sanear expectativas, está no seu direito. Aos outros, aos que se apaixonaram pela ideia de um clube feito de carne, osso e esperança, para o qual não havia apenas limitações, mas infinitas possibilidades, compete-nos, uma vez mais, estar à altura da nossa História, e ser o que o Marítimo foi a vida toda: não o que nos dizem que podemos ser, mas a transcendência daquelas que sempre foram as nossas circunstâncias.

Uma das primeiras imagens que tenho do Rui Fontes, em cassete, é vê-lo em comoção nos Barreiros, na primeira vez que nos qualificámos para a Taça UEFA. Que loucura, que euforia pura, que feito extraordinário. Que alegria. Já não somos esse Marítimo, mas tenho a certeza de que muitos, como eu, gostavam de ser. Eu gostava de começar uma época, ou duas ou três seguidas, sem que ninguém me dissesse o que é que não seremos capazes de fazer. Eu gostava de ir a jogo, em casa e fora, sem estar preparado para perder ou empatar, e gostava de perceber, por uma vez, quais os valores da minha equipa em campo ou o que raio queremos ser. Isto é tão básico e, de perfil aleatório em perfil aleatório, dos treinadores aos jogadores, não sabemos há tanto tempo. Eu gostava de olhar para a tribuna, e ver um Presidente que acredita como nós, que festeja como nós e que se afecta como nós. 

Alguns poderão dizer que isso não vale nada, que gestão não se compadece com militância e emoção, que é preciso ter os pés enterrados na terra, património e garantias bancárias. Eu, pessoalmente, nunca vi património e garantias bancárias a encher estádios de gente e a ganhar jogos de futebol. Se o Marítimo tivesse sido, ao longo da sua História, uma construtora civil ou um banco, nunca teria sido o Marítimo. Sem gente, sem a paixão e a ilusão das pessoas, não temos, nem nunca teríamos tido razão de ser.

O Marítimo precisa de propósito, precisa de objectivos, precisa de uma filosofia consentânea com a nossa História e a nossa identidade, precisa de voltar a querer ser alguma coisa para além de uma SAD tecnocrata, que serve de entreposto a uma mercadoria chamada jogadores. Um clube de futebol não é uma sociedade anónima desportiva, um clube de futebol é uma comunhão dos sonhos, das vontades e das ambições de pessoas reais, e se não for isso, não é coisa nenhuma.

Ninguém quer ser mediano e sofrível a vida toda. O Marítimo tem de voltar a ser Domingo no Caldeirão com um sorriso na cara, a entrar e sair orgulhoso, porque ganhamos e perdemos com as nossas ideias. O Marítimo é sofrer, mas precisa de voltar a sofrer com propósito, acreditando que, por mais conscientes que estejamos das nossas limitações individuais, regionais e institucionais, juntos não há superação que não seja possível. Sozinhos não somos grandes, mas juntos, o Marítimo pode ser.

Aconteça o que acontecer na próxima sexta-feira, o futuro do Marítimo depende de mudar muita coisa. O clube precisa de uma estrutura desportiva que não seja um devaneio de poder unipessoal, precisa de muito mais competência, critério e profissionalização, precisa de gente que goste de futebol e que perceba de futebol, gente que goste do Marítimo, mas que, acima de tudo, perceba o que é o Marítimo. Podemos ter todos a certeza de uma coisa: não é possível ter resultados diferentes, se continuarmos a fazer tudo igual. E que não nos equivoquemos: a atual Direção até poderá voltar a ganhar, mas a mudança é irreversível. Neste momento, enquanto prosseguimos a via sacra do 4º ano seguido de humilhações a jogar para não descer, a única coisa que ainda podemos decidir, é como, e em que divisão, queremos que essa mudança aconteça.

As eleições da próxima sexta-feira vão confrontar duas propostas muito diferentes, mas vão sobretudo representar uma decisão histórica entre aquilo que nos conformamos a ser, e aquilo que já fomos e que podemos voltar a ser. Claro que não é fácil e que nada mudará sem dificuldades, como num passe de mágica; mas o problema do Marítimo é que deixámos de ser muitos a sonhar aos poucos, para ser cada vez menos a morrer aos poucos.

Quando surgiu a primeira notícia de que o Rui Fontes poderia regressar, enviei-a por whatsapp ao meu pai de madrugada. Quando acordei na manhã seguinte, a resposta era: "este é maritimista". É um reconhecimento tão simples, como sagrado para o meu pai, que ele reserva de forma quase marcial para aqueles que lhe merecem o mais alto respeito. Não me disse se o Rui era um bom gestor, ou um bom empresário, não me falou do dinheiro do Rui ou dos contactos do Rui, não me disse se o Rui é que recruta os jogadores, ou se dá a táctica ao treinador. Disse-me que o Rui é maritimista, e isso basta-me. Na próxima sexta-feira, votarei pela primeira vez na minha vida numas eleições do Club Sport Marítimo e depositarei os meus 20 votos no Rui Fontes, consciente de que ele já cometeu erros, e que voltará a cometê-los, mas com a certeza de que nunca precisamos tanto de ser maritimistas em primeiro lugar, como agora. 

domingo, 25 de abril de 2021

Óscares 2021 - Preview


Top 10 do Ano

1. Nomadland

2. Sound of Metal

3. Tenet

4. Promising Young Woman

5. Da 5 Bloods

6. Another Round

7. Pieces of a Woman

8. Mank

9. News of the World

10. One Night in Miami


Os melhores

FILME: Nomadland

REALIZADOR: Chloé Zhao (Nomadland)

ACTOR: Riz Ahmed (The Sound of Metal)

ACTRIZ: Vanessa Kirby (Pieces of a Woman)

SECUNDÁRIO: Paul Raci (The Sound of Metal)

SECUNDÁRIA: Glenn Close (Hillbilly Elegy)

ARGUMENTO ORIGINAL: Promising Young Woman

ARGUMENTO ADAPTADO: Nomadland


As apostas

FILME: Nomadland

REALIZADOR: Chloé Zhao (Nomadland)

ACTOR: Chadwick Boseman (Ma Rainey's Black Bottom)

ACTRIZ: Viola Davis (Ma Rainey’s Black Bottom)

SECUNDÁRIO: Daniel Kaluuya (Judas and the Black Messiah)

SECUNDÁRIA: Youn Yuh-jung (Minari)

ARGUMENTO ORIGINAL: Promising Young Woman

ARGUMENTO ADAPTADO: Nomadland

sábado, 20 de fevereiro de 2021

O Marítimo que esta geração nunca foi


Nunca vi o Marítimo descer. Espero sinceramente que não seja preciso descer de divisão para que se mude o que é preciso mudar.

Escrevi há três meses que, pela terceira época consecutiva, íamos jogar para não descer e, pela terceira época consecutiva, não vamos apenas vaguear no ocaso humilhante da segunda metade da tabela; vamos literalmente jogar pela vida enquanto ela sobrar, com o estádio vazio, sem rumo e com o peso da inevitabilidade às costas, maior a cada ano que passa. O povo diz que tantas vezes vai o cântaro à fonte, que um dia já não volta, e esta vertigem de morte que se apoderou do clube começa a ser demasiado abissal para nos tentarmos convencer do contrário. No fundo, é apenas lógica: não nos podemos colocar sempre numa situação-limite, e achar que vai sempre haver um milagre; não podemos fazer sempre a mesma coisa, e esperar resultados diferentes. Nos últimos 20 anos, desceram de divisão o Guimarães, o Boavista, o Setúbal, a Académica, o Belenenses e o Nacional, e na verdade, é óbvio que já nos podia ter acontecido nas últimas duas épocas, que pode acontecer este ano, e que acontecerá inevitavelmente em breve, se continuarmos assim.

Às vezes, gostava simplesmente de acreditar que o problema é a bola que vai ao VAR e entra, e a bola que vai ao VAR e sai. Que o futebol é só o universo a jogar aos dados, que uns dias se ganha e uns dias se perde, que o jogo é sorte e azar, e que no fim vai correr tudo bem. É que pelo Marítimo, já sofri a vida toda. Costumo dizer que ser adepto do Marítimo nos prepara para quase tudo, porque, tal como na vida, há menos finais felizes do que dos outros. Ser do Marítimo dá-nos estofo para lidar com o desterro das maiores derrotas, e dá-nos carácter para ficar felizes com a beleza das pequenas vitórias, e aprendemos todos a viver com isso, mesmo com as prioridades que se sacrificam pelo caminho, seja tempo com quem gostamos, seja qualidade de vida a fazer algo mais saudável. Seja como for, ser do Marítimo é o maior orgulho da minha vida. Vou ser do Marítimo até morrer, aconteça o que acontecer, e até ao fim do mundo, onde quer que estejamos. Portanto, o problema não é sofrer; é a absoluta falta de razões para continuar a sofrer assim.

Este ano, é mais real do que nunca a possibilidade do Marítimo descer, e perturba-me que tenha sido preciso chegar a isto, quando os sinais foram tantos e tão evidentes. E perturba-me ainda mais que, se calhar, nem esta situação seja suficiente para que toda a gente perceba a necessidade de mudar. Este ano, é mais real do que nunca a possibilidade do Marítimo descer, e não é porque estes jogadores surpreendentemente estão em sub-rendimento ou não correm em campo; não é porque este treinador, ou o anterior, surpreendentemente não conseguiram dar conta do recado; na verdade, não há nada de surpreendente, ou sequer de misterioso, sobre o estado atual do Marítimo. Surpreendente é não ter acontecido nada ainda mais grave, ainda mais cedo.

O atual projecto desportivo do Marítimo falhou, porque já não há projecto nenhum há muito tempo. Quando o atual Presidente entrou em funções, era preciso salvar as contas do clube. Depois, a prioridade foram as infraestruturas. Na verdade, e não querendo ser ingrato, o futebol foi sempre um projecto desportivo adiado no Marítimo. Normalmente, a sobrevivência não é um assunto linear, pelo que me parece que todo o maritimismo aceitou que tínhamos de saber esperar. Não sei, na verdade, se haverá outra base associativa tão significativa como a nossa, e tão extraordinariamente paciente. No último quarto de século, tivemos consolidação financeira, consolidação estrutural e alguns bons resultados, mas sobrevivemos sobretudo à conta de migalhas desportivas, enquanto vimos, por exemplo, o Braga tornar-se no quarto grande, o Guimarães ganhar uma taça, o Paços de Ferreira chegar à Liga dos Campeões e o Nacional fazer dois quartos lugares.

A tudo subsistimos, firmemente agarrados à convicção de que a vida é difícil, e de que talvez um dia chegasse a nossa vez, mesmo que as prioridades dissessem sempre o contrário, ao vender urgentemente os melhores jogadores, contratar futebolistas às centenas e sem critério, na esperança de lucrar com a economia de escala, como noutra empresa qualquer, e rodar perfis de treinadores de forma completamente aleatória, como se alta competição fosse a roleta russa. O problema do Marítimo não é evidentemente a bola que bate no poste e sai, nem o facto de 99% dos profissionais que cá chegam não cumprirem as "expectativas", porque se calhar temos azar; o problema do Marítimo é que quem tem a responsabilidade de decidir, há muito descarnou o clube, porque é mais fácil e mais rentável gerir uma empresa de retalho, onde só interessa cumprir os mínimos, não dar prejuízo e sobreviver. O problema do Marítimo é que estamos fartos de sobreviver, porque sobreviver não é vida para ninguém.

A este Marítimo falta quase tudo. Falta visão, ambição, projecto e identidade. Falta brio, coerência, humildade e a mais elementar noção para reconhecer que aquilo que temos vivido, não é nada num clube de futebol, e que é preciso mudar e saber porquê. Como se isso não bastasse, falta até o discernimento para saber dar o valor ao mérito, quando ele é mais evidente. De vez em quando acontecem-nos fenómenos como o Daniel Ramos, um homem sozinho que fingiu que era um projecto desportivo, e que inventou dois anos de esperança. Fizemos 97 pontos nessas duas épocas, as últimas duas em que lutámos pela Europa. Chegámos lá uma vez, e ficámos mais de um ano sem perder em casa. O Presidente despediu-o, porque não podia ser o treinador a mandar no futebol do Marítimo. Desde a saída do Daniel, tivemos 6 treinadores e, em duas épocas e meia, 6 treinadores conseguiram fazer menos pontos juntos do que ele sozinho. É este o cúmulo em que vive o Marítimo há muito tempo.

Ao fim de 35 anos, o abismo da descida está iminente, e este é o derradeiro momento para lembrar que nunca ninguém esteve, nem nunca ninguém estará acima do Club Sport Marítimo. Há, por isso, duas coisas que para mim são fundamentais neste momento. A primeira é reconhecer que a equipa precisa de todos nós mais do que nunca, porque esta será uma luta brutalmente dura até final da época, com tudo em jogo. Espero que ninguém se afaste do Marítimo nesta altura porque não se revê na liderança, porque isto não é sobre nós, é sobre algo maior do que nós. Hoje e sempre, mas especialmente até ao final da época, não podemos desistir do Marítimo, e o clube só passará por isto se ninguém ficar indiferente.

Finda esta época, e aconteça o que acontecer, a atual Direção não tem condições para continuar. O que espero de quem está no poder há 25 anos, perante este momento determinante, não é negação, absolutismo e amargura, não é dizer que quem assina manda, nem chamar a polícia para intimidar adeptos, muito menos intitular-se donos da História e alimentar a narrativa de que não existem alternativas.  Neste momento, o que não existe no Marítimo é futuro. Se quem está no poder ainda quer honrar o que de bom ficou para trás, só lhe resta não ser um obstáculo, mas uma solução, pelo bem do clube.

O Club Sport Marítimo é demasiado grande para não ter alternativas. Esta era do Marítimo acabou e será a História a julgá-la. Agora é preciso dar lugar a outros, é preciso fazer uma transição responsável, e fazer a ponte entre o passado e o futuro. Acredito que o destino do Marítimo depende de todos, inclusive dos que ainda lá estão a mandar, e que a atual Direção deve ter um papel importante a desempenhar, dignificando o próximo capítulo na vida do clube. Tem é de perceber imediatamente, com seriedade e compostura, que uma coisa é chegar ao fim da linha, e outra é levar o clube consigo.

Quando a História julgar este quarto de século, começará pelo fim. Quem ainda não o percebeu, vai percebê-lo mais cedo ou mais tarde. Os jogadores, os treinadores, os presidentes e até os adeptos passam, mas o Marítimo fica. Só o Marítimo é que nunca acaba. Não sei se teremos de começar do zero, mas eu ainda gostava de ser o Marítimo das grandes campanhas, o Marítimo da alegria, da pureza e da mobilização popular única, o Marítimo da altivez, da ambição e dos sonhos da nossa gente, o Maior das Ilhas, a bandeira da Madeira atlântica e ultraperiférica pelo país e pelo mundo, o Marítimo temido, o Marítimo do dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio, como o fizemos tantas vezes ao longo destes 111 anos.

Eu ainda gostava de ser o Marítimo que o meu pai viu por entre a multidão no tartan dos Barreiros e para o qual não havia limites, só infinitas possibilidades. O Marítimo que se fez grande na Liga, ou o primeiro Marítimo que foi à Europa e ao Jamor. Está na hora de sermos o Marítimo que esta geração nunca foi. Está na hora.