A minha geração não se apaixonou pelo Marítimo. A minha geração apaixonou-se por uma ideia do que tinha sido, e do que podia ser, o Club Sport Marítimo. Em retrospectiva, 22 anos depois da primeira vez em que entrei nos Barreiros, é cruel a realização de que quase tudo o que sonhamos, foi um sonho adiado. Os que vieram antes de nós, viveram muitas coisas: nos anos 20, fomos Campeões de Portugal; nos anos 50, fizemos as grandes campanhas além-mar; nos anos 70, chegámos à 1ª Divisão; nos anos 90, chegámos à Europa. Os que vieram antes de nós, viveram muitas coisas; a nós, tocou-nos sobreviver a coisas demais, e não me parece que em circunstâncias piores do que as dos fundadores, ou de todos aqueles que dobraram os nossos marcos históricos.
Na próxima sexta-feira, dia 22 de outubro, os sócios do Marítimo serão chamados a escolher, pela primeira vez num quarto de século, entre duas visões distintas para o futuro do clube. Todos terão as suas razões e motivações para votar, e é fundamental que o façam. Não me parece, contudo, que nenhum tenha como ignorar que o atual projecto desportivo do clube está completamente esgotado. Isso pode não ser suficiente para votar na mudança, mas essa será, em todos os casos, uma escolha perfeitamente consciente, e de acordo com a forma como cada maritimista olha para o seu clube e projecta o futuro do seu clube.
Quem aprecia o Marítimo de serviços mínimos, completamente esvaziado de ambição, mística e identidade, não só divorciado dos adeptos, como confortável com essa distância, não só gerido como uma empresa sem alma, mas propositadamente gerido para decapitar terceiros e sanear expectativas, está no seu direito. Aos outros, aos que se apaixonaram pela ideia de um clube feito de carne, osso e esperança, para o qual não havia apenas limitações, mas infinitas possibilidades, compete-nos, uma vez mais, estar à altura da nossa História, e ser o que o Marítimo foi a vida toda: não o que nos dizem que podemos ser, mas a transcendência daquelas que sempre foram as nossas circunstâncias.
Uma das primeiras imagens que tenho do Rui Fontes, em cassete, é vê-lo em comoção nos Barreiros, na primeira vez que nos qualificámos para a Taça UEFA. Que loucura, que euforia pura, que feito extraordinário. Que alegria. Já não somos esse Marítimo, mas tenho a certeza de que muitos, como eu, gostavam de ser. Eu gostava de começar uma época, ou duas ou três seguidas, sem que ninguém me dissesse o que é que não seremos capazes de fazer. Eu gostava de ir a jogo, em casa e fora, sem estar preparado para perder ou empatar, e gostava de perceber, por uma vez, quais os valores da minha equipa em campo ou o que raio queremos ser. Isto é tão básico e, de perfil aleatório em perfil aleatório, dos treinadores aos jogadores, não sabemos há tanto tempo. Eu gostava de olhar para a tribuna, e ver um Presidente que acredita como nós, que festeja como nós e que se afecta como nós.
Alguns poderão dizer que isso não vale nada, que gestão não se compadece com militância e emoção, que é preciso ter os pés enterrados na terra, património e garantias bancárias. Eu, pessoalmente, nunca vi património e garantias bancárias a encher estádios de gente e a ganhar jogos de futebol. Se o Marítimo tivesse sido, ao longo da sua História, uma construtora civil ou um banco, nunca teria sido o Marítimo. Sem gente, sem a paixão e a ilusão das pessoas, não temos, nem nunca teríamos tido razão de ser.
O Marítimo precisa de propósito, precisa de objectivos, precisa de uma filosofia consentânea com a nossa História e a nossa identidade, precisa de voltar a querer ser alguma coisa para além de uma SAD tecnocrata, que serve de entreposto a uma mercadoria chamada jogadores. Um clube de futebol não é uma sociedade anónima desportiva, um clube de futebol é uma comunhão dos sonhos, das vontades e das ambições de pessoas reais, e se não for isso, não é coisa nenhuma.
Ninguém quer ser mediano e sofrível a vida toda. O Marítimo tem de voltar a ser Domingo no Caldeirão com um sorriso na cara, a entrar e sair orgulhoso, porque ganhamos e perdemos com as nossas ideias. O Marítimo é sofrer, mas precisa de voltar a sofrer com propósito, acreditando que, por mais conscientes que estejamos das nossas limitações individuais, regionais e institucionais, juntos não há superação que não seja possível. Sozinhos não somos grandes, mas juntos, o Marítimo pode ser.
Aconteça o que acontecer na próxima sexta-feira, o futuro do Marítimo depende de mudar muita coisa. O clube precisa de uma estrutura desportiva que não seja um devaneio de poder unipessoal, precisa de muito mais competência, critério e profissionalização, precisa de gente que goste de futebol e que perceba de futebol, gente que goste do Marítimo, mas que, acima de tudo, perceba o que é o Marítimo. Podemos ter todos a certeza de uma coisa: não é possível ter resultados diferentes, se continuarmos a fazer tudo igual. E que não nos equivoquemos: a atual Direção até poderá voltar a ganhar, mas a mudança é irreversível. Neste momento, enquanto prosseguimos a via sacra do 4º ano seguido de humilhações a jogar para não descer, a única coisa que ainda podemos decidir, é como, e em que divisão, queremos que essa mudança aconteça.
As eleições da próxima sexta-feira vão confrontar duas propostas muito diferentes, mas vão sobretudo representar uma decisão histórica entre aquilo que nos conformamos a ser, e aquilo que já fomos e que podemos voltar a ser. Claro que não é fácil e que nada mudará sem dificuldades, como num passe de mágica; mas o problema do Marítimo é que deixámos de ser muitos a sonhar aos poucos, para ser cada vez menos a morrer aos poucos.
Quando surgiu a primeira notícia de que o Rui Fontes poderia regressar, enviei-a por whatsapp ao meu pai de madrugada. Quando acordei na manhã seguinte, a resposta era: "este é maritimista". É um reconhecimento tão simples, como sagrado para o meu pai, que ele reserva de forma quase marcial para aqueles que lhe merecem o mais alto respeito. Não me disse se o Rui era um bom gestor, ou um bom empresário, não me falou do dinheiro do Rui ou dos contactos do Rui, não me disse se o Rui é que recruta os jogadores, ou se dá a táctica ao treinador. Disse-me que o Rui é maritimista, e isso basta-me. Na próxima sexta-feira, votarei pela primeira vez na minha vida numas eleições do Club Sport Marítimo e depositarei os meus 20 votos no Rui Fontes, consciente de que ele já cometeu erros, e que voltará a cometê-los, mas com a certeza de que nunca precisamos tanto de ser maritimistas em primeiro lugar, como agora.