Vi dezenas de milhares de minutos de Marítimo nos Barreiros ao longo dos últimos 25 anos. Ganhámos às vezes, perdemos muitas. Gosto de dizer que fui muito feliz com pequenas vitórias e que o resto foi carácter, e quem lá cresceu sabe o que isso é. Um maritimista aprende cedo o que são semanas ganhas e estragadas por causa de 90 minutos de futebol. Esquecer é um dom de outros, quem dera ir à bola e esquecer. O Marítimo é outra coisa. Um maritimista não se esquece, porque o Marítimo sai-nos de dentro. O maritimismo é uma forma de estar, de acreditar e de ser representado. É o passado, o presente e o futuro de gente orgulhosa do seu lugar, das suas superações e dos seus sonhos. É saber o que somos, aonde pertencemos e o longe que podemos chegar juntos. Imaginem a sorte que isso é. Quando joga o Marítimo, jogo eu, o meu pai, os meus amigos, a minha família, a minha rua, a minha cidade, a minha ilha, imaginem o que era ir a jogo e esquecer a seguir? Imaginem ir a jogo por eles, como se isso não representasse tudo, sempre? Há muitos clubes que são só clubes. O Marítimo é uma ideia. É a gente e o lugar que a tornou possível, contra a extraordinária maior parte das probabilidades, em 700km2 de terra a flutuar num oceano inteiro. Onde quer que esteja um madeirense, se estiver o sonho, também está o Marítimo.
Já nasci sócio desta ideia, tratar disso no próprio dia foi só uma formalidade, porque código genético não é coisa que se assine numa folha. E tenho bilhete de época desde o meu 9° aniversário, como se tem uma casa. Sinto que já vivi muitas vidas nos Barreiros, porque o Marítimo é como a pele, vai connosco, faz parte de nós. Vivi ali vidas minhas, do clube, da nossa gente, da Madeira e da nossa História. Já vivi muitas vidas nos Barreiros, mas nunca pensei viver uma assim. A última década preparou-nos para isso, é verdade, mas nada nos prepara para um jogo como o de amanhã. Nada nos pode nunca preparar para a possibilidade de o Marítimo poder não ser "clube de 1a Divisão", como foi desde o dia em que nasci. Já vivi muitas vidas nos Barreiros e, quis o destino, amanhã não vou conseguir lá estar. O destino prega-nos sempre umas partidas e, desta vez, vai-me desencontrar de um jogo onde eu nunca quereria ter estado. Isso lá terá a sua ironia poética. Nestes 25 anos, houve muita coisa que nos foi arrancada das entranhas, mas nunca jogámos assim pela vida, e não faço ideia se é mais suportável sofrer de perto ou sofrer de longe. Sei que amanhã queria, afinal, lá estar e não vou poder. Passei uns dias absorto nessa ideia, até ao meu pai ter-me dito "isto não é sobre nós. Não interessa se vamos ou não vamos estar lá, não interessa quem vai estar lá. O que interessa é o Marítimo ganhar."
Não é sobre nós, de facto. O que interessa é o Marítimo ganhar. Amanhã, nos Barreiros, vão estar 11 em campo e 11 mil nas bancadas, mas fora dos Barreiros serão incontáveis os milhares de onzes que vão estar em casa, nos bares, nas ruas, no Funchal e pelos caminhos da estrada regional, do Tourigalo ou do Barreirense até ao outro lado do mundo, a torcer para que corra bem. E saber a quantidade de pessoas que vai ficar feliz se correr, enche-me a alma. Essa esperança incondicional no Club Sport Marítimo, num ano em que fizemos tudo mal, num ano em que merecemos estar onde estamos, num ano em que o mais lógico seria cair, a pureza dessa esperança é a razão de ser da nossa enormidade, que terá amanhã a acreditar em si desde um miúdo funchalense de gema até um empresário na África do Sul, desde um agricultor nos Canhas até uma avó na Venezuela, desde um pescador em Câmara de Lobos até uma médica no Reino Unido, desde um gerente na costa norte, até um investigador na Austrália. Podemos ter falhado tudo este ano, mas nunca vamos falhar a esperança de que, no fim, ainda vai correr bem. De que no fim, ainda vai dar Marítimo. Em 25 anos de Barreiros, mesmo nos piores dias, mesmo quando estivemos mais desiludidos, tristes e frustrados, mesmo quando queríamos nem acreditar, sempre foi mais forte do que nós. O Marítimo é e sempre foi mais forte do que nós.
Se calhar não merecemos ficar, fizemos tudo para não ficar e, ainda assim, amanhã a esperança será uma vez mais tão grande como nos dias maiores. Amanhã, onde quer que estejam, acreditem. O que interessa é o Marítimo ganhar.