quinta-feira, 28 de maio de 2015

Até amanhã, camaradas


Vi o Marítimo ao vivo pela primeira vez no dia 20 de Setembro de 1999. Lembro-me assim mesmo, como se fosse uma data de casamento. Não sei se é comum lembrar-se com tamanha exactidão do dia em que vimos o nosso clube pela primeira vez, mas até esse meu amor à primeira vista estava meio que previsto: tinha 9 anos feitos há um mês, de vida e de sócio, e aquela era a promessa contada do meu pai, a minha assunção na mais sagrada de todas as pias baptismais: o Caldeirão. Lembro-me dessa equipa com uma devoção gutural, qual panteão de heróis como não se fez antes nem se fez depois, craques cujas vultos estarei sempre condenado a lembrar numa medida inevitavelmente ingrata para toda a concorrência, que nunca os poderá realmente igualar.

Suponho que seja difícil fazer entender a um miúdo, na ingenuidade encantada do primeiro dia, que o futebol é, logo ali, muito mais do que futebol. Que as probabilidades não estão a nosso favor e que a realização desportiva se joga numa fina linha de equilibrismo, que perpassa, na maior parte da vida, o sofrimento, a fé e um amor incondicional. Que, pelo menos no mundo real, no nosso, as vitórias são poucas, mas que sabem muito mais por causa disso, por sabermos tudo o que elas nos custaram a ganhar. E que a vida, como o futebol, é muito mais especial assim. Se nunca nos acomodarmos nem acostumarmos, se nunca deixarmos de dar o valor, se mantivermos as ganas e a fome, no fundo, se conservarmos o privilégio de poder ficar sempre felizes como na primeira vez. Que o clubismo, como o amor, só pode ser realmente maior se jamais precisar de algo em troca. Se percebermos, como escreveu o Esteves Cardoso, que poder amar é o maior privilégio que se pode ter, a maior sorte, a única razão em si própria. Naquele dia, contudo, eu ia para ganhar, como é evidente. Confiante de que isso não só era possível, como provável. Como se alguém mo devesse e não pudesse ter a coragem de me deixar ficar mal. Nem poderia compreender de outra maneira.

Esse primordial jogo da época era nada menos do que um Marítimo-Porto, nada menos do que o Porto tetracampeão nacional que viria a imortalizar, no fim desse ano, Fernando Santos como o “Engenheiro do Penta”. Era um Marítimo-Porto especial por várias razões que, na altura, me ultrapassavam, uma das quais, por exemplo, ser a reedição do último jogo da temporada anterior, um profético 3-2 que nos valera a 3.ª qualificação europeia. A galvanização sentia-se grande, mas a onerosa máquina multicampeã tratou rapidamente de chamar-nos à realidade. Um tal de Mário Jardel marcou o primeiro dos humildes 36 golos que assinaria até à Primavera seguinte e deixou-nos logo ali, num mísero início de jogo, desferidos da sentença.

Lembro-me distintamente de uma infinidade de coisas dessa tarde. Dos jogadores, todos, do Van der Straeten ao Alex, do chão de calçada redonda e antiga, pejado de amendoins, das cadeiras azul e amarelas devoradas pelo sol, da curva acolhedora que fazia aquela Lateral Norte onde fui tão feliz, do cartão ‘Estádio Cheio’, das cervejas na mão quando ainda se podia e do mar ao fundo no Peão, do rumor e dos tambores, do meu primeiro cachecol da Sailev e da curiosidade de olhar isso tudo desde aquele palmo e meio. Houve, no entanto, uma imagem maior do que todo o resto, que eu continuo a ver como se fosse hoje e que me marcará para o resto da minha vida, dentro e fora do futebol. O momento mais importante do meu primeiro jogo nos Barreiros, do meu primeiro Marítimo, não foi a bancada, não foi um jogador, um golo, uma claque ou, sequer, esse resultado final. Foi estar, em cima do minuto 90, nas nossas velhinhas grades junto ao tartan, com o tempo a morrer-nos nas mãos, condenados, a olhar mais para o meu pai do que para o relvado. À espera de esperança. Ele segurava-me pela mão mas, todavia, à entrada desses pequenos minutos de descontos, nunca olhou para mim. Foi então que me enchi de coragem e perguntei, afinal, se íamos perder. Ele continuou a olhar em frente, imbuído da fé dos Primeiros Homens, com a única honestidade que o acompanhou toda a vida, com o mesmo olhar dedicado que o vi repetir dezenas de milhar de vezes até hoje, e disse-me, apenas, “ainda vamos conseguir”.


Perdemos esse jogo, como perdemos muitos outros jogos depois. Mas tudo o que sei sobre o Marítimo reside, até hoje, nessa única frase. “Ainda vamos conseguir”. Aconteça o que acontecer, ninguém vai nunca acreditar mais do que nós. “Ainda vamos conseguir”. Não nascemos favoritos e nunca seremos favoritos. Mas o futebol, como a vida, é muito mais do que um jogo de probabilidades. E o que o universo nos tira com uma mão, empresta-nos sempre com a outra. Os predicados com que não nascemos, somos nós que os fazemos. E essa é uma condição impagável, muito para lá do que nos fazem crer. Porque dá carácter, porque força a descobrir-se a si próprio. Porque faz-nos valorizar tudo o que é realmente importante e, aquilo que é realmente importante, não é passível de medir, seja em palmarés, mediatismo ou em vanglória. Não seres favorito só quer dizer que vais ter de trabalhar um bocado mais. Que vais ter de querer um bocado mais. Que vais ter de acreditar um bocado mais. E só na adversidade é que temos de acreditar nalguma coisa. Só na adversidade é que descobrimos em que é que acreditamos. Quando, à tua volta, percebes que precisam de ti para continuar, que a tua família não tem preço, que todos somos poucos e que, por isso, não temos jamais o direito de vacilar, é quando nos sentimos mais vivos. E, por isso, vivemos com mais sentido. Ser campeão é detalhe. A jornada é a única recompensa.

Até hoje, não há um jogo do Marítimo, seja em que terra for, com que adversário for, com que desvantagem for, em que eu não acredite, com toda a minha alma, que “ainda vamos conseguir”. Essa convicção é um dos maiores privilégios da minha vida. Toda a gente gosta do seu clube. Uns gostam mais. Alguns amam. Não sei quantos podem dizer que se orgulham. Porque o orgulho nasce necessariamente daquilo que estamos dispostos a sacrificar. Só se pode ter orgulho quando nos sai da pele, quando estamos dispostos a cair, mas a nunca desistir. Não sei qual é a gravidade com que se escrevem os hinos dos clubes ou se há, sequer, essa ambição de decantar-lhes a essência quando se o faz. O nosso, porém, ao buscar-nos as qualidades, fala, em particular, do orgulho e da altivez. Não poderia nunca ter sido mais claro. Não é que eu goste do Marítimo; ser do Marítimo é que é do que mais honestamente me posso orgulhar na vida.


Nesta perversão de probabilidades, a Taça de Portugal sempre foi um dos nirvanas do maritimismo. Não sei se havemos de ser campeões alguma vez, mas a vida não tem de ser uma liga de 34 jornadas, calculada a sangue frio, geneticamente reservada a uma elite particular. A Taça sempre foi o nosso escape, o nosso carinho mal escondido, conscientes da Festa e daquele coração imenso que a torna na única arena realmente democrática. Num dado dia, e mesmo que só nesse dado dia, todos podem ganhar a todos, e isso é quanto baste. Essa vitória é o suficiente para ser feliz, para mudar o destino, para fugir em frente. As provas a eliminar têm esse ADN especial de, se não matematicamente meritocratas, apelarem à transcendência que é o traço mais notável da própria condição humana. Nesses jogos, somos livres. Nesses jogos, somos sempre iguais.

A primeira vez que chorei com o Marítimo foi numa noite de Taça. Estádio do Bessa, 31 de Março de 2001. O Boavistão futuro-campeão-nacional prestava-se a martirizar com ambas as mãos um David verde e vermelho que, no gelo da noite do Porto, olhava para quem perdera 2 vezes em 8 meses com pouco mais do que o coração e a esperança derramados nas cores da própria camisola. A experiência foi tanto mais abissal porque não vi o jogo. Confiei na rádio, no futebol visto com os olhos dos outros, lido com a voz dos outros, especulado em cada silêncio, crido na escuridão. Esse Boavista-Marítimo foi um massacre bíblico. Estou convencido, até hoje, de que durou horas e, pior, sei o quanto pareceu sempre inevitável. Não sei se outra meia-final, jogada em casa dum campeão, virá outra vez a ter uma carga tão causticamente distorciva. 30 remates contra 1. O nosso, de bola parada, se calhar da única vez em que nela tocámos, com a baliza a dezenas de metros de horizonte e uma fé de milhares de quilómetros de mar. Chorei no fim como choram as crianças, sozinho na sala, ainda agarrado ao rádio portátil e de punho fechado, com medo de abrir os olhos, como se ainda ma pudessem tirar. Não o vi e foi um dos jogos da minha vida. O dia em que tive a certeza de que podemos sempre tudo. De que nunca ninguém me voltaria a dizer que os milagres não existem. O futebol é o jogo mais bonito do mundo.


Não estive nesse Jamor, meses depois, a ver desfolhar a maior bandeira que a Madeira já teve e os 14 anos seguintes passei-os a fazer contas com o meu pai, a essa viagem que havíamos de fazer. O que lhe jurámos, este ano é que é, e depois outra e outra vez. As eliminatórias que vimos esmagarem-se, qual rosário entre os dedos, sempre à procura dum intervalo do destino, entre prolongamentos em Alvalade ou tragédias em Campomaior. Fui estudar, corri o país com o Marítimo, formei-me e comecei a trabalhar. 14 anos são uma vida. Isso tudo e amanhã, ironicamente, voltarei a não estar em Coimbra para fazer a minha parte. Culpa de um futebol português embriagado e deplorável, intolerante ao regionalismo e alérgico às pessoas, que demora 2 meses para agendar uma final ultra-periférica para um dia de semana. Não é de hoje, nem nunca devíamos ter esperado melhor. E não posso honestamente negar no morto que fico por dentro, mas isso já não importa. Nunca nos deram uma fácil, nem nós nunca precisámos que dessem. O que nos resta é ir a mais uma luta, com o riso e a vertigem dos loucos, como se não nos pudessem realmente tocar. E não podem.

Aos que lá forem segurar o bastião, só tenho uma coisa a pedir: que valham por todos quantos queríamos lá estar. Vocês são os privilegiados, mas com o grande privilégio, vem a grande responsabilidade. E, lá dentro, seremos poucos. Lá dentro precisam de vós. Seremos de menos em tudo, mas nunca seremos de menos na vontade de ganhar. Sejam o leme. Contem-lhes de que é feito este Leão e esta terra. E provem a todo e cada um daqueles jogadores porque é que vestir a verde-e-vermelha é a maior honra da vida deles. Façam-nos perceber porque é que vale a pena lutar. O Marítimo não é uma má época, não é uma geração perdida, não é um punhado de futebolistas. O Marítimo somos nós, em tudo o que fazemos e em tudo quanto sentimos e, amanhã, o Marítimo começa e acaba em vós. Estejam à altura. Em romaria desde os quatro cantos do país, a descer de caravana do Porto, a subir de comboio de Lisboa ou a fazer a transatlântica de avião, levem a ilha até ao fim da rua e levem a nossa voz até ao fim do mundo. Não é que a Casa da Madeira seja em Coimbra, é que Coimbra seja a Casa da Madeira. E façam a festa da nossa vida, por vós, que vão esquadrinhar todo o país para lá estar, mas, ainda mais importante, por todo o Império do Almirante, da Venezuela à África do Sul, de França aos Estados Unidos, do Panamá à Austrália, por toda esta diáspora derramada na esfera armilar, que foi contar ao mundo o que é ser madeirense, e que ser do Marítimo é sê-lo ainda duas vezes.

A equipa que subir em Coimbra não é uma equipa de super-heróis, sabemos bem. Não é uma equipa de antologia, na ressaca de uma época memorável. É uma equipa que talvez estivesse mesmo destinada a ser esquecida. Mas, tantas vezes, tudo o que basta é merecer estar no sítio certo, à hora certa. A História não foi escrita por super-heróis. Nem nós somos clube de nenhuns. A História do maior clube madeirense, do único grande clube insular, Campeão de Portugal e primeiro toda a vida, a subir de divisão, a ir à Europa, a ir ao Jamor e agora à final da Liga, foi escrita por homens comuns, que ousaram, geração sobre geração, ganhar os jogos que não podiam. Homens como estes, homens como nós.

Amanhã não vos pedimos muito. Só que acreditem como nós. Que joguem como nós. Que se tudo correr mal, se tudo parecer ir falhar e se as circunstâncias vos forem engolir, que joguem como se fosse a primeira vez. Como o primeiro pontapé que deram na bola em Lorient ou Estugarda, em Lisboa ou no Rio de Janeiro, com a camisola de meninos, com os vossos pais a ver. Lembrem-se do brio que sentiram, de tudo o que fariam e de saberem que ali, naquele campo, não havia nada que vos pudessem roubar. Que era possível correr mais um bocado, mesmo quando já não era. E defender mais um bocado e atacar mais um bocado. Mesmo quando já não era. Que era possível sonhar mais um bocado. Para cada maritimista, enquanto vemos a vida passar-nos à frente, é disso que se trata.

Amanhã, mais do que nunca, não somos onze. Somos todos. E para nós, aconteça o que acontecer, “ainda vamos conseguir”. O resto são só 90 minutos onde viveremos juntos para sempre.

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