terça-feira, 10 de dezembro de 2019

The Irishman: uma homenagem ao Cinema


Era ainda uma simples ideia e já não havia forma de nos tirar o sorriso da cara. Scorsese, De Niro, Pacino e um filme de gangsters saído das nossas memórias mais felizes, como se já todos o tivéssemos vivido em vários momentos e de muitas formas, ao longo dos anos. Uma equipa de sonho saída directamente da História da Arte, não por dinheiro, fama ou devaneio, nem sequer por eles, mas por reverência ao cinema e a tudo o que ele representa para todos os fiéis discípulos desta enorme viagem. Um filme que foi buscar o Pesci à reforma, minha nossa senhora. Mesmo se não fosse muito bom, The Irishman saberia provavelmente muito bem. Mesmo se não fosse o marco que é. Não pelo que tem de passado, mas pela sua intemporalidade para o presente e para o futuro.

The Irishman é um all in de Scorsese. Honra lhe seja feita, é mais um, na verdade. É uma antologia imensa e imensamente ambiciosa, quer na profundidade e na delicadeza da fórmula, quer na largura da narrativa, em que o velho Mestre arrisca tudo, porque ao fim de todos estes anos, essa continua a ser a sua única maneira de o fazer. Uma distribuidora normal provavelmente não lhe daria 3h30 de filme, porque não haveria tempo, mas The Irishman é exactamente a antítese da urgência dos dias em que vivemos: é um filme para esperar e para desfrutar, para afligir e para envelhecer connosco aos poucos, como as nossas histórias preferidas, as nossas maiores provações ou os nossos melhores amigos.

É essa a grande vitória de Scorsese: triunfar com um filme feito exactamente nos seus termos, mesmo numa plataforma inédita, mesmo num formato que nem sabíamos que gostávamos e com as suas velhas glórias, todos agora nos idos dos 70, mesmo sem sabermos se ainda podiam voltar a sê-lo. The Irishman é essa redescoberta permanente, é a restituição do mais puro deslumbramento e da elegância com que o cinema reinventou o último século, um épico de filigrana, como uma fotografia de pasmar, e tempo para conversar e para partilharmos tudo, o lusco-fusco e os gestos, as personalidades que não se substituem e as decisões difíceis que mais ninguém pode tomar. Um filme de Mestre, de um dos maiores de sempre, que volta a usar a mística e os mistérios da Máfia para falar dos nossos próprios vícios, das nossas falências e dos nossos destinos, e ainda assim, do código que nos distingue e do carácter que nos aproxima uns aos outros. Um trabalho fantástico que contou obviamente com a contribuição habitualmente impagável de um argumentista como Steven Zaillian.

The Irishman é um filme de alto quilate, que nos perturba e nos comove mesmo quando não nos apercebemos logo disso. Poder fazer esta viagem com a coragem e a alma do melhor De Niro, que se supera aqui com uma generosidade e uma humildade interpretativa até onde porventura nunca tinha ido, com a fúria e o génio do melhor Pacino, que será vertiginoso até morrer, e com o carisma e a classe do melhor Pesci, todos, por deus, já nomeados para os Globos de Ouro, é demasiado bom para ser verdade. O epílogo do filme deixa-nos com o coração pequenino e liberta-nos nas veias uma nostalgia difícil de controlar. Espero que The Irishman não seja a despedida de nenhum deles, muito menos desta forma de fazer cinema; mas em tudo o resto, é um monumental e arrepiante mausoléu de carreira para a melhor geração de sempre. De uma coisa podemos ter a certeza: se isto é uma homenagem, os homenageados somos nós.

8.5/10

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