Não sei se Deus existe. Sei que se existisse, havia de ser como ele. Custa bastante escrever isto hoje, porque custou bastante a acreditar. Se Deus existisse, não havia de morrer. Custa bastante escrevê-lo já, porque parte de mim ainda acredita que ele pode voltar, que há sempre tempo para mais um drible, que quem já ganhou um Mundial e uma guerra sozinho, pode bem ganhar à morte. Custa bastante escrevê-lo enfim, porque se nunca estivemos à altura do que ele foi em vida, jamais estaremos à altura do que ele é agora. Custa bastante escrevê-lo, como teria custado a outro apóstolo de outra religião qualquer.
Custou a aceitar, mas como noutra religião qualquer, percebi que este seria provavelmente o seu último milagre. Nunca tinha visto tanta gente a falar em Deus numa rede social. Muita gente leu, e não compreenderá o exagero, não compreendendo que o exagero não é nosso, era dele. Não sei se Deus existe. Sei que se existisse, havia de ser assim. Puro, omnipotente, benigno, genial. Perfeito nunca, porque perfeito nenhum de nós é, e teríamos sido feitos à sua imagem.
O que o tornava único era a sua verosimilhança. Era ser intuitivamente genuíno em tudo o que fazia, sem fazer de propósito, nunca com lições de moral, mas sempre do lado certo. Lutando a luta certa, enquanto nos mostrava, a nós comuns mortais, que é possível fazê-lo mesmo se tropeçarmos em todas as armadilhas da vida, sem que isso tenha de beliscar aquilo que somos. Ele mostrava que até os deuses são humanos na maior parte do tempo e que, se calhar, todos podemos tocar em Deus de vez em quando, mesmo sem todo aquele talento, mesmo com todas as nossas falências.
Para alguém que respira futebol desde que se lembra de respirar, custa bastante despedir-se de Diego Armando Maradona, porque ninguém devia ter de se despedir da pedra sobre a qual construiu a sua Igreja. Ele é o mais importante de todos, ainda que, tal como a Deus, se ele existir, nunca o tenha visto ao vivo, ou em directo. O bom da fé é que não precisa de ser mundana. Somos tantos os que não o viram, mas sentiram, que é fácil constatar que Maradona não é só o futebol que jogou. Maradona é um herói que, por acaso, foi o maior futebolista de todos.
É um herói pela forma como ganhou, e como perdeu. Um herói real, de carne, osso e alma perante todas as suas extraordinárias circunstâncias, que arranjou sempre forma de fintá-las e de se agigantar, e ser maior do que o jogo, e maior do que a vida. Uma vez li que qualquer comparação era escusada entre ele e os nossos dias, porque mais ninguém seria capaz de carregar a cruz daquele talento como ele carregou. Mais ninguém seria capaz de ganhar sozinho como ele ganhou, transformando equipas banais em equipas extraordinárias, só com um pé esquerdo, uma mão divina e uma aura em forma de juba.
El Diego até podia ser Deus, mas antes disso era Povo. Era um ídolo popular único, um ícone anti-sistema, sempre a ferver com a bola colada ao pé ou o coração colado à boca, sempre pronto a tomar as dores de quem precisava de ser defendido, como se as suas não bastassem. Ser indiferente é a pior coisa que se pode ser na vida. Maradona tomou sempre partido. Vestiu sempre a camisola. Enfrentou sempre o politicamente correcto, custasse o que custasse. E custou, porque aquilo que nunca lhe perdoaram não foram os erros, foi a rectidão. Sempre que o tentaram derrubar, tentaram pelo carácter, sem perceberem que por aí nunca haviam de lá chegar. Tal como à bola, no carácter ele chegou sempre primeiro.
Fê-lo pelo povo da Argentina, após a guerra das Malvinas, ganhando em campo o que mais ninguém podia ganhar lá longe nas trincheiras, em horário nobre e aos olhos do mundo, quando o mundo não queria ver; fê-lo pelo povo de Nápoles, ganhando em campo o que a Itália pobre do Sul jamais poderia ganhar fora dele; e fê-lo pela gente comum, atirando-se contra o imperialismo e contra os poderes instalados, como a FIFA corrupta, que nunca o absolveu, mas que nunca o pôde ignorar.
Fê-lo, acreditarei sempre, consciente da fragilidade da condição humana, da sua e da nossa, consciente de que tudo isto é demasiado curto para torcer em vez de quebrar quando se acredita nalguma coisa, consciente de que a vida é uma lotaria e que coragem é ter medo, mas ir na mesma. Consciente de que ele podia ir até ao fim do mundo sozinho, para que nós não tivéssemos de ir, como naquela descolagem cósmica no dia 22 de Junho de 1986, quando Victor Hugo Morales narrou o golo do século numa epifania como não houve outra igual, enquanto clamava ao céu, "de que planeta vieste, para deixar pelo caminho tanto inglês?", tanta injustiça, tanta opressão, tanta desigualdade, tanta provação, tanta imperfeição, tanta falha? É sempre possível encarar os nossos obstáculos e ir mais longe. Deus é acreditar nalguma coisa, mesmo se formos os únicos.
Não sei se Deus existe, mas se existir, não morreu hoje. Se existir, talvez tenha só voltado para o seu planeta.
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