domingo, 21 de agosto de 2022

A realidade


O Marítimo foi 10° classificado da última edição da Liga. No Verão, perdeu três titulares, incluindo o seu melhor jogador, num onze onde as debilidades já eram bastante evidentes. Os reforços não só chegaram tarde (metade depois do estágio já ter acabado), como nenhum veio titular de caras, o que se veio a confirmar. Em boa consciência, as expectativas só podiam, por isso, ser absolutamente modestas para arrancar a época: já antes disto ter começado, há três semanas, que o único objectivo realista do Marítimo era lutar pela manutenção. O 10° classificado do ano passado começou a época mais fraco, pelo que a lógica era vir para baixo disso. 

A realidade do Marítimo é esta e estava à vista para quem quisesse ver. A partir deste ponto prévio, há duas observações que me parecem essenciais neste momento. A primeira é a questão da gestão de expectativas por parte do clube/SAD. Não vou discutir aqui se era possível ter trazido jogadores melhores e mais cedo, porque assumo que não. Agora, a partir do momento em que o clube não tem capacidade para investir no reforço objectivo de um plantel que ficou em 10°, e que perdeu três titulares, a partir do momento em que começamos pior do que já estávamos, tem de haver a frontalidade de dar a cara, assumir as dificuldades com todas as letras e números, e ter a sensibilidade de pôr todos os adeptos no mesmo barco. Na pré-época, a única coisa que ouvi foi o Presidente dizer que o Marítimo não pode ficar para baixo de 7°. Ambição é boa e recomenda-se, mas ambição distante da realidade estraga mais do que galvaniza.

A um departamento de futebol, não calha sempre o engenho de contratar bem, e para o imediato, sem ter dinheiro. Contratámos um suplente do Guimarães, um suplente do Gil (que passou o ano lesionado), um miúdo da nossa 2a Liga, dois miúdos suplentes na 2a Divisão Espanhola, outro miúdo da 3a Divisão espanhola e um da 2a Divisão mexicana. Com certeza não foram as primeiras, nem as segundas opções, pelo que resta dar o benefício da dúvida e esperar. O que não faz sentido dizer é que os reforços seriam cirúrgicos, e que se demoravam, era porque só viria gente para fazer a diferença. Acho que faltou, e porventura continua a faltar, tratar os adeptos como adultos. Acho que todos os maritimistas percebem se lhes disserem que não temos dinheiro para mais e que vai ser um ano de dificuldades. Fingir outra coisa qualquer é natural que acabe em histeria. 

A 2a questão é a técnica. O treinador está sempre condenado a trabalhar com o que lhe dão. Neste sentido, até há três semanas, o Vasco Seabra seria dos menos culpados pelo desenrolar dos acontecimentos. Tinha um onze deficitário no ano passado, ficou com uma equipa ainda mais fraca no Verão, teve de fazer uma pré-época quase sem reforços e não chegou ninguém que disfarçasse a situação. O cenário estava longe de ser animador, mas até para um cenário pouco animador, o início de época foi desastroso. Sinceramente, não lhe critico a opção de ter começado com os jogadores que já conhece e que fizeram a pré-época, acho que é uma questão de coerência e de balneário. Por outro lado, a pavorosa falta de agressividade, mínimos de concentração e organização colectiva, isso é impossível não criticar. 

Um treinador está condenado a trabalhar com o que lhe dão, mas também tem de mostrar trabalho com o que lhe dão. A sensação que esta equipa dá é que o treinador queria que ela fosse outra coisa qualquer, que manifestamente não tem capacidade para ser. A equipa de Vasco Seabra é uma equipa lírica, como ele próprio muitas vezes tende a ser, que quer sair a jogar desde trás, mesmo se for contra o Porto no Dragão, que joga sem carregadores de piano no miolo e não faz faltas, que desiste do jogo quando começa a perder de 2 ou 3 para cima, que só joga se for bonito e se não sujar os calções, e essa é a linha para lá da qual qualquer maritimista adoece. Porque há muitas formas de perder. Levar 7 na Luz, ou 5 no Dragão e em Braga, ou perder metade dos jogos nos Barreiros, não é a minha forma de perder. Dou ao Vasco o mérito por nos ter salvo no ano passado. Mas desde Março que o futebol e os resultados do Marítimo são, no mínimo, sofríveis, e às vezes vergonhosos.

O treinador queria que esta equipa fosse outra coisa qualquer, o Presidente com certeza também, a SAD também, e os adeptos também. Mas esta equipa é o que é, e vai ter de ser com ela, e sem milagres, que se vai lutar novamente para não descer. Cada dia que passe sem que toda a gente aceite isso, e seja mais competente a fazer a sua parte em função disso, é um dia perdido, e o Marítimo não se pode dar ao luxo de continuar a perder muitos mais. Num momento em que as hostes estão compreensivelmente desiludidas, não poderia deixar, no entanto e por fim, de sublinhar o óbvio: ninguém no seu perfeito juízo pode estar a desejar um regresso ao passado bafiento, onde havia problemas iguais, e depois outros muito piores. O caminho do Marítimo é em frente, sempre, e se é para sofrer, que seja com todos presentes ao leme, e nunca mais pelo leme do homem só.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

A viagem moral de um povo


[Texto escrito há 4 anos, sem saber o que nos esperava. Texto recuperado hoje, um fim do mundo depois, dia em que a Viagem recomeça]

Mais do que uma estação, o Verão é um estado de espírito. Na Madeira, é ainda mais do que isso: é uma experiência psicotrópica, na medida em que é um estado de espírito que veio aos trópicos. E os trópicos são um bom investimento.

Acredito que se pode ser feliz em muitos sítios onde esteja o mar, mas querer ser feliz fora da Madeira em Agosto é abusar da sorte. Porque a ilha pode não ter petróleo, mas em Agosto carbura. Pode não ter diamantes, mas em Agosto, até o calhau que reluz é ouro. Não somos uma Riviera, mas em Agosto tudo é uma praia, porque temos fajãs de coragem para dar e vender. E se nos faltar o champagne ou os iates, garanto que, em Agosto, temos sangria, suor e lágrimas de rir, para navegar. Mas sobretudo, temos os arraiais.

A Madeira não é um paraíso deserto como nos filmes, é um paraíso cheio de arraiais, e onde estão os arraiais, estão as histórias, e os santuários de romeiros que recebem como ninguém, porque esta terra tem o dom de oferecer como ninguém, e de nos oferecer uns aos outros. É isso que distingue os nossos arraiais de qualquer outro festival de Verão, ou festa de aldeia ou baile de paróquia. Não é o tamanho físico, é o tamanho moral. O grau de compromisso, de generosidade e de familiaridade, o genuíno despudor de quem acredita que, na ilha, nascemos todos da mesma rocha, e somos todos filhos da mesma festa e do mesmo mar, o desapego de quem pratica que, nas praias da costa sul ou nos penhascos da costa norte, no álcool como na vida, quanto mais graus, quanto melhor.

Os arraiais são a nossa forma de partilhar com os outros o mais que nos damos a nós próprios. Com mais vertigem, mais vontade, mais quilómetros, mais entusiasmo, mais litros, mais noite, mais conversa, mais encontros e mais reencontros, mais memórias e mais novas memórias, num turbilhão de energia em estado puro, em que se vive um ano num mês, como se ele durasse uma vida.

Os arraiais são um fenómeno natural, feito de uma superação sempre surpreendente, seja na logística de quem se faz semanalmente ao caminho sem nunca olhar para trás, seja nas histórias impensáveis, mesmo as que nunca vamos inteiramente recordar, mas sempre ao lado dos que nunca vamos inteiramente esquecer, seja, por fim, na lenda dos desconhecidos, que temos depois a honra e o privilégio de imortalizar até ao fim dos tempos. Na grandeza despojada dos que se criaram nesta terra, podemos todos ver o cordão umbilical com que ela nos liga uns aos outros, e que temos o dever e a responsabilidade de renovar todos os anos, do Porto Moniz aos Lameiros, do Seixal a São Vicente, à procura do maior sonho que pode existir numa noite de Verão, que é reencontrarmos a ilha mística, mas também a nós próprios e uns aos outros.

O Verão na ilha é uma regeneração imersa em eterna juventude, uma terapia, mas em mais rápido, uma mente sã, mas em corpo de expiação. E está bem assim. Porque se o Verão eventualmente acaba, há outra viagem que começa. E se há rotina que nos leve, precisamos que haja sempre arraial que nos encontre. Vemo-nos lá.