sexta-feira, 29 de julho de 2022

A viagem moral de um povo


[Texto escrito há 4 anos, sem saber o que nos esperava. Texto recuperado hoje, um fim do mundo depois, dia em que a Viagem recomeça]

Mais do que uma estação, o Verão é um estado de espírito. Na Madeira, é ainda mais do que isso: é uma experiência psicotrópica, na medida em que é um estado de espírito que veio aos trópicos. E os trópicos são um bom investimento.

Acredito que se pode ser feliz em muitos sítios onde esteja o mar, mas querer ser feliz fora da Madeira em Agosto é abusar da sorte. Porque a ilha pode não ter petróleo, mas em Agosto carbura. Pode não ter diamantes, mas em Agosto, até o calhau que reluz é ouro. Não somos uma Riviera, mas em Agosto tudo é uma praia, porque temos fajãs de coragem para dar e vender. E se nos faltar o champagne ou os iates, garanto que, em Agosto, temos sangria, suor e lágrimas de rir, para navegar. Mas sobretudo, temos os arraiais.

A Madeira não é um paraíso deserto como nos filmes, é um paraíso cheio de arraiais, e onde estão os arraiais, estão as histórias, e os santuários de romeiros que recebem como ninguém, porque esta terra tem o dom de oferecer como ninguém, e de nos oferecer uns aos outros. É isso que distingue os nossos arraiais de qualquer outro festival de Verão, ou festa de aldeia ou baile de paróquia. Não é o tamanho físico, é o tamanho moral. O grau de compromisso, de generosidade e de familiaridade, o genuíno despudor de quem acredita que, na ilha, nascemos todos da mesma rocha, e somos todos filhos da mesma festa e do mesmo mar, o desapego de quem pratica que, nas praias da costa sul ou nos penhascos da costa norte, no álcool como na vida, quanto mais graus, quanto melhor.

Os arraiais são a nossa forma de partilhar com os outros o mais que nos damos a nós próprios. Com mais vertigem, mais vontade, mais quilómetros, mais entusiasmo, mais litros, mais noite, mais conversa, mais encontros e mais reencontros, mais memórias e mais novas memórias, num turbilhão de energia em estado puro, em que se vive um ano num mês, como se ele durasse uma vida.

Os arraiais são um fenómeno natural, feito de uma superação sempre surpreendente, seja na logística de quem se faz semanalmente ao caminho sem nunca olhar para trás, seja nas histórias impensáveis, mesmo as que nunca vamos inteiramente recordar, mas sempre ao lado dos que nunca vamos inteiramente esquecer, seja, por fim, na lenda dos desconhecidos, que temos depois a honra e o privilégio de imortalizar até ao fim dos tempos. Na grandeza despojada dos que se criaram nesta terra, podemos todos ver o cordão umbilical com que ela nos liga uns aos outros, e que temos o dever e a responsabilidade de renovar todos os anos, do Porto Moniz aos Lameiros, do Seixal a São Vicente, à procura do maior sonho que pode existir numa noite de Verão, que é reencontrarmos a ilha mística, mas também a nós próprios e uns aos outros.

O Verão na ilha é uma regeneração imersa em eterna juventude, uma terapia, mas em mais rápido, uma mente sã, mas em corpo de expiação. E está bem assim. Porque se o Verão eventualmente acaba, há outra viagem que começa. E se há rotina que nos leve, precisamos que haja sempre arraial que nos encontre. Vemo-nos lá.

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