sexta-feira, 4 de abril de 2014

À altura da ilusão


Imagino-me a entrar num pub com o cachecol de lã, em vermelho e branco puro, sem letras e sem emblemas, escapando ao frio gelado da rua. Lá dentro, os Beatles a tocarem em fundo, como num ritual em dia de jogo, com cerveja e inglês cerrado, no meio de uma procissão de fé capaz de trazer à vida o poster da equipa bicampeã europeia em 78. Imagino-me a sair de sobretudo, a cruzar um mural de Paisley e a prestar reverência contrita à estátua de Shankly, ao lado de um miúdo esbugalhado de espanto, enquanto o pai lhe conta quem foram eles, e porque ali estão, eternamente maiores do que os outros mortais. Imagino-me a chegar aos metafísicos portões de ferro de Anfield e a ficar encadeado por eles, fixo nas letras encimadas por todos os tempos. 'Nunca caminharás sozinho'. Poucos momentos antes de, em pé, no Kop, ser também eu uma modesta voz a plenos pulmões, cantando o hino sagrado numa experiência extra-corporal, como se tivesse estado em Liverpool todo e cada dia da minha vida.

Há clubes grandes, há clubes históricos e há clubes ricos. O Liverpool está no raríssimo lote de clubes místicos, porque nada daquilo se pode remotamente comprar, porque nada daquilo pode ser substituído por vitórias, por troféus ou, sequer, pelo tempo. Apaixonei-me pelo Liverpool nos anos que já não eram os seus: o último campeonato, por exemplo, foi ganho três meses antes de eu ter nascido. Apaixonei-me porque, em consciência, era inevitável. Porque qualquer um que ame futebol está condenado a essa irrecusável proposta do que o jogo pode significar para a vida das pessoas, de como pode tornar-se tão maior do que elas. Como Dalglish, que se despediu pedindo que não chorassem por ele, porque "ninguém podia alguma vez ser maior do que o Liverpool'. O futebol é pessoal, tem de ser. Quando um futebol nos arrepia, sabemos sempre que chegámos ao sítio certo.

Estava à frente da televisão quando, em Istambul, aconteceu a outra final da minha vida, numa segunda-parte onde nunca me poderão convencer de que o Liverpool jogou só com onze. Quem tiver olhado com atenção, terá visto, lá evocados, Keegan a cruzar para Gerrard ou Rush a recargar o penalty decisivo. Todas as lendas de todos os tempos voltaram à Terra nessa noite sobrehumana, como almas canalizadas pelas gargantas daquela gente que, a perder uma final europeia por 3-0 ao intervalo, cantou assim no descanso. Esses milhares que tiveram o privilégio de estar no Atatürk, no fundo, limitaram-se a viver à altura do mantra de Shankly, e sabiam que "o futebol não é um jogo de vida ou de morte, é muito mais importante do que isso". 

À parte esse dia maior do que a vida, porém, o Liverpool mais forte que vi, a temível némesis europeia de Mourinho, era uma equipa de Benítez. Feia, armada, desapaixonada, lobotomizada de carisma. Um Liverpool de Benítez não era verdadeiramente o Liverpool. Os anos que lhe sucederam também não foram amáveis. A equipa não deu o salto em frente nem se reencontrou, derivou na tabela e teve de abdicar da Champions. 2013-2014 tem, contudo, sido uma época especial. Envergonhada de início, orgulhosa nas suas insuficiências depois... e deslumbrante neste epílogo. No último sábado, à oitava vitória seguida e ao 88º golo marcado, a equipa para quem o top-4 era um sonho risível de Verão, isolou-se no comando da Premier League, a um mês do fim.

Se o velho Paisley, até hoje o único treinador da História a ter ganho três Champions, pudesse olhar para o último quarto de século e escolher uma saída, acredito que chancelaria sempre a proposta de jogo deste Liverpool. Isso fala por ela. Uma equipa tão jovem quanto apaixonada, tão inglesa quanto evoluída, tão inexperiente quanto abusada de talento, tão culta e preparada, quanto positiva, entusiasmada, entusiasmante. Liderada por quem, ainda na semana passada, reiterou que nunca será o dinheiro a construir as grandes equipas, e que faz ainda mais sentido por tê-lo no banco.

Uma equipa com o luxo de ainda ir a tempo de desfrutar dum monstro sagrado do panteão de Anfield, numa das melhores formas da carreira - o quanto merecias esse campeonato, Gerrard - e de um rebelde indomável nascido nos confins do Rio da Prata, que perpassou todos os excessos para, na era ronaldo-messiânica da História, apresentar uma folha de préstimos igual às deles. Uma equipa em vermelho pulsante, que personifica um espírito, que ressuscita as aspirações de uma causa, uma equipa que está certa e que merece tudo o que de bom lhe for acontecer. Uma equipa à altura da ilusão que é o Liverpool.

O City continua a ser favorito, não sei torcer contra Mourinho e não faço ideia de como é que esta extraordinária Premier League pode acabar. Sei é que num Liverpool vivo é uma honra poder acreditar.

Walk on, walk on with a hope in your heart
And you'll never walk alone
You'll never, ever walk alone

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