terça-feira, 13 de outubro de 2015

Narcos, temporada 1. Quanto custa ser Pablo Escobar?


Como é que se biografa, afinal, o gangster mais bem-sucedido de todos os tempos?

Encarar vultuosas figuras históricas traduz um nível de risco que, em muitos casos, só podemos perceber com clareza à frente no caminho. Por um lado, um registo tão marcadamente biográfico sabe contar com um nível de assimilação altíssimo, ou seja, o primeiro instinto do público é reconhecer, confiar e ver; por outro, as obrigatoriedades históricas e o alcance insano do personagem induzem-se tantas vezes tão onerosos, que é fácil cair na armadilha de fazer um grande nada. Diria que Narcos, mais um original Netflix, com a responsabilidade monstruosa de encorpar o sucesso de House of Cards, sobreviveu, para já, ao mais difícil: é um produto sério, crível e interessante. Mesmo que ainda não seja uma grande série.


E é normal que ainda não seja, ao fim da primeira temporada. A excepção é verdadeiramente o contrário. Narcos sugere ter na base um trabalho de bastidores brilhante. A nível técnico, é uma série que se esforçou por ser inatacável. Tem uma cronologia cuidadosamente velada, com timing quando escolhe descolar da História para deixar a história respirar, ou seja, ao definir os momentos-chave em que se tenta transcender interpretativamente na recriação dos episódios que nunca ninguém viu. O que acaba por ter em cuidado, planeamento arquitectónico e trabalho de casa, falta-lhe, contudo, em raça. É, pese toda a droga, toda a violência e toda a tonelagem de mortes, uma série durante demasiado tempo morna. Interessante, de facto, num plano quase intelectual, ou documental, mas emocionalmente curta. Com paixão de menos. Ainda que seja justo reconhecer que foi em crescendo. Se a primeira metade da temporada é, de facto, lisa, o desenrolar é largamente mais rentável, muito por culpa das personagens nucleares terem perdido a vergonha. Ainda não é suficiente, mas os sinais são bons.

Nesse último terço da acção, os ponteiros alinham-se, e é quando podemos beber verdadeiramente esse mundo surrealista louco da Colômbia dos anos 80, onde infectou, como uma gangrena, uma figura tão estupidamente ilimitrófe como Pablo Escobar. Conseguimos sentir as ondas de choque e chocamo-nos com o desplante e com a completa irracionalidade dimensional de tudo aquilo, o tal "realismo mágico", que serve de conceito filosofal à série, traduzindo que, naquela Colômbia, aconteciam coisas que só podiam mesmo pertencer ao Fantástico, desde os tanques pelo Parlamento adentro, aos atentados sobre aviões comerciais e a todo o quotidiano de guerra civil de um narco-Estado. Há que enaltecer, por fim, os préstimos da realização, assinada a quatro autores, com destaque inevitável para José Padilha, que define o tom inicial e reedita a parceria memorável com Wagner Moura, que valeu os Tropa de Elite. A filmagem daquela moldura latino-americana, que ele tão bem conhece, fez tudo um pouco mais realista, e essa genuinidade fica como uma das imagens de marca da temporada.


Na qualidade de fã confesso de Wagner Moura, foi com um gosto desmesurado que o vi chegar ao mercado televisivo mais importante do mundo. Uma oportunidade de luxo, com um papel de algibeira e a benção da Netflix. Nos primeiros dois terços de temporada foi todavia impossível esconder a desilusão. Constantemente preso pelos arames, o seu Escobar pareceu ter a profundidade duma folha de papel, sempre desligado, superficial, injustificado e inconsistente. Acho que esteve muito próximo de alienar a própria série, que não teria sobrevivido sem que emendasse a mão. Só quando a paranóia chega é que o tabuleiro se vira. Uma personagem que era simples, sem ser empática sob nenhum prisma (um mafioso resultadista chapa cinco, mais ambicioso do que devia, mas sempre inconsequente), torna-se finalmente no vórtex do autêntico Inferno que o rodeia. A descolagem total da mais elementar racionalidade, o descontrolo cego e a auto-destruição obsessiva varrem tudo à sua volta e imprimem-nos tamanho desconforto e imprevisibilidade que, tal como já disse, vão buscar por si próprios a segunda temporada.


O que vale para Escobar, vale para o seu contra-parte, o Agente DEA Steve Murphy, assinado por Boyd Holbrook. É ele quem reclama um protagonismo incontestado desde a partida, assumindo as próprias despesas de narração da série (essa uma excelente opção editorial). O problema é que a personagem propriamente dita foi sempre escassa... até lhe ceifarem as amarras da normalidade vigente e o tornarem abertamente desamorável. Murphy foi-se transformando, do newcomer arrumadinho, até ao agente cru e grosseiro, erodido pelo clima febril onde teve de aprender a mover-se. A sua aparente escalada de desagregação será outro dos grandes trunfos do que estiver para vir. Num elenco bastante interessante, onde salientaria Maurice Compte (um oficial incorruptível que correu enquanto lhe deram pernas) e Juan Pablo Raba (número 2 de Escobar), a personagem mais consistente a tempo inteiro terá sido Pedro Pascal, o bem conhecido Oberyn Martell, de Game of Thrones. Foi o mais carismático e o que mais rapidamente se encontrou no papel de detective experimentado, meio rock&roll, meio pragmático. No fim, acaba por ceder a ribalta para que outros pudessem brilhar, mas merece o reconhecimento.

Narcos está longe de ser uma série acabada e merece os anticorpos que enfrentará em primeira instância, nomeadamente nessa tal dificuldade em seduzir a audiência durante boa parte do tempo. Não sei de quantos merecerá o voto de confiança, mas o seu tamanho parece-me inequívoco e os indícios que deixa fazem crer um regresso de maturidade e afirmação, com algo de ainda mais escobariano na forja.

7/10

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