"I have no choice but to direct my energies toward the acquisiton of fame and fortune. Frankly, I have no taste for either poverty or honest labor, so writing is the only recourse left for me." Hunter S. Thompson
quarta-feira, 6 de março de 2019
Era uma vez
Em sete dias, o Real perdeu três vezes seguidas em casa, foi eliminado de tudo e acabou a época na primeira semana de Março.
A obra magna de hoje, com a espectacular humilhação do tricampeão europeu por um punhado de miúdos, em pleno Bernabéu, pode ser registada tragicamente de muitos ângulos; o mais sintomático foi, porventura, ver o Navas e o Marcelo a assistirem àquilo do banco, onde também começou o Bale. Com o Ramos castigado, o Cristiano em Turim e o Zidane a viver dos rendimentos de uma das decisões mais felizes que tomou na vida, o Real de hoje foi uma imagem perigosamente fidedigna da falta de identidade e de respeito pelas suas próprias referências que o clube, no fundo, sempre se habituou a instigar, encegueirado pelo escudo monárquico e pela doentia projecção de omnipotência que tem de si próprio.
Os exemplos de destratamento são incontáveis, de Casillas a Raúl, de Ozil, trocado porque James tinha marcado um golo bonito no Mundial, a Di María, posto fora porque Bale era a maior estrela da Premier League, até à cara do Navas hoje, um tipo que ganha três Ligas dos Campeões seguidas e perde o lugar, porque o Courtois fica melhor na fotografia. A família madridista sempre foi isto: uma feira das vaidades e um casamento de conveniência, sempre disponível a descartar quem fosse preciso, a troco da próxima grande futilidade.
O Cristiano limitou-se, assim, como em quase tudo o que fez na vida, a antecipar-se aos comuns mortais e a fazer antes, o que lhe queriam fazer a ele. O Real tinha-o estrategicamente colocado na porta de saída, lembrando-lhe na imprensa que não há insubstituíveis, insinuando que a equipa só podia continuar a crescer às custas do velho e que jogava melhor sem ele, afiando cuidadosamente o punhal que haviam de lhe enfiar nas costas, quando chegasse a hora de culpar alguém pelo fracasso seguinte e de contratar a próxima sensação, naquele inevitável ritual de sacrifício tão tipicamente madridista, em que o haviam de esvaziar aos poucos, até ele deixar de fazer sombra à coroa.
É por isso que, este ano, dá tanto gozo constatar que o Real é que foi descartado, mesmo que o Real achasse, até há pouco tempo, que ia continuar a ganhar Champions até com os juvenis, porque o Real é ungido por deus e o clube é que faz os futebolistas. Não faz. O Real é o maior clube do mundo, mas isso não significa que não tenha vivido demasiados anos acima das suas possibilidades. Isso é que muitos nunca perceberam, ou não quiseram aceitar: que a última década só foi possível na nave espacial de um extraterrestre que aterrou em Madrid; e a nave foi embora, a última década acabou, e se calhar os extraterrestres também.
Talvez este "fim de uma era", como choram esta noite os espanhóis, ajude a colocar as coisas em perspectiva. Se calhar, afinal, "era" quase tudo um homem só.
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