Tem o delírio e a lucidez dos poetas.
Ponto prévio, para deixar já tudo em pratos limpos: Birdman é tão bom quanto se diz. É uma peça de cinema brilhante, um apontamento tão romântico e tão vulnerável, que é quase impossível não nos desarmar. É um filme sobre reconhecimento. Sobre essa jornada maior do que a vida que é colher a aceitação do mundo, sobre ser admirado e importar, sobre não ser indiferente, nem esquecido, nem soçobrar sozinho. Sobre essa luta que nunca está realmente ganha, tão frágil como uma centelha, que é descobrirmos ou redescobrirmos o nosso lugar, essa busca pela paz que é conseguir afirmar uma identidade, conseguir afirmar o próprio talento. Birdman é um filme espectacularmente honesto. Às vezes louco, caótico, bem-humorado, constantemente sofrido, mas sempre, sempre despretensioso. Auto-exposto, por génese, nos seus medos e nas suas fraquezas e frustrações, sempre de peito aberto às balas e, por isso, com o brio dos que têm os corações maiores. É o argumento do ano em termos de dimensão humana, pela filosofia com que fala de pessoas e por conhecê-las pela medula. Pelo jeito como se move magistralmente cartada sobre cartada, pensamento sobre pensamento, diálogo sobre diálogo. É um texto reverencial, poético pela delicadeza com que articula o seu delírio e a sua massiva capacidade de reflexão. É um filme realmente profundo e profundamente introspectivo. Seja feita uma grandíssima ode a Iñárritu (e aos seus 3 co-argumentistas): estar à altura da reputação é cada vez mais caro por estes dias, mas Birdman merece, com toda a legitimidade do mundo, ser o front-runner aos Óscares.
Do realizador mexicano só tinha visto Babel (2006), que o levou pela primeira vez às nomeações da Academia, e de Babel não gostei minimamente. Abstracto, pseudo-intelectual e incapaz de se concretizar, foi um filme da moda e da crítica. Uma década depois, porém, aplaudo-o de pé. Passaram quatro anos desde a sua última longa-metragem, e se há coisa que Iñarritu soube capitalizar foi o tempo. Birdman é um filme que se sente ter podido maturar. Apurar o gosto, aguardar pela inspiração e compor-se como merecia ser composto. É um filme completo e adulto, com uma visão e com espaço para brilhar. Como disse o próprio realizador, "Tudo, cada movimento, cada linha, cada abertura de porta, absolutamente tudo foi ensaiado." O argumento é excepcional, mas a realização é igualmente especial. Tão eléctrica quanto contemplativa, como uma orquestra. Com intensidade e quebras de tensão, com um tipo a destruir à mão um camarim, antes de ter uma conversa intimista sobre um casamento falhado. Se me tivessem pedido uma pulsação ideal para o filme, era esta. Com os walk and talks pelos corredores do teatro, a câmara a espremer-se até entrar de rompante em bocados de ante-estreias, sempre a girar e a tirar o raio-x a cada bocado daquela Broadway, antes de se deixar ficar numa conversa de varanda pendurada sobre a Times Square. Isto é tanto mais fascinante se soubermos que Iñarritu filmou o grosso do filme a um único take, numa aposta que o próprio caracterizou de suicida, por ter acreditado que era essa a identidade a imprimir, a da vida que não tem edições. Foi honestamente um prazer.
Confesso que, depois de ter visto The Theory of Everything, não imaginei que Eddie Redmayne pudesse ter realmente alguém à sua altura este ano. Michael Keaton provou-me errado. A eminente grandeza do papel é, na verdade, indissociável do seu carácter autobiográfico: o actor que na juventude foi um icónico super-herói em cinema, antes de tombar numa longa travessia no deserto, não é menos do que a sua própria história. Poucas vezes se tem uma oportunidade destas - lembro-me da performance incrível de Mickey Rourke, em The Wrestler (2010) - e Keaton cuida dela com a alma. Num caso como noutro, sente-se. E a verdade é que é difícil bater o que é tão bom, quando também é tão real. Se repararmos, é o único dos cinco nomeados ao Óscar que não retrata alguém com uma perturbação mental ou física reconhecida. Dá para perceber o alcance? Keaton enche o ecrã. Nos seus laivos de entusiasmo esperançoso, na sua genuinidade mas, acima de qualquer outra coisa, na sua desolação. No seu rumo contra a maré, no seu exercício de transcendência entre derrotas maiores e menores, sempre iludido de que ainda há algo para ele, de que ainda há algo a ganhar. A cena no bar com a crítica do Times, à entrada do capítulo final, aquela inevitabilidade crua da derrota, é sétima arte em estado puro.
Birdman foi uma fénix dos regressos. Definitivamente não me teriam visto apostar que uma comédia-drama também marcaria a volta de um dos grandes nomes com quem cresci: Edward Norton faz o seu melhor filme numa década. Cáustico, agressivo, intenso, com um texto à sua medida. Parecia que já não tinha nada daquilo com ele, mas ressuscitou-nos à frente o tipo de performance que estava adormecida na memória do século passado (Fight Club, American History X, 25th Hour...). Grande, grande personalidade, uma arrogância de autor que é um privilégio ter de volta. Emma Stone começa a cumprir o percurso que todos lhe adivinhavam. Tem demasiado carisma, era tudo uma questão de tempo. O seu potencial excede esta nomeação, mas foi uma merecida porta de entrada na elite, na pele de uma miúda dura e revoltada, mas interessante, até madura. A cena com o pai na recepção do teatro teria valido a nomeação por si só. Num elenco tremendamente sustentado, não deixam de merecer referência Galifianakis, Naomi Watts e Andrea Riseborough, pelo nível que emprestaram ao produto final. Salientar também, e inevitavelmente, a enorme cinematografia de Emmanuel Lubezki, o mestre por detrás de Tree of Life ou Gravity. Não era um trabalho ortodoxo e Lubezki não o queria aceitar - com o essencial da filmagem entre os muros de um teatro, numa semi-comédia -, mas Iñarritu convenceu-o e o resultado da parceria criativa com o conterrâneo foi venerável.
Do realizador mexicano só tinha visto Babel (2006), que o levou pela primeira vez às nomeações da Academia, e de Babel não gostei minimamente. Abstracto, pseudo-intelectual e incapaz de se concretizar, foi um filme da moda e da crítica. Uma década depois, porém, aplaudo-o de pé. Passaram quatro anos desde a sua última longa-metragem, e se há coisa que Iñarritu soube capitalizar foi o tempo. Birdman é um filme que se sente ter podido maturar. Apurar o gosto, aguardar pela inspiração e compor-se como merecia ser composto. É um filme completo e adulto, com uma visão e com espaço para brilhar. Como disse o próprio realizador, "Tudo, cada movimento, cada linha, cada abertura de porta, absolutamente tudo foi ensaiado." O argumento é excepcional, mas a realização é igualmente especial. Tão eléctrica quanto contemplativa, como uma orquestra. Com intensidade e quebras de tensão, com um tipo a destruir à mão um camarim, antes de ter uma conversa intimista sobre um casamento falhado. Se me tivessem pedido uma pulsação ideal para o filme, era esta. Com os walk and talks pelos corredores do teatro, a câmara a espremer-se até entrar de rompante em bocados de ante-estreias, sempre a girar e a tirar o raio-x a cada bocado daquela Broadway, antes de se deixar ficar numa conversa de varanda pendurada sobre a Times Square. Isto é tanto mais fascinante se soubermos que Iñarritu filmou o grosso do filme a um único take, numa aposta que o próprio caracterizou de suicida, por ter acreditado que era essa a identidade a imprimir, a da vida que não tem edições. Foi honestamente um prazer.
Confesso que, depois de ter visto The Theory of Everything, não imaginei que Eddie Redmayne pudesse ter realmente alguém à sua altura este ano. Michael Keaton provou-me errado. A eminente grandeza do papel é, na verdade, indissociável do seu carácter autobiográfico: o actor que na juventude foi um icónico super-herói em cinema, antes de tombar numa longa travessia no deserto, não é menos do que a sua própria história. Poucas vezes se tem uma oportunidade destas - lembro-me da performance incrível de Mickey Rourke, em The Wrestler (2010) - e Keaton cuida dela com a alma. Num caso como noutro, sente-se. E a verdade é que é difícil bater o que é tão bom, quando também é tão real. Se repararmos, é o único dos cinco nomeados ao Óscar que não retrata alguém com uma perturbação mental ou física reconhecida. Dá para perceber o alcance? Keaton enche o ecrã. Nos seus laivos de entusiasmo esperançoso, na sua genuinidade mas, acima de qualquer outra coisa, na sua desolação. No seu rumo contra a maré, no seu exercício de transcendência entre derrotas maiores e menores, sempre iludido de que ainda há algo para ele, de que ainda há algo a ganhar. A cena no bar com a crítica do Times, à entrada do capítulo final, aquela inevitabilidade crua da derrota, é sétima arte em estado puro.
Birdman foi uma fénix dos regressos. Definitivamente não me teriam visto apostar que uma comédia-drama também marcaria a volta de um dos grandes nomes com quem cresci: Edward Norton faz o seu melhor filme numa década. Cáustico, agressivo, intenso, com um texto à sua medida. Parecia que já não tinha nada daquilo com ele, mas ressuscitou-nos à frente o tipo de performance que estava adormecida na memória do século passado (Fight Club, American History X, 25th Hour...). Grande, grande personalidade, uma arrogância de autor que é um privilégio ter de volta. Emma Stone começa a cumprir o percurso que todos lhe adivinhavam. Tem demasiado carisma, era tudo uma questão de tempo. O seu potencial excede esta nomeação, mas foi uma merecida porta de entrada na elite, na pele de uma miúda dura e revoltada, mas interessante, até madura. A cena com o pai na recepção do teatro teria valido a nomeação por si só. Num elenco tremendamente sustentado, não deixam de merecer referência Galifianakis, Naomi Watts e Andrea Riseborough, pelo nível que emprestaram ao produto final. Salientar também, e inevitavelmente, a enorme cinematografia de Emmanuel Lubezki, o mestre por detrás de Tree of Life ou Gravity. Não era um trabalho ortodoxo e Lubezki não o queria aceitar - com o essencial da filmagem entre os muros de um teatro, numa semi-comédia -, mas Iñarritu convenceu-o e o resultado da parceria criativa com o conterrâneo foi venerável.
Birdman é uma pérola. Um apontamento cativante e inspirador sobre a inelutável leveza do ser, tão leve como uma pena sujeita ao vento, tão leve que também pode voar, sobre a fragilidade envergonhada, mas despretensiosa, que nos faz humanos. Um filme tão artístico, tão bem executado e com tanto coração. Vai discutir o Óscar com Boyhood e, de uma vez por todas, espero que tenha o universo a conspirar a seu favor. Tem tudo para ser o melhor vencedor em muitos, muitos anos.
8.5/10
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