terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Foxcatcher. À equipa de sonho só faltou outra táctica


As performances e a realização são próprias de um melhor do ano. Se Foxcatcher não o chega a ser, só se pode culpar a si próprio: foi incapaz de finalizar com engenho o jogo que, por mérito integral, deixara à mercê.

Começo pelo incontornável: estamos na presença do elenco do ano. De repente, não me lembro de outro filme em que surjam três protagonistas a tanta altura. Carell, Ruffalo e Tatum são monumentais, simbioticamente perturbadores, são engrenagens feitas à medida uns dos outros, que se completam e engrandecem de forma indiscutível. A vénia maior parte, claro, para a transformação arrebatadora de Steve Carell, senhor de uma carreira a um universo de distância daquilo que plasma o seu John du Pont. A figura do filantropo bilionário e promíscuo, com ares de psicopata e um profundo complexo de inferioridade, é massiva e Carell respira-a por cada poro. A sua inquietação, a imprevisibilidade e o espectacular desconforto que provoca foram trabalhados ao pormenor e, como o próprio já admitiu em entrevista, acompanharam-no para fora do set, durante os meses de filmagem. Os seus silêncios gazeados, o olhar morto, a forma de andar, os timings e toda a comunicação não-verbal são apontamentos esmagadores. Não há muito a dizer, a não ser que, aos 52 anos, um ícone do humor televisivo americano se reinventou como referência.

Mark Ruffalo era o mais rotinado dos três, e o único, no fundo, que se apresentava como uma escolha natural para o filme. Diria que cumpre, sem grande margem para dúvidas, o melhor papel da carreira. Parece-me que também era o menos exigente dos três, no sentido em que implicava menos intensidade e menos mutação expressiva. Ruffalo ganha-o, porém, com uma consistência inestimável. Todo ele é frieza, maturidade e presença de espírito. Rodeado da pressão e da descompensação alheia, tantas vezes limítrofe, parece, todavia, passar sempre incólume, graças a uma paciência professoral e a uma grandeza muitas vezes pedagógica. Foi também ele um nomeado natural mas, se há coisa que ficam a dever ao filme, é a tripleta de indicações ao Óscar. Nunca pensei dizer isto, mas Chaning Tatum não podia ter sido esquecido.

Foxcatcher não foi ortodoxo a escolher os seus intérpretes mas, até se dermos isso de barato, Tatum foi uma aposta vagamente incompreensível. Por ironia, o jackpot deu e sobrou. Não estamos a falar da exibição de uma vida, nem de algo transcendental, mas o facto é que, como performance pedida, é perfeita. Tatum é realmente primário. Um monstro físico, absorto e introvertido, um campeão olímpico condenado, por capricho do destino, ao fardo de viver à sombra do irmão. Um homem-criança emocionalmente instável, com acessos de violência primata à flor da pele, influenciável, inseguro, treito a perder o chão. Não é um papel glamoroso ou metamórfico, mas não era fácil parecer real. Foi muito melhor do que isso e não merecia absolutamente a desconsideração a que a temporada dos prémios o votou.

Mas nem só de actores se fez o filme: Bennett Miller dá um tratado de realização. Não é à toa que, na 3ª longa metragem da carreira (Capote, Moneyball), consegue a 2ª nomeação ao Óscar. É um trabalho profundamente conceptual, idealizado para engrandecer todos os bocados da narrativa. Negro, demorado e contemplativo, com um desassossego que se entranha na pele, pejado de grandes planos, de um bom gosto extraordinário, e de solos inebriantes (Tatum no quarto de hotel, Carell no estábulo). Chamaram-lhe, com alguma felicidade, "um filme de terror em câmara lenta" e o facto é que Miller capitaliza os timings como um verdadeiro mestre. Estica as cenas e depois estica os vácuos um pouco mais, numa realização profundamente indutora, ameaçadora, agreste. Valeu-lhe a Palma de Ouro em Cannes. Com Damien Chazelle (Whiplash) e David Fincher (Gone Girl) fora da corrida, e sem ainda ter visto os préstimos de Iñárritu (Birdman), teria o meu voto já.

O que é que faltou, afinal? Costumo dizer que o valor de um argumento é quase sempre proporcional à forma como ele acaba, ou seja, ao talento e à inteligência para concretizar a sua proposta. Um filme pode, quiçá, dar-se ao luxo de ter ideias apenas razoáveis durante metade do tempo, se conseguir ser realmente brilhante no derradeiro capítulo. Como uma final, em que o herói não tem de ser majestático a tempo inteiro, tem é de fazer aquela jogada que define tudo e que o vai lembrar, porque a última imagem é a que fica. Não acho que o argumento de Foxcatcher seja excepcional nalgum momento. Pelo contrário, se há textos que fazem os protagonistas parecerem melhores, este é um caso em que as peças-chave são tão boas, que baralham a própria origem do génio. A caracterização das personagens e do ambiente é, de facto, muito forte mas, no resto, o guião original de Dan Futterman e Max Frye é mínimo. Falta-lhe visão. Segue uma recta pré-definida, evita nuances de maior e, sobretudo, falha no último terço, a nível de profundidade, de contemplação e da vivência propriamente dita do desenlace. Em vez de valer como prato principal, o destino das personagens é despachado como um digestivo pouco relevante, quase de rodapé. A verdade é que Foxcatcher ameaça-nos tempo demais para acabar sem que nos afectemos com ele, o que é um falhanço claro. Se a última imagem é a que subsiste, pois o filme fica-nos em dívida. O fim cortou-lhe as asas.

A minha opinião sobre a estrutura, porém, não desbarateia o essencial: é uma obra de peso, negríssima, brilhantemente dirigida e com um festival exibicional em campo. Obviamente, a não desperdiçar.

7.5/10

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