terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Darkest Hour: os Leões nunca morrem


"Lost causes are the only ones worth fighting for"

É quase impossível sermos apanhados de surpresa quando já temos expectativas muito altas. Darkest Hour é esse filme ainda melhor do que as melhores expectativas. Já era, desde o início, uma proposta irrecusável, mas o retrato do maior líder europeu do século foi mais esmagador do que isso, e transformou-se num jackpot de corpo e alma. Gary Oldman é um Óscar vivo e este Óscar merece ganhá-lo de graça, com honras de Estado. Darkest Hour são duas horas que podiam ser dadas na escola, sobre estadismo e transcendência, sobre carácter, coragem e heroísmo da vida real, mesmo se perante circunstâncias infinitamente maiores do que a vida, mesmo se numa solidão infinitamente maior do que a própria morte. É um filme abismal e arrepiante, de matar o fôlego a uma pancada de cada vez, para ver e rever, um filme cujo peso do mundo aos ombros nos verga numa vénia emocionante à resiliência da Liberdade e à grandeza dos gigantes que fazem a nossa História e a nossa Humanidade. 

Darkest Hour é uma bem-aventurança em tempos de desinspiração, uma dádiva em tempos de descrença, uma trepidante viagem pelo limbo mais trágico do século XX europeu, uma visão materializada do Inferno à nossa frente, no fio entre viver sem esperança ou morrer sem salvação, num grau de desalento e desolação que já não foi do nosso tempo, nem da nossa geração, um grau de perda no qual dificilmente poderíamos acreditar com os próprios olhos, mas que, por entre as descargas de nervos, temos a felicidade de conseguir sentir, chocados, como num ataque de pânico atrasado, como numa visão da vida a fugir-nos à frente dos olhos, perante tudo o que podíamos ter sacrificado, que é tudo o que conhecemos hoje. E neste quadro de luto, brilhantemente talhado a negro nas mãos de Joe Wright, no contexto, na forma, nos lugares e no significado, sobressai a luz incandescente de um homem singular, numa representação tão impensavelmente fascinante como ele próprio.


Este é o ponto que resume o filme. Tudo podia ter funcionado como funcionou (a realização, o argumento com conta, peso e medida de Anthony McCarten, tão dedicadamente bem escolhido e bem trabalhado, o glorioso elenco), mas nada podia ter funcionado como funcionou não fosse a obra-magna de Gary Oldman, um dos melhores da década e certamente a melhor da sua vida. Não tenho elogio maior a fazer a nenhum actor, do que dizer-lhe que foi do tamanho do próprio Churchill. Foi perfeito. E sorte a nossa, continuará a ser perfeito de todas as próximas vezes que o reencontrarmos, numa história, a Nossa, que merecerá sempre ser recontada, para podermos partilhar com ele as indecisões e as certezas, os maneirismos e os murmúrios, as palavras e a espectacular autoridade moral do Último Leão. Como escreveu um dia Manuel Alegre, "há sempre uma candeia/ dentro da própria desgraça" e "mesmo na noite mais triste/ há sempre alguém que resiste." Tal como lhe dedicou David Elrich na IndieWire, Darkest Hour é "o testemunho do poder das palavras e da sua infinita capacidade para nos inspirar", e da sua infinita capacidade para nos salvar, acrescentaria eu.


É impossível não pensar nisso, não pensar nele, e não sorrir. Quanto tamanho, quanta magnitude, quanto génio e engenho são necessários para fazer o caminho certo sozinho, com as próprias dúvidas e com todas as dúvidas dos outros, porque achamos que estamos a fazer a coisa certa. De todo o retrato portentoso que fica do filme, o que mais comove não são os murros na mesa, os berros no Gabinete de Guerra, ou os discursos inflamados ao Parlamento (pesem todos os nós na garganta); são, pelo contrário, os silêncios, o medo atroz, as hesitações, as tais falências e imperfeições que, tal como a maravilhosa Kristin Scott Thomas lhe explica a dada altura, o tornaram verdadeiramente preparado para o cargo.

São esses momentos apaixonantes e insubstituíveis com a mulher (aquele toque, aquele comprometimento, aquele confessionário, o tempero sagrado para todo o restante e imensurável temperamento), são o telefonema a Roosevelt, a incursão no metro (que por mais que seja História ficcionada, é uma cena brilhante e fidedigna na construção, genuína, do personagem) e a conversa com o Rei Jorge VI naquela meia sala, meio aposento lá de casa (menção obrigatória à capacidade de redenção de Ben Mendelsohn), para mim a cena do filme, pela dor daquela vulnerabilidade e pelas lágrimas nos olhos de ser, por uma vez, alguém que não ele a dizer que valia a pena ter esperança.

Darkest Hour é uma experiência cinematográfica, social e histórica, um bocado de tudo o que temos de melhor, da Política à Arte, da História à Filosofia e ao Humanismo, consubstanciada na ressurreição de um homem extraordinário num tempo extraordinário, maior do que a vida e do que um país, do tamanho de um século de História comum, uma história duríssima e poderosa, inspiradora e carismática, e que nos ensina a todos que, nem perante a escuridão, nem sequer perante o fim, temos o direito de desistir. Que nos ensina a todos um bocadinho do que é ser um herói com todas as letras.

9/10

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