Há coisas que fazemos só porque sentimos que estão certas. Não têm de ser racionais, muito ponderadas, mais ou menos lógicas, são, pura e simplesmente, naturais, mesmo que nunca as consigamos explicar. Até hoje, nunca dei uma boa justificação para ter vindo estudar para o Porto. A tropa do meu pai, o ser mais calmo, o ser acolhedor tem tudo o que se lhe diga, não são justificação nenhuma. Nunca vi sequer o plano curricular do meu curso, nada. Eu não tinha raiz nenhuma cá, podia ter ido para onde quisesse, e quase todos os que, como eu, tiveram de sair de casa para ir para a universidade, escolheram a capital. Mais prestigiada, maior, a capital. Não havia nenhuma razão suficientemente boa para eu ter vindo para o Porto, nenhuma suficientemente lógica para não ter ido para a Nova. Vim para o Porto. Não sei porquê, só sei que já sabia.
É curioso que a decisão com mais impacto no meu início de vida adulta tenha sido tão aleatória e, ao mesmo tempo, tão espectacularmente certa. Às vezes gostava de agradecer a alguém por ter jogado os dados e me mandado para cá. Eu não devia estar cá, não era suposto, mas alguém sabia melhor. Alguém encaminhou-me para os melhores anos da minha vida.
Vou ter tantas saudades do Porto que me dá vontade de chorar. O meu Porto. O Porto que me recebeu como se recebem os filhos, o Porto que foi tão melhor para mim do que eu alguma vez poderei explicar, o Porto que eu tenho debaixo da minha pele e que vai ser sempre a minha segunda casa, mesmo que eu vá conhecer os sonhos de lugares do mundo todo. Toda a gente que saiu de casa e que teve o privilégio de conseguir viver a Universidade sentirá que o seu novo lugar era especial. Eu gostava que tivessem vindo viver o Porto para perceber o que eu estou a dizer.
O Porto pachorrento, bonacheirão, frio, triste, acinzentando, mas que nunca te estranha. O Porto velho, patriarca, ancião, que cuida de ti, que te engana as saudades e que te garante que não haveria sítio nenhum em que estarias melhor a milhares de quilómetros de casa. Ver da varanda a Boavista deserta num domingo ao fim de tarde, e te sentires tão bem no teu canto. A nobreza de Cedofeita, com as dezenas de desconhecidos que se conheceram, o caseirismo, do talho ao supermercado e à tabacaria, em milhares de idas e vindas que foram as pequenas coisas da vida que se fez. Correr isto tudo, da República ao Palácio, ir descobrir a Baixa, em cada recanto um amigo, em cada bar e restaurante e viela e calçada horas de vida ganhas, dias e noites que nunca se vão esquecer. Aquele sentimento de pertença que não é explicável, seres disto, seres o Porto, teres todos os dias aquela sensação de teres feito a coisa certa, de estares no sítio certo.
O Calica, por deus. Qual confeitaria, o Calica tem vida própria, respirou e viveu comigo como os meus melhores amigos. Nem consigo conceber quantas horas passei no Calica, tantas que davam créditos para mais uma licenciatura. Que ícone, que fica no meu legado por lá ter convertido todos os que não o conheciam. E um abraço do fundo do coração ao Sr. Mário, mesmo que ele nunca vá ler isto. Não saberá ele, mas ele é o Porto. A química, a simbiose, o acolhimento, as coisas de pai. Tão competente que podia ter sido qualquer coisa. Sorte egoísta a minha ter ido trabalhar no Calica.
As Águas Férreas. Nunca ninguém conseguirá explicar como é que um apartamento tão velho, quase decrépito, sempre sujo, pôde saber tanto a casa. Nunca conseguirei exprimir por palavras o que lá cresci. A "minha" primeira casa, onde entrei com 18 anos feitos há um mês, uma verdadeira incubadora que me fez tão adulto quanto posso dizer que sou hoje. Uma casa que tive o inenarrável privilégio de partilhar com amor e com irmandade, com pessoas extraordinariamente importantes da minha vida, que foram a minha base e o meu sustento todos os dias em que estiveram comigo, e com quem voltava a fazer tudo outra vez, sem pensar um segundo que fosse. Uma casa em que tive a honra de receber toda a minha gente, todos quantos viveram isto comigo tanto quanto se poderia ter vivido, pessoas que serão minhas todos os dias da minha vida. Gosto tanto de vocês, caralho. Nunca vos poderei pagar o que foram para mim, que é muito mais do que podem imaginar. Foram vocês que fizeram isto tão grande, vocês, mais meus irmãos do que os irmãos que eu nunca tive. Se calhar não sabem, mas vocês foram a minha casa.
Vou amar o Porto todos os dias da minha vida, mas agora é hora de voltar ao meu lugar, porque é isso que quero, que sempre quis, e porque o meu Porto de estudante valeu tanto a pena mas acabou, como tinha de acabar, porque não se pode viver assim para sempre. Este Porto estará sempre no meu coração, mas não voltará a existir, e agora tenho de seguir em frente. Agora é tempo de fazer-me à vida, e tentar devolver-lhe modestamente toda a imensidão do que ela me deu nestes anos.
Nunca me esquecerei do Porto, e sei que o Porto se há de lembrar de mim. É mais do que eu poderia pedir.
Obrigado por tudo.
2 comentários:
Fantástico! Como tudo o que o Paulo escreve. Genial! Tão bem escrito, tão sentido, vindo do âmago da alma, do fundo do coração, do interior da pele. Belo, sublime!
Belo Porto sentido!
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