quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Um Zidane amarelo


Está diferente o Borussia, como aquelas pessoas que já viveram muita coisa e que acham que os melhores dias já lhes estão para trás. Na Bundesliga, o Bayern já foi embora, com a maldade da goleada a fresco no chão sagrado do Westfallen, e na Champions, a equipa que brincou no grupo da morte do ano passado tem tido um trajecto dorido no tormento de grupo que lhe voltou a sair em sorte. Depois de entrar a perder no San Paolo e de acolher outra derrota caseira com o Arsenal, ontem, um jogo que estava ganho chegou a parecer areia a escorrer entre os dedos. A 20 minutos do fim, o Nápoles estava a um golo de pôr o Borussia fora e tinha-o sitiado na sua própria casa. Acabou 'bem', é verdade, mas deixou a nu uma vulnerabilidade existencial que jamais víramos ao espectacular vice-campeão europeu no ano passado. Nem quando o Málaga esteve a décimas de segundos de acabar com o sonho na Alemanha, se o exército de Klopp parecera menos do que inexpugnável. Perder, então, teria sido uma mera nota de rodapé à mais apaixonante equipa europeia de 2012/2013. Mas está diferente, este Borussia.

Inflamado de lesões na defesa (ontem, à parte Weidenfeller, todo o quarteto titular do ano passado ficou fora), com golpes rudes no meio-campo (a partida de Goetze, claro, mas também a paragem forçada de Gundongan) e com Lewandowski incapaz de sacudir os anticorpos de que já pulula por outras paragens, escasseiam as boas notícias. Henrikh Hamleti Mkhitaryan é uma delas. O bailarino arménio que Klopp foi resgatar a Donetsk é um futebolista de raro quilate. Na casa e na camisa #10, parece feito de cristal, tamanhas são a elegância e a luz com que conduz o jogo da equipa. Não finta demais, nem toca, nem arrisca, nem corre demais. Gosta de perpassar os adversários como se levasse a bola por controlo remoto, deixando-a ir a rolar sozinha, antes de cirurgicamente dar o único golpe de rins com que tudo define. Olhamos para ele, e é fácil imaginá-lo de fraque e cartola, com um óculo sobre o imenso nariz, tradutor de toda a sua sabedoria. Ao fim destes meses por terras germânicas, sou forçado a dizer que não é só um criativo brilhante; Mkhitaryan tem qualquer coisa de zidanesco e esse é o maior elogio que lhe posso fazer.

Foram dele os melhores lances individuais do jogo e, apesar de não ter ficado directamente ligado ao resultado, a sua batuta foi indiscutivelmente a maior inspiração amarela. O Borussia, que ao quarto de hora do fim estava a um golo de ser eliminado, já só depende si para se qualificar na infernal montanha-russa do grupo da morte. Pela nova jóia da companhia e, sobretudo, porque os dias maus vão passar, o futebol agradece.

O que é a crise do Porto?


Como outros antes dele, Paulo Fonseca atravessa um ano zero especialmente doloroso. A herança era menos pesada do que as de outros tempos e o início até sugeriu exactamente o contrário: 6 vitórias seguidas, com uma Supertaça, liderança isolada da liga e estreia forasteira a ganhar na Europa. É verdade que o futebol não correspondia aos números cor-de-rosa, mas contra factos não há argumentos e esperou-se, no fundo, que os fins potenciassem os meios. Os pontos não eram consequência do jogo capaz, mas podiam vir a ser a sua causa. O encantamento durou até onde pôde, isto é, até à relva onde toda a gente está condenada a cair na realidade: a dos Campeões.

Foi a partir do jogo com o Atlético que tudo pareceu cru: o constrangimento da defesa, o dilema existencial no miolo, a falta de talento nas alas, a crise de Jackson, a incapacidade de impelir a equipa a partir do balneário, a letargia no banco, o discurso pobre do treinador. Os portistas acordaram do coma induzido em que se tinham deixado levar com aquela sensação de quem está a cair no vazio e, desde aí, não mais pararam de esbracejar. Numa equipa bamboleante, esses embalos foram as asas de borboleta que precipitaram o resto do furacão. Nos últimos 7 jogos, o campeão só ganhou 2. A vantagem na liga caiu para 1 ponto e, com toda a gente a ver, veio a maior de todas as lesa-majestades: a pior campanha caseira da História do clube na Liga dos Campeões, que torna a qualificação em não mais do que um rabisco teórico, dependente, quanto muito, de dois milagres.

Mas o que é, afinal, a crise do Porto? É só o treinador? Dificilmente costuma ser assim tão simples. A verdade é que, em Portugal, paciência é a antítese de qualquer idiossincrasia futebolística. Paulo Fonseca continua a ser o treinador que cometeu o estapafúrdio de levar o Paços de Ferreira a uma Liga dos Campeões e essas são coisas que raramente acontecem por acaso. Tem mais trabalho feito, por exemplo, do que Mourinho ou Villas-Boas quando assumiram a cadeira. Contudo, o que pareceu aos portistas uma ideia simpática de Verão, tornou-se numa bandeira revolucionária nos idos do Outono, quando, mesmo com a afectação europeia, não estamos perante nenhum escândalo. Vítor Pereira passou exactamente pelo mesmo e entregou um bicampeonato, ao ponto de hoje andar a ouvir o "volta que estás perdoado". Paulo Fonseca pode não ser o melhor treinador do mundo, mas não há tempo, nem acidentes suficientes, para dizer que é o pior.

Depois, há um facto de que só se fala de um jeito envergonhado, mas que tem tanta raridade, quanto peso: o departamento de futebol falhou de forma indiscutível na preparação do plantel. O Porto perdeu o jogador mais "insubstituível" da equipa e o seu único desequilibrador de classe mundial; para os seus lugares, apostou em dois mexicanos mais caros do que era suposto e em sete jovens da Liga. Não é propriamente a mesma coisa. Que a capacidade de investimento não seja a de outros tempos, toda a gente compreende. Que o scouting se permita a um ou dois equívocos, é o mínimo para quem tem acertado tantas vezes. Que se encare uma época de transição a substituir Moutinho e James por rapaziada do Paços e do Estoril, não.

Dito isto, acho que Paulo Fonseca não tem estado à altura. Desde logo, tem falhado no discurso e na maneira de estar. Em todas as oportunidades, foi provinciano na questão das arbitragens e, quanto à capacidade de contagiar a equipa, nunca chegou a ser mais do que opaco, da sala de imprensa ao banco. Jesualdo, mesmo que não fosse de topo, parecia sempre falar a sério. Villas-Boas era um treinador-modelo que dispensa apresentações. Vítor Pereira, mesmo com todas as aflições, parecia ao menos sentir sempre alguma coisa. Paulo Fonseca limita-se a parecer estremunhado... e a equipa joga como ele. Para além disso, é hoje evidente que a sua refundação táctica foi um fracasso.

O Porto jogava com o mesmo desenho desde que me lembro. Fonseca chegou e assumidamente mudou. Mexeu no miolo, na saída de bola, passou a pedir mais construção atrás, aproximou um médio do ataque. Como num semestre mau, porém, ninguém percebeu muito bem o que o professor queria. E quem percebeu, não sabe fazer. O Porto, de tractor que enchia cada molécula do campo, num futebol quase científico, passou a ser um grupo de bons rapazes no recreio, a tentar resolver os seus problemas ad hoc, com o que estiver mais à mão, à espera de um 'eureka!' qualquer que lhes redescubra a pólvora de todas as vezes. Diz-se que um treinador deve ganhar ou perder com as suas ideias; ter querido reinventar o Porto, no entanto, é em si mesma a razão porque não se estava preparado para o cargo.

A História diz que a estrutura do clube aguenta quase tudo, e ninguém ficará muito surpreendido se Paulo Fonseca acabar campeão. Resta saber se ele também aguenta e, mais importante, se vale sempre a pena arriscar até ao dia.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Aos anti-chauvinistas


Boa noite,

Era para pedir desculpa pelo enfado que neste momento aflige esta importante fracção da nossa nata intelectual. Já tivemos todos a honra de a conhecer e hoje sinto-me culpado. Desculpem-me essas pessoas mais superiores que não se dão às minudências da plebe e que passaram a última década devotas a um grande desígnio agregador: o de explicar que o Ronaldo é uma merda e que toda a alma que gosta dele e, pior, que o apoia com barulho, deve sentir-se irreprimivelmente estúpida por isso.

Desculpe-me essa gente que passou anos no rosário de que o vendido do Ronaldo se está a cagar para a Selecção. De que é um arrogantezinho sem berço que merece cair em todas as fossas da vida. Essas pessoas que festejaram com um sorriso balão cada uma das suas pequenas derrotas. Essa gente que nunca defendeu um melhor do mundo, mas sempre o pior. Essas pesssoas que estão fartas de ouvir, e que sabem que um português que tem carinho por ele, e que fala dele com o coração na boca, é um português parolo, um nacionalista bacoco com palas na vista, que só é digno da sua pena. Claro que o Ronaldo não merece Bolas de Ouro, que pare o povão ignorante de tratá-lo todas as semanas como tal. Que nojo, que pequeninos que nós somos.

Desculpem lá a nossa javardice hoje. O Ronaldo é um brutamontes de tal ordem que às vezes até os vossos 'argumentos' deixa debaixo da debulhadora. Maldito, não queremos bestas dessas por cá, mas ele anda impossível. E pronto, nós que somos uns chulos por um ou dois golinhos fáceis, lá fomos ser panascas outra vez e ainda vos vamos irritar o resto da semana contentes. Ainda por cima, a coisa já parecia meio morta, e lá faz ele esta sacanice de assinar a melhor exibição nacional que vimos na vida, leva a solo esta terriola a um Campeonato do Mundo e ainda avia em Zurique um terramoto que faria inveja ao Richter, que a noite ainda não acabou, e o Blatter já veio dizer que ele é fantástico e que se lixem os prazos de votações, porque à FIFA apetecia não ser um circo para variar. Gabo o vosso esforço para tentar remediar a coisa, nas declamações providenciais de que falar de prémios hoje é feio, de que ele não joga sozinho, de que finalmente está a fazer o seu dever, de que ele é o símbolo dos papa bolos que já nem se lembram da crise do país... mas hoje é esquecer. O gajo abusou.

Desculpem lá, mas para nós, os intelectualmente modestos, ser chauvinistas de segunda é mais forte do que podemos controlar. Não temos gostos educados o suficiente para saber que a virtude do mundo brota do 'estrangeiro' e que embandeirar a ralé de casa é a chatice dos saloios. Hoje, no dia 20 de Novembro do ano do Senhor de 2013, não fazemos a vénia ao Ronaldo porque ele é efectiva e inequivocamente o melhor futebolista que pisa o planeta Terra, mas por um capricho de ignorantes, que insistem em idolatrar aquele bicho banal, que marca golos piores do que o Ibra, tem menos peso do que o Ribéry e não vale uma madeixa do cabelo casto daquele rapazinho que passou um terço do ano lesionado.

Desculpem lá, mas se esta noite não têm um orgulho estupidamente descomunal no que fez o extraterrestre que nasceu no mesmo país do que vocês, é possível que vocês sejam o problema. Sabem, há um ano atrás, achei que era o limite. Que era fisicamente impossível fazer melhor do que aquilo, enquanto se leva com tamanha quantidade de merda na cara. Estava enganado. Ao contrário, enquanto o resto do mundo se permitiu a ser humano, ele continuou a ir ser outra coisa qualquer. Já tinha sido o melhor individualmente e perdeu. Já fora o melhor colectivamente e também perdeu. Hoje, limita-se a ser tão cruamente maior do que os outros, que nós, os pobres de espírito, já só podemos ter vergonha alheia. Aos anti-chauvinistas que andam por aí: desculpem lá, mas vão para a puta que vos pariu.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Prisoners. Facilmente um dos melhores do ano


Tem ambiente, personagens e, muito especialmente, o tipo de esquema argumentativo que, sendo concretizado com intensidade, inteligência e uma chispa de génio, é incapaz de falhar. Prisioners é, com propriedade, um dos filmes do ano.

Dois raptos, um pai disposto a correr até onde for preciso, um detective na posição nem sempre grata de fiel da balança e uma perversão de história não se sabe até que ponto funda compõem um cenário directamente saído de uma temporada de Criminal Minds. Na verdade, apesar de executado de forma irrepreensível, o argumento não tem nada de sobejamente novo. Mesmo assim, concretiza-se de uma forma senhorial, com fundações muito seguras, sem nunca inventar demais nem pôr os pés em ramos verdes. Prisoners tem, aliás, a característica particular de nunca guardar muitas cartas na mão. É um filme que se vai antecipando a si próprio e que joga habilmente com isso, dada a sua enorme competência em todos os outros vectores.

Os dias nublados, o frio e a chuva casam brilhantemente com o contexto, que depois também é rico a nível espacial, pejado de bosques, casas abandonadas, caves ou esconderijos que ainda disparam o seu apelo. Denis Villeneuve dominou o ambiente a seu bel-prazer e aproveitou-o ao máximo, num filme, qual policial, eminentemente cativante nesse campo, daqueles que preenchem o imaginário com facilidade e pedem energia, sombras e criatividade, coisa que o canadiano replica com distinção. Com uma história cativante, mas normal, e um ambiente atraente, mas comum, o filme, porém, dificilmente seria suficiente caso faltassem intensidade e performances. Como nos melhores, contudo, essas é que acabam por ser as suas chaves.

Prisoners tem uma capacidade fantástica de impor o ritmo e a sua força. De nos manter embrenhados, desconfiados, mas em dúvida, de nos envolver na corrida e de fazer-nos querer perceber, torcer por eles, torcer contra as probabilidades e contra o que vai acontecer. É uma escrita de primeiríssima água, exponenciada, obviamente, pelo nível do cast. Hugh Jackman deixou escancaradas as portas dos Óscares. Brutalmente aceso e mais emocional do que nunca, é visceral na sua maneira de estar, contagiante na sua corrida desesperada, capaz de nos fazer compadecer seja do que for que tem de fazer. Assina um tour de force majestoso que o coloca necessariamente na short list de melhores do ano. Jake Gyllenhaal, por seu lado, equilibra-o de forma apreciável. É forçado a ser mais contido e responsável, mas a sua performance escala em empatia e expressividade com o decorrer do filme e vem a completá-lo absolutamente.

Prisoners dura 2h30 mas nunca chegamos a dar por elas. É um thriller criminal de alto nível, com o dom, ainda por cima, de ter um daqueles corolários irresistíveis, com classe que abusa. No género, é difícil pedir melhor.

8/10

A Gaiola Dourada. Nem tudo o que luz é ouro


Tem exibido orgulhosamente o rótulo de sensação do ano em Portugal e não é para menos. Desde a estreia, no Verão, que A Gaiola Dourada se tem assemelhado a um fenómeno de culto, com números que falam por si: 750 mil espectadores até agora e o filme mais visto no país desde Avatar, há 4 anos atrás. Com espaço para gostar mais ou menos, a fórmula parecia inatacável.

Mesmo que talvez não nesta escala, acho que o sucesso é natural. O filme, que não é propriamente refundador, teve o mérito de entrar nos circuitos certos e, sobretudo, de capitalizar de forma magnífica o seu lobby positivo. Ao ser capaz de chegar a um certo patamar de aceitação popular, o efeito avalanche passou a ser uma consequência compreensível. Curto, ligeiro e a explorar uma das linhas matrizes da identidade nacional no último século - a emigração -, A Gaiola Dourada tornou-se num jackpot não por aquilo que é mas, essencialmente, por aquilo que representa. E isso, digo-o sem ponta de condescendência, consigo respeitar. Diria que, em Portugal, toda a gente tem emigrantes na família e esse factor emocional diz muito às pessoas, e funcionou por si próprio a congregar simpatias. Numa avaliação honesta, contudo, é impossível branquear o quão fraco aquilo é.

Não escrevo isto com particular gosto ou só por criticar um produto tão popularizado, mas A Gaiola Dourada é um filme absolutamente mau. Não tem comédia, sendo um deserto de narrativa sem dois segundos de piada; é desesperante quanto à caracterização do contexto e das pessoas, e não consegue ter uma única boa personagem (salvo conduto à beleza da luso-francesa Bárbara Cabrita); e, o mais grave de tudo, não tem pingo de alma. É um filme baço, que começa e se esgota no seu inefável populismo bacoco, que, em vez de gracejar e interpretar as idiossincrasias, reduz a uma caricatura parola e ultrapassada uma comunidade inteira.

Se era essa a intenção do realizador? Claro que não. Ruben Alves é um luso-descendente, que usou as fórmulas com boa-vontade, numa homenagem aos próprios pais. A verdade, infelizmente, é que o seu falhanço é grosseiro. A injecção incontinente de clichés, do bacalhau às bandeiras e aos terços, do benfica aos pastorinhos, à porteira e ao pedreiro, até ao desenlace baboseirão com o fado, são apontamentos tão elegantes como enfiar uma faca pelo ouvido. Um filme destes tinha a obrigação, ainda por cima com o background sentimental de quem o fez, de ilustrar as coisas com coração, graça e o seu quê de brilho. Quando um artista interpreta a realidade através do seu trabalho, tem de tratá-la, tem necessariamente de revelar talento para desconstruir valores e plasmar mensagens, tem, em suma, de saber cativar a audiência para a história que está a contar. À parte o argumento miserável, o único legado de A Gaiola Dourada é, pelo contrário, estigmatizar de uma forma profundamente ridícula tudo aquilo que era suposto celebrar em quadro.

3/10

sábado, 16 de novembro de 2013

To the Wonder. Malick ressacou a obra-prima


A minha relação com Terrence Malick é recente e é uma daquelas intensas que parece, ao mesmo tempo, condenada à turbulência. Não o conhecia quando, em 2011, fui engolido pela majestade inenarrável de Tree of Life. Um tipo de filme que eu nunca gostaria, com uma narrativa profundamente desestruturada, uma liberdade inventiva sem limites e um indiscutível egocentrismo do seu criador. O filme, porém, esmagou-me; é que, mesmo donde menos se espera, somos quase sempre capazes de reconhecer uma obra-prima quando a vimos. Como é natural, a curiosidade adensou-se desde aí, ainda que assente na desconfiança de que, em virtude do seu processo criativo, a veneração fosse sempre coisa volátil. To the Wonder veio confirmar isso mesmo.

A nível de alcance visual, o trabalho continua a ser de excepção, exponenciado pela fotografia sempre monumental de Emmanuel Lubezki. Malick tem um dom geoestratégico, e a escolha dos seus lugares e dos seus grandes planos não é menos do que um catálogo de chapas de cortar a respiração, feitas exactamente à medida dos seus tratados filosóficos. A banda sonora, na mesma linha, continua incapaz de desiludir. O traço mais distintivo da sua filmografia é, contudo, o gosto pelo risco e, paradoxalmente, esse é tanto a sua maior bênção como a sua grande maldição. Não me lembro de outro grande criador que seja tão pouco linear nos seus projectos, num tom arrogante e superior que ele nunca tenta sequer disfarçar. Se talvez é dessa forma que se fazem as coisas maiores, é igualmente assim que se falha mais do que a média. Respeitando a doutrina, é inevitável reconhecer que To the Wonder é um filme insuficiente.

Uma narrativa totalmente sinuosa, quando não tem um organismo forte a sustentá-la, é como um vírus que devora tudo o resto. Neste caso, isso acontece porque o filme (quase sem diálogo, como o anterior) é largamente deficitário no argumento, sendo este pretensioso e superficial, e nunca subtil, capaz de canalizar um raciocínio ou gracioso a passar a sua mensagem. A sua total inaptidão para agarrar o espectador e a sua tamanha falta de coesão fazem com que suportar as suas duas horas seja semelhante a um castigo.

Os filmes de Malick não dão muito espaço à interpretação, mas, mesmo assim, Olga Kurylenko destacou-se pela positiva e foi o que de mais genuíno ali houve, tão comprometida que esteve com a essência do filme, ao ponto de parecer emanar dele, física e emocionalmente. Também Javier Bardem, apesar do tempo de ecrã reduzido e da personagem ter sido mal levada, marcou pontos positivos. Já Ben Affleck, e como quase sempre, foi uma folha em branco.

To the Wonder tem algumas madeixas interessantes mas, no cômputo geral, é claramente um filme que não funciona, só passível de satisfazer um punhado de fãs de culto.

5/10

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A geração dos que não falharam


Poucos privilégios se podem comparar ao facto da minha geração ter começado a ver a Selecção no Euro-2000. Toda a gente tem os seus ídolos e os seus momentos, a lembrança das glórias que viram em miúdos, mas aquela equipa de ouro e grená não foi à Holanda e à Bélgica jogar um Campeonato da Europa; foi criar uma potência futebolística global, e isso é o tipo de coisa que a maioria das nações não viu nem nunca verá acontecer. É possível que, algures a meio daquele Inglaterra 2- Portugal 3, o melhor jogo que vou ver na vida, mesmo que vivesse mais duas ou três vezes, tenhamos destruído todos os planos que o Grande Arquitecto do Universo tinha para nós. O livre arbítrio não vem na Bíblia; foi concebido naquele chutão do Nuno Gomes ao Seaman, que fez com que um miúdo de 9 anos inutilizasse o resto da sua existência adulta a comemorar golos, porque nunca poderá festejar nenhum outro assim.

Na corrida pelo Mundial da Ásia, porém, voltou a estar tudo em causa. Na galeria de melhores de todos os tempos, calhou constar, pois, um jogo que começou numa deprimente noite de frio nas Antas, em que Figo nos escapou de penalty, no último lance do jogo, ao nosso próprio destino, e que só acabou num imersão de futebol em plena Banheira de Roterdão, na partida mais icónica de sempre do outro ilhéu que, então, nos abastecia de golos. Com a classe de um Raúl, foi esse o dia em que Pedro Pauleta pediu oficialmente a Holanda em casamento por nós, naquele que viria a ser um romance dos filmes, e que se mantém tão espectacularmente frutífero até hoje. Correu mal na Coreia, sim, mas era apenas a segunda vez na História que fazíamos duas fases finais seguidas. Estávamos só a começar.

O Euro-2004 acho que nunca teremos noção o que foi. Muitas pessoas lembram-no, hoje, como uma oportunidade perdida. Em consciência, acho impensável não lembrar toda a imensidão do que ganhámos. Da candeia sagrada que alumia o caminho a ser partilhada por dois dos maiores de sempre, à espinha de uma equipa campeã europeia, uma selecção perfeita num campeonato perfeito. Um país multicultural por génese, inundado pela Europa toda e mobilizado de coração nas mãos, no sol e nas cores de Junho, por um desígnio do tamanho da sua esfera armilar, e que teve de tudo, drama, espectáculo, heroísmo e tragédia. Perdemos, é verdade, mas o jogo é muito maior do que isso. Da história da nossa primeira final, os barcos e os autocarros e uma nação inteira nas suas calçadas de Norte a Sul são mais importantes do que qualquer vitória, porque ali, naquela simbiose que todos sentimos dos pés à cabeça, acontecesse o que acontecesse, éramos grandes e já sabíamos.

Assim, 2006 foi polir a reputação, porque já ninguém voltaria a descurar os bons rapazes. Estalámos os dedos e qualificámo-nos sem derrotas, ganhámos todos os jogos da fase de grupos, eliminámos dois candidatos crónicos e fizemos top-4 do mundo. Assim, naturalmente, como quem andou naquilo a vida toda. Foi hora do capitão, o último guardião da Geração de Ouro, completar a sua passagem de testemunho. A missão estava cumprida. Quando passou a braçadeira a Ronaldo, acredito que, como o Infante nos Descobrimentos, Figo tenha dito que jamais poderíamos voltar a olhar para trás. Não voltámos. Se em 2008 e 2010 não andámos de boca em boca, não foi por ficarmos a ver as coisas pela televisão, como nas décadas a preto e branco, nem sequer por fazermos feio nas primeiras fases. Estivemos sempre nas 8 ou nas 16 melhores que existem. Já não sabíamos fazer de outra maneira. E no ano passado, quando, à boa maneira portuguesa, um céu nublado foi tratado como uma tempestade tropical, e a selecção não prestava e Ronaldo era vulgar, a selecção encarregou-se de não prestar e Ronaldo de ser vulgar até ficarmos a dois postes nos penalties de eliminar a melhor selecção de todos os tempos.

É por isso que, na antecâmara do nosso bilhete mais difícil de todos, éramos tolos se não confiássemos. O português gosta de ser coitadinho, gosta de dizer mal e gosta de não gostar. À primeira contrariedade no play-off, o reflexo será sempre o de soltar os leões sobre os nossos e de deixar o circo incendiar, porque sermos mesquinhos e pequeninos é mais forte do que podemos controlar. De certo modo, num descarrilamento freudiano qualquer, acho que sempre gostámos de falhar, só porque destilar ódio dá-nos muito mais gozo do que vencer. Infelizmente para nós, a Selecção anda há década e meia a provar que é melhor do que isso. Uma selecção que é boa demais para fazer sentido, que é melhor do que nós e do que nós merecíamos, decidiu, nesse primeiro dia do Euro-2000, a perder 0-2 na madrugada do jogo, que, tal como escreveu Pessoa, era a hora. Hoje, no horizonte do primeiro Mundial lusófono, o nosso destino é ser aquele pontapé do Figo, um dia mais.