Poucos privilégios se podem comparar ao facto da minha geração ter começado a ver a Selecção no Euro-2000. Toda a gente tem os seus ídolos e os seus momentos, a lembrança das glórias que viram em miúdos, mas aquela equipa de ouro e grená não foi à Holanda e à Bélgica jogar um Campeonato da Europa; foi criar uma potência futebolística global, e isso é o tipo de coisa que a maioria das nações não viu nem nunca verá acontecer. É possível que, algures a meio daquele Inglaterra 2- Portugal 3, o melhor jogo que vou ver na vida, mesmo que vivesse mais duas ou três vezes, tenhamos destruído todos os planos que o Grande Arquitecto do Universo tinha para nós. O livre arbítrio não vem na Bíblia; foi concebido naquele chutão do Nuno Gomes ao Seaman, que fez com que um miúdo de 9 anos inutilizasse o resto da sua existência adulta a comemorar golos, porque nunca poderá festejar nenhum outro assim.
Na corrida pelo Mundial da Ásia, porém, voltou a estar tudo em causa. Na galeria de melhores de todos os tempos, calhou constar, pois, um jogo que começou numa deprimente noite de frio nas Antas, em que Figo nos escapou de penalty, no último lance do jogo, ao nosso próprio destino, e que só acabou num imersão de futebol em plena Banheira de Roterdão, na partida mais icónica de sempre do outro ilhéu que, então, nos abastecia de golos. Com a classe de um Raúl, foi esse o dia em que Pedro Pauleta pediu oficialmente a Holanda em casamento por nós, naquele que viria a ser um romance dos filmes, e que se mantém tão espectacularmente frutífero até hoje. Correu mal na Coreia, sim, mas era apenas a segunda vez na História que fazíamos duas fases finais seguidas. Estávamos só a começar.
O Euro-2004 acho que nunca teremos noção o que foi. Muitas pessoas lembram-no, hoje, como uma oportunidade perdida. Em consciência, acho impensável não lembrar toda a imensidão do que ganhámos. Da candeia sagrada que alumia o caminho a ser partilhada por dois dos maiores de sempre, à espinha de uma equipa campeã europeia, uma selecção perfeita num campeonato perfeito. Um país multicultural por génese, inundado pela Europa toda e mobilizado de coração nas mãos, no sol e nas cores de Junho, por um desígnio do tamanho da sua esfera armilar, e que teve de tudo, drama, espectáculo, heroísmo e tragédia. Perdemos, é verdade, mas o jogo é muito maior do que isso. Da história da nossa primeira final, os barcos e os autocarros e uma nação inteira nas suas calçadas de Norte a Sul são mais importantes do que qualquer vitória, porque ali, naquela simbiose que todos sentimos dos pés à cabeça, acontecesse o que acontecesse, éramos grandes e já sabíamos.
Assim, 2006 foi polir a reputação, porque já ninguém voltaria a descurar os bons rapazes. Estalámos os dedos e qualificámo-nos sem derrotas, ganhámos todos os jogos da fase de grupos, eliminámos dois candidatos crónicos e fizemos top-4 do mundo. Assim, naturalmente, como quem andou naquilo a vida toda. Foi hora do capitão, o último guardião da Geração de Ouro, completar a sua passagem de testemunho. A missão estava cumprida. Quando passou a braçadeira a Ronaldo, acredito que, como o Infante nos Descobrimentos, Figo tenha dito que jamais poderíamos voltar a olhar para trás. Não voltámos. Se em 2008 e 2010 não andámos de boca em boca, não foi por ficarmos a ver as coisas pela televisão, como nas décadas a preto e branco, nem sequer por fazermos feio nas primeiras fases. Estivemos sempre nas 8 ou nas 16 melhores que existem. Já não sabíamos fazer de outra maneira. E no ano passado, quando, à boa maneira portuguesa, um céu nublado foi tratado como uma tempestade tropical, e a selecção não prestava e Ronaldo era vulgar, a selecção encarregou-se de não prestar e Ronaldo de ser vulgar até ficarmos a dois postes nos penalties de eliminar a melhor selecção de todos os tempos.
É por isso que, na antecâmara do nosso bilhete mais difícil de todos, éramos tolos se não confiássemos. O português gosta de ser coitadinho, gosta de dizer mal e gosta de não gostar. À primeira contrariedade no play-off, o reflexo será sempre o de soltar os leões sobre os nossos e de deixar o circo incendiar, porque sermos mesquinhos e pequeninos é mais forte do que podemos controlar. De certo modo, num descarrilamento freudiano qualquer, acho que sempre gostámos de falhar, só porque destilar ódio dá-nos muito mais gozo do que vencer. Infelizmente para nós, a Selecção anda há década e meia a provar que é melhor do que isso. Uma selecção que é boa demais para fazer sentido, que é melhor do que nós e do que nós merecíamos, decidiu, nesse primeiro dia do Euro-2000, a perder 0-2 na madrugada do jogo, que, tal como escreveu Pessoa, era a hora. Hoje, no horizonte do primeiro Mundial lusófono, o nosso destino é ser aquele pontapé do Figo, um dia mais.
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