"I have no choice but to direct my energies toward the acquisiton of fame and fortune. Frankly, I have no taste for either poverty or honest labor, so writing is the only recourse left for me." Hunter S. Thompson
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
Philomena. Tão singelo que custa levar a mal a sobrevalorização
O filme mais modesto dos Óscares 2014 conta a história de um jornalista e da velha senhora que este vai guiar na busca por um filho há muito perdido. Baseado em factos verídicos do início da década passada, coloca Martin Sixsmith (Steve Coogan), um ex-assessor de imprensa a encetar um regresso envergonhado ao jornalismo, na pista de Philomena (Judi Dench), uma matriarca irlandesa que escondera um segredo durante meio século: enquanto jovem, fora desterrada grávida para um convento de freiras, onde a mantiveram escrava durante anos e venderam o seu filho para adopção. Era um argumento generoso quanto baste e que, pessoalmente, me criou razoáveis expectativas, quanto mais não fosse pelo alcance do jornalismo de investigação e da história de 'interesse humano'. A falência do filme é a incapacidade de transformar o livro, que deve ser efectivamente bom, num guião digno desse nome.
Steve Coogan, o protagonista, e Jeff Popes foram nomeados tanto para os Globos de Ouro como para os Óscares, mas esse é um efeito que me custa muito a entender. O seu argumento é, na verdade, um texto em 2D: insípido, liso, sem poder imagético nem génio criador (aqui com as culpas a repartirem-se pelo realizador Stephen Frears, um duplo nomeado da Academia). O texto não tem engenho para imprimir qualquer quebra na acção e nunca surpreende, nunca se afasta, nem por um segundo, da linha sensaborona que lhe conseguimos antecipar desde o primeiro segundo. As coisas não vivem para fora do ecrã e não nos contagiam nem deslumbram, também a nível emocional. Isso faz dele, como é evidente, um produto muito pouco impressionante. Tem o mérito de não ser um filme longo nem pretensioso, que aqui e ali ganha uns pontos pelo seu modo dócil, e tem um fim melhor do que a média do resto, com, pelo menos, uma cena muito intensa, cáustica, ela sim muito bem gerida, mesmo que não seja suficiente para validá-lo. E mesmo que tenha tido a felicidade de contar com Dame Judi Dench.
É ela quem tempera quase sempre as coisas para melhor, cativando-nos num jeito adorável e muito próprio. É uma mulher com todas as razões para ser perturbada e amargurada, mas que escolhe sempre o caminho mais difícil e menos óbvio, senhora de uma leveza e de uma doçura extraordinárias, que dão ao filme a pureza desarmante que constitui o seu maior predicado. Já Steve Coogan não está à altura do que se pedia, também na interpretação. É demasiado mortiço em cena, falta-lhe desenvoltura e todos os momentos em que se apresenta magnânimo ou justiceiro soam inevitavelmente artificiais.
Philomena não é um filme mau. É um filme simples, com uma história e uma protagonista honestas, mas nunca mais do que isso. Porventura teria sempre o seu lugar, mas não pertence à passadeira vermelha. Uma dezena de filmes justificaria a nomeação em vez e é chocante pensar que Inside Llewyn Davis foi um deles.
6/10
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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
House of Cards. Um porta-aviões à deriva
Kevin Spacey. Se esta crónica acabasse agora, já faria sentido. Seria auto-explicativa e resumiria plenamente a grandeza essencial do que é suposto tratar. Porque é impossível assistir a um único episódio sem pensar no privilégio que é ter podido contar com tamanho monstro no papel principal. A série é muito boa em muitas nuances. É pior em várias outras e, no global, ainda não foi capaz de atingir determinado patamar. Isto vale para tudo, menos para ele.
Spacey é um mundo à parte, um espectáculo só dele, é insubstituível. Talvez não seja justo chamar one man show a House of Cards, mas certo é que a sua estatura banaliza tudo o resto. Não é um papel fácil de quantificar nos moldes normais, porque não é uma performance de relevo técnico. Não é uma reinvenção e não tem especificidade interpretativa, pelo menos como a costumamos identificar. O que nos passa é que é um papel em directo, sem esforço, que é o carisma de Spacey em estado puro, ligeiramente temperado por um guião. Nesse sentido, talvez parta em desvantagem na luta pelos prémios, como aconteceu no primeiro ano. Certo é que é impensável que lhe possam negar reconhecimento até ao fim. Frank Underwood não tem culpa de precisar de tão pouco para ser tão arrogantemente bom.
(aqui os emmys do ano passado a explorarem a classe sem pudor)
Há um ano, revi entusiasticamente o piloto, antecipando-o como uma série de culto. Hoje, parece-me seguro dizer que House of Cards se fez até maior. Reconhecida pela crítica, dos emmys aos globos - com Robin Wright a estrear as honras -, tem corrido cada vez mais nas veias dos espectadores, como negrume no organismo dos Underwood. Com duas temporadas completas, diria que o principal factor de sucesso é o facto da série ser tão inteligente a nível comercial. Longe de ser um produto vulgar, teve muita facilidade em cativar pela provocação e pelo jogo sujo. Tem um argumento desamorável e cru, mas abusador na exacta medida em que nos seduz. Jamais é romântica, mas nunca é agreste pelo mero prazer do desconforto. É, em vez, utilitária na sua falta de escrúpulos. Cirúrgica nas distorções emocionais e sexuais que lhe dão cor. Com todos os seus arrojos, não tem problemas em ir às cordas, mas é sempre equilibrada ao fazê-lo.
Tendo um formato particular, ou seja, não sendo teletransmitida nos Estados Unidos, mas antes libertada em pacote na internet, diria que, em vez de série de culto, House of Cards soube adicionar determinado tipo de peculiaridades a um produto de massas. Facto é que, nestas duas temporadas, a série gozou de um capital de confiança que só é devotado às favoritas. Assumiu-se como uma obra nobiliárquica, de excelência e que não resistimos a acompanhar por bom gosto. E é isso que faz eco do essencial, apesar de, infelizmente, não a ter alheado de falências fundas que não seriam de esperar, e que afectaram decisivamente o seu alcance.
Reconhecendo-lhe todos os méritos, sou forçado a deixar claro que, para mim, House of Cards ainda está bastante à margem do seu potencial, e que, nesta altura, já tinha a obrigação de valer mais. Pior do que isso, veio a demonstrar vulnerabilidades primárias que nunca pensei que a fossem afligir. Desde logo ao nível do cast, que é tão bom, quanto é incompreensível a gestão que o argumento faz dele. Entre mortes, saídas de cena e narrativas perdidas, instala-se um caos que nos deixa a todos confusos. Pressionar os pontos certos e não ter amor às perdas é um factor essencial para ter sucesso; fazê-lo de um modo minimalista é ainda mais. Das piores coisas que uma série pode fazer é gerir as suas pessoas por atacado, porque começar a cortá-las sem critério sugere, apenas, que faltaram ideias para fazer melhor. House of Cards prestou-se a esse caminho minado. Há narrativas interrompidas de maneira abrupta e ilógica, sem qualquer necessidade. Há personagens que nem conseguimos perceber o que lá foram fazer. E depois há os tais curtos-circuitos com pessoas focais, que são um manifesto excesso.
O mais grave, contudo, chegou no quadro final. O fim da primeira temporada deixou-me um amargo de boca, pela linearidade, mas considerei-o parte natural do processo. Já todo o desenlace da segunda é absolutamente incompreensível, e o season finale, em particular, é um absurdo. Parece que foi metralhada, numa única hora, matéria que dava para mais meia temporada, assassinando-se etapas e corrompendo-se a coerência da narrativa. Andou tudo demasiado rápido, sem fundamento, especulação, classe, nem criatividade, justamente as características que definiram o tom da série nos seus melhores momentos e a tornaram especial. Foi como fazer um exame de fim de curso só com tópicos. Como se toda a equipa de argumentistas tivesse sido despedida em cima da hora ou se a produtora tivesse cancelado a última meia dúzia de episódios. Foi um tipo de precipitação inexplicável, completamente contranatura ao seu próprio credo, que criou um borrão do tamanho da pintura.
House of Cards continua a ter direcção, contexto, uma grande equipa e um super-craque. Continua, inclusive, a ter uma claque fiel e um vasto número de admiradores. No futuro próximo, todavia, ou arranja um treinador digno desse nome ou caminhará para o esquecimento.
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O segredo de Ancelotti
O que sempre me fascinou em Carlo Ancelotti foi não ter a certeza de onde emanava a sua autoridade. Prefiro treinadores de outra casta, não escondo. Mourinho sempre foi o modelo. Ferguson era a instituição, Capello um assassino, e ultimamente rendi-me a Klopp e a Simeone. Um punhado de carismáticos, exuberantes, daqueles que seguiríamos para a guerra de todas as vezes. Irrepreensíveis no táctico, tanto quanto líderes de homens e irascíveis na batalha. Ancelotti sempre foi uma das minhas excepções, pela sua suprema habilidade entre mundos. Explico: é comum que os treinadores se dividam entre feitos e feitios, entre as figuras patriarcais e os que têm fogo nos olhos, entre os agregadores e os reaccionários, muitas vezes entre os bons sensos e as auras. Ancelotti, por seu lado, sempre se dedicou a perverter esse dogma, com a sapiência de um mago.
É um dos "meus" primeiros treinadores, na medida em que presidiu a uma das equipas da minha vida: o brutalizante Milan europeu de início do século. Na sua célebre 'árvore da vida', uma equipa que, a alimentar Sheva ou Pippo Inzaghi, parecia jogar com 11 médios ou mais, partilharam o campo alguns dos mais extraordinários de toda uma geração: Rui Costa, Kaká, Seedorf, Pirlo. Todos no auge. Esse Milan era uma pomada de bem jogar e de melhor dominar. Uma teia quase perfeita que parecia mover-se em piloto automático, não estivesse o piloto tão bem identificado. Se há equipas feitas a partir da costela de um treinador, essa foi uma delas. Numa palavra, aquele Milan era elegante. Impunha a sua reputação sem esforço, como se todos o soubessem respeitar mesmo se ainda não o conhecessem. Era orgânico, natural, fácil na sua venerabilidade. Como o seu treinador.
Costuma dizer-se que um líder que o afirma não é líder nenhum. Ancelotti é esse epíteto. O que sempre me fascinou nele é que nunca tenha de levantar um dedo. Que não faça barulho, que não provoque, que não tenha as boas histórias e o melhor carisma, que nunca seja ou esteja no centro. E que, mesmo assim, lhe brilhe na vista o je ne sais quoi. Que toda a gente que tenha trabalhado com ele o admire tanto e que o palmarés tenha sido tão extraordinário por todos os países onde já treinou. Ancelotti não desperta paixões, como Mourinho ou Klopp. Não é um plenipotenciário, como Ferguson ou Capello. Não é indiferente para menos, como Benítez ou Mancini. É um tipo quase só dele. Um Gandalf do futebol, que nunca tem de gritar, de reagir ou de dar nas vistas. Basta-lhe um esgar luminoso para termos a certeza de que ele sabe todos os segredos do mundo e que mais vale confiar.
Depois do circo do defeso e do incêndio mourinhista, não sabia o que esperar deste Real. Achei a política de transferências idiótica, sabia que o Atlético ia queimar etapas e achava que o Barça era naturalmente mais cicatrizável. Sobrava um trunfo, quiçá solitário, no bafo ora demente de Chamartín: o Real não poderia ter escolhido ninguém melhor para aquele banco. A época nem tem sido amorosa. Primeiro, porque a herança era efectivamente de uma tonelada. Depois, porque o reforço mais caro do mundo passou metade do tempo lesionado e, por último, porque tem-se jogado realmente a primeira liga a três em anos. Até há um par de meses, o mundo merengue achava mesmo que nem em segundo ia ficar. Em Março, está na liderança isolada de La Liga, na final da Taça do Rei, depois de massacrar o rival, e tem espalhado glamour pelo continente fora, ao nível do que de melhor fez o Moudrid.
De Ronaldo não vou falar, pela redundância. A alucinação competitiva própria de uma galáxia trekiana qualquer foi sempre oferecida por igual a qualquer um. Hoje, contudo, parece que todos à sua volta estão melhores. Benzema, depois das infindáveis dores de crescimento, reclama de vez o lugar para que estava destinado, entre os melhores pontas do mundo. Está confiante, eléctrico, imparável, ao que não será estranha a proximidade de Zidane, possibilitada pela diplomacia do treinador. Bale passou metade da época lesionado e as pessoas dizem que, na verdade, está a fazer um óptimo ano de estreia. Foi protegido vez e sobrevez pelo técnico, que o lançou da forma mais sustentada e paciente possível, sabendo sempre potenciar os outros, numa lição de bem gerir (Jesé já vai nas bocas da selecção, imagine-se). Di María, em tempos um vagabundo de pouco compromisso, foi de extremo de classe mundial a um aparente interior de classe espacial. Hoje, em Gelsenkirchen, parecia que tinha passado a carreira toda a ajudar trincos e a carregar jogo no círculo central, à velocidade do som. Modric, o pequeno genial, ressuscitou com uma batuta maior do que ele. Pepe e Marcelo regeneraram-se e até Casillas tem podido voltar a brilhar, mesmo a viver a maior parte no banco.
O que estou a dizer não é que a equipa foi do inferno ao céu. Seria, aliás, um erro primário desvalorizar algo do que Mourinho fez em Madrid, como o próprio Ancelotti reconheceu esta semana, de forma tão inteligente quanto honesta. Mourinho foi o melhor campeão de sempre, ganhou todos os troféus internos, fez três meias-finais europeias e devolveu ao clube a dimensão continental que, é bom não esquecer, andou ostracizada da capital durante anos suficientes. Mais do que isso, diria que é impossível dissociar o que pode vir a ser conseguido este ano do imenso legado português. Certo é que não será fácil fazer melhor. Seja como for, e até ver, este Madrid é um luxo. Uma equipa que abusa capacidade e que não poderia aparentar mais saúde na cabeça. Uma equipa a que a lógica desaconselha o favoritismo, mas que sibila um segredo: o de que sabe como lá chegar. Como o seu treinador.
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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014
True Detective. Não é tão boa como ouviram dizer
Nos últimos meses, a série dedicou-se a coleccionar lideranças em listas das mais esperadas do ano. A história de dois detectives da América sulista na pista de um serial killer não esbanjava novidade nem sedução, mas o selo da HBO e a recruta de Matthew McConaughey e Woody Harrelson, ambos em fases douradas das respectivas carreiras, criaram o aparato, alimentado por bons trailers e vastamente sancionado pelas primeiras críticas. No início de Janeiro, o episódio inaugural não fez por menos e despojou A Guerra dos Tronos como abertura mais vista de sempre da HBO. Da minha parte, sou forçado a constatar que não, True Detective não é assim tão boa como ouviram dizer. Na sua tonelagem gótica e incrivelmente própria, é muito melhor do que isso.
Não é, porém, um amor instantâneo, porque primeiro estranha-se. À cabeça, True Detective é algo como uma martelada arrogante de modos e de conceitos. Uma série provocadora, no sentido em que não faz nada para que gostemos dela. É propositadamente pesada, estranha, desconfortável. Não ficamos convencidos à partida e o instinto é achar que não vai ser suficiente. Demora-se, é violentamente sombria e repele-nos com a pretensão da sua filosofia. Certo é que, quando damos de conta, já estamos completa e magneticamente colados. True Detective é um objecto perverso porque nos ressaca antes de viciar, contagiando-nos de um jeito inapelável para o seu vórtex de negrume, como quando se olha para um abismo. Aí, já não conseguimos parar de olhar. Não podemos e já não queremos.
A série é dos produtos mais idiossincráticos de que me lembro. No fim de contas, a verdade é que tem uma magia e uma proposta bestiais. Uma sedução tão elegante quanto perigosa, que não sabemos recusar. A primeira temporada tem um único realizador, portanto a fidelidade de conceito foi salvaguardada. Assina Cary Fukunaga, um jovem de 36 anos e curta carreira, mas já premiado em Sundance (Sin Nombre, 2009) que, até ver, tem feito um trabalho no limite da perfeição, na recriação paralela do obscurantismo do caso, do ambiente e daqueles que o fazem.
Como era inevitável, a narrativa também transborda as medidas, sendo o elemento-chave a forma brilhante como sabe vender a história. Primeiro na criatividade das timelines: a trama de um serial killer e dos dois detectives que o apanharam é contada num intervalo de 17 anos, com os flashbacks a serem dois terços da acção, mas com o halo a manter-se transversal a tudo; depois, no requinte cirúrgico do que se concebe. Tudo é executado num conta-gotas magistral, cheio de segredos e insinuações, de pistas e ilusões, que torna quaisquer momentos normais em instantes tensos, cinematográficos e, no limite, imprevisíveis, que nos estimulam até à medula. Mesmo quando não acontece nada, tudo vale a pena, e uma série capaz de impressionar tanto com a mera sugestão do que pode fazer, é sempre uma série especial. O criador e showrunner é Nic Pizzolatto (38 anos), um ex-professor universitário e romancista em estreia absoluta nestas andanças, e que não podia ter inventado forma melhor de o fazer.
Falei no cast de início e os galões não ficam, de facto, por mãos alheias. Se dúvidas houvesse, Mat McConaughey está mesmo no período mais glorioso da sua vida profissional. Depois do melhor filme da carreira - o estupendo Mud, estreado em Sundance há ano e meio -, do Globo de Ouro por Dallas Buyers e do mais que antecipado Óscar, o texano arrisca-se bem a ir buscar uma tripleta extraterrestre com um Emmy no fim do Verão, a continuar por este andar. O seu Detective Rust Cohle é difícil de descrever, o que, neste caso, é efectivamente uma coisa boa e, sem volta a dar, a trave-mestra que eleva tudo o resto. É um misto entre polícia obcecado e homem destruído, entre compromisso com o trabalho e uma filosófica falta de rumo e assombração, puro nos gestos mas indecifrável no resto. Uma figura que despeja génio, daquelas que, mesmo num dia mau, seria capaz de impressionar qualquer um à sua volta, sem esforço. Que deslumbra e assusta na mesma medida, como um velho ancião a contar as lendas e as profecias da sua vida. Parte da acção é exactamente isso: ele sentado a uma cadeira, velho, desfeito, gasto e consumido por 20 anos de uma demanda. O poder que irradia nesse estado é tudo o que há para dizer sobre o seu momento de graça.
Woody Harrelson, todavia, não pode ser descurado. Mantém a máxima de que não sabe fazer nada mal e nunca é um secundário na verdadeira acepção da palavra, pelo carácter, pela omnipresença em todos os pontos essenciais, pelo contra-peso. É uma personagem muito empática pela humanidade latente, pela sobriedade, pela forma genuína e honesta como reage às coisas, mesmo que nunca seja imaculado. Como era de querer, fazem uma parelha tão fracturante em cena como ideal fora dela. A fechar o leque está a cativante Michelle Monaghan (Gone Baby Gone, Source Code), mulher de Harrelson, que empresta expressividade à história e serve de pêndulo ao ambiente e à própria relação entre os protagonistas.
A série tem a particularidade de ser uma antologia, o que significa que a segunda temporada terá sempre realizador, argumento e protagonistas diferentes. Com 8 episódios, a ordem é, portanto, aproveitar o maná enquanto ele cai do céu, coisa que, até ver, tem correspondido religiosamente a cada semana. True Detective é o primeiro grande acontecimento do ano e, acredito, um que ficará muito para além dele.
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terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
Breaking Bad. A supra-série
À cabeça é, sem grande esforço, a série mais extraordinariamente bem realizada que já vi. Ao contrário do cinema, onde o realizador é sempre uma peça fulcral, as séries têm essa nuance de fazerem-nos parecer secundários. A longitude e o alcance da acção são o que marca, e a câmara é muito mais impessoal, ao ponto de parecer que qualquer um a pode fazer. Não aqui. A realização foi sempre uma parte insubstituível do conceito da série. Devota, cheia, com o dom de canalizar ela própria a mensagem que se estava a passar. Os planos imensos e os silêncios vazios do Novo México desértico, a sua opulência grave e majestática e a forma cirúrgica e perigosa como lidou com os momentos de escalada nervosa, tornaram-na numa absoluta imagem de marca. Se Breaking Bad teve o nível que teve, deve-o, entre todo o resto, à sua coesão e compleição.
Fora o conceito e a direcção, o texto conseguiu ser extraterrestre. Costumo dizer que é fácil identificar um grande argumento quando o vemos, mas Breaking Bad foi o tipo de texto que nem dava para ver chegar. Há episódios que não são bons, são outra coisa qualquer, uma espécie de antimatéria que não sabemos de onde veio, que não faz particular sentido, que não contribui para o evoluir da acção, mas que não é menos do que arte em estado puro. E vai daí, num rasgo subliminar, até tinha tudo a ver com qualquer coisa e o resto do tempo passávamos só a tentar entender como raio alguém foi bom o suficiente para o concretizar assim. Vince Gilligan merecia que, de cada vez que Breaking Bad fosse lembrada, dissessem sempre o seu nome.
Ninguém que a tenha visto pode dizer, em consciência, que algo daquilo é mau. E, no entanto, não me foi suficiente durante tempo que baste. Como uma mulher perfeita, que tem tudo, que é um par ideal, mas que não tem o je ne sais quoi. Vi as duas primeiras temporadas e depois parei. Breaking Bad cansava-me. Era quase sempre boa quando a via, mas era igualmente uma experiência exaustiva. Arrastada, contemplativa, pretensiosa. Compensava, mas aquela química para seduzir-nos ao ecrã, para passar-nos o que não se mede, o que não pode ser executado por uma grande lente, um grande guião e por grandes actores, tendia a rarear. De uma forma ou de outra, acho que lhe faltou isso até ao fim. Uma vulnerabilidade no seu castelo de gelo, algo que pudéssemos assimilar, outra maneira de falar ao espectador. Não sei se me faço entender, ou se mais alguém o partilha, mas tenho pena que a série nunca me tenha inspirado mais. Não no sentido chorável do termo, mas no domínio pessoal. Impressionou, agrediu, deslumbrou, chocou. Mas, seja por fidelidade ao conceito, admito isso, seja por défice de humanidade (com a eterna excepção às costas de Aaron Paul), ficou-me a essa margem.
Escrevo isto porque, como é bom de ver, depois do frenesim da despedida, forcei-me a voltar a ela. As percepções que tinha mantiveram-se até ao fim, mas as primeiras até aumentaram. Breaking Bad foi-se sempre reinventando para melhor. Teve o mérito de nunca se aligeirar, de nunca acomodar-se à sombra dos louros alcançados. O negrume inumano que veio a atingir, a crueldade, o desamor, a amoralidade e o castigo foram de um nível a partir do qual não é possível fazer melhor. A série fez uma escalada corajosa a pulso de ferro, desafiou-se constantemente a si própria e acabou em zénite. Não há nada que possa respeitar numa mais do que isso.
Quando acabou, Sir Anthony Hopkins definiu o cast como o melhor conjunto de actores que vira na vida. Sem tornar isto exaustivo com os secundários (vénia inteira a Dean Norris e Jonathan Banks), o alcance do que fizeram Bryan Cranston e Aaron Paul foi, de facto, hipnotizante. Cranston viveu um lead eterno que dispensa considerações e que passará à História como um símbolo cultural. Aaron Paul, todavia, foi quem sacou os mais absolutamente geniais bocados interpretativos de tudo o que se fez, coisas tão incrivelmente boas que mereciam que aquilo se visse só por causa dele. A ocasional falta de mística valeu para tudo, menos para ele. Nunca para aquele coração colossal, da cabeça aos pés. Que não tenha chegado a ganhar o Globo de Ouro é uma injustiça de todos os tempos.
Breaking Bad não é uma das séries da minha vida. Por isso, é tanto mais importante deixar claro que é uma das verdadeiramente melhores que já vi. E no fim tomou-me, de facto, e consumiu-me como um viciado, esmagando-me no gigantismo da sua tragédia. Acabada que está, não me perdoaria se não lhe prestasse esse reconhecimento. Se não deixasse claro que, no fim do dia, não é uma série que tenha a ver com gostos ou com estilos, porque isso não passam de notas de rodapé ao seu carácter obrigatório. Breaking Bad é tão necessária como ler um clássico, com a diferença de que, no futuro, vão-nos invejar por ter sido seus contemporâneos.
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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
Um natural
A morte agride-nos sempre. A pessoal, claro, mas, com contornos particulares, a mediática. Pela proliferação de testemunhos, pelo bombardeamento de pêsames, pela malha globalizante de reconhecimento. Vimos todos isso nos últimos meses, infelizmente, a contar dos mais diversos quadrantes. Não comparando o que não é comparável, devo dizer que hoje foi um dia especialmente triste. Não foi um estadista que morreu, um desportista da nação ou um James Dean. A partida, porém, de um talento tão extremo, e ainda tão estupidamente novo, doeu como uma bastonada no crânio. Ver, não acreditar e depois haver qualquer coisa de físico nessa repulsa e nessa negação.
Philip Seymour Hoffman não era um ícone. Não era um tipo romanceável, nem era sequer, na maior parte do tempo, o papel principal. Não era camaleónico, excêntrico, nem era um incendiário. Tinha um registo muito próprio, o tipo baixo, com barriga, rosáceas e olhos piscos, ora brusco, pouco galante, nem sequer dócil, tantas vezes impessoal. Seymour Hoffman não era muitas coisas mas era, definitivamente, alguém que já nasceu para fazer aquilo. Ao olhar para ele, acho que podíamos garantir que não foi precisa nenhuma motivação para ser actor. Que não teve de crescer aos poucos, educar-se, proteger-se, procurar um nicho. Seymour Hoffman era daquela casta dos que, nem um dedo tivessem de levantar, e convenceriam-nos de todas as vezes. Com esse manto de genuinidade a grosseira maioria apenas pode sonhar.
O que sempre me fascinou nele foi isso: o impacto aliado à falta de esforço. Não no sentido diletante do termo, mas como fruto lógico da sua monstruosa qualidade. Hoffman actuava com o automatismo de um pintor a criar, de um músico a compor, como se toda a sua vida tivesse sido aquele guião, sem nada de alheio ou de plástico e, mais importante, sem nunca perder a espinha da sua identidade. O carácter verdadeiramente excepcional, a autoridade da presença e a elegância do seu carisma estiveram sempre lá. Sempre. Há boas e más performances, papéis em cheio e casts infelizes. Hoffman era uma daquelas batotas para qualquer realizador, um jogo que ele tornava viciado por fazê-lo tão invariavelmente melhor. Não era só uma mais-valia para o filme, era uma razão em si própria para ir assisti-lo.
Tenho-lhe tamanha consideração e ainda me faltam ver alguns dos seus trabalhos mais substanciais. Um punhado que, sorte egoísta a minha, me fará reafirmar a brutalidade de talento que se perdeu, mas que, infelizmente, nunca poderá compensar tudo o que, com certeza, ter-nos-ia vindo a chegar. Fico com o meu top3, que reflecte, de certa maneira, as suas pequenas coisas. Hoffman teve papéis mais técnicos e mais estilizados que o levaram justamente ao reconhecimento da Academia, mas os meus três são filmes suaves, submersos na sua essência. No carácter, no ideário e no carisma. Filmes que o eternizam como um poeta áspero, um senador que aparentava ser difícil, mas que era só espectacularmente reverenciável. Filmes que o celebram com a aura que ele sempre carregou. Charlie Wilson's War, The Ides of March e The Boat that Rocked. Neste último, sobre um barco que serviu de rádio-pirata à Inglaterra conservadora dos anos 60, uma das suas frases mais memoráveis foi "we're never gonna die". Hoje, inconformável é que ele já não possa viver o suficiente.
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