quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

House of Cards. Um porta-aviões à deriva


Kevin Spacey. Se esta crónica acabasse agora, já faria sentido. Seria auto-explicativa e resumiria plenamente a grandeza essencial do que é suposto tratar. Porque é impossível assistir a um único episódio sem pensar no privilégio que é ter podido contar com tamanho monstro no papel principal. A série é muito boa em muitas nuances. É pior em várias outras e, no global, ainda não foi capaz de atingir determinado patamar. Isto vale para tudo, menos para ele.

Spacey é um mundo à parte, um espectáculo só dele, é insubstituível. Talvez não seja justo chamar one man show a House of Cards, mas certo é que a sua estatura banaliza tudo o resto. Não é um papel fácil de quantificar nos moldes normais, porque não é uma performance de relevo técnico. Não é uma reinvenção e não tem especificidade interpretativa, pelo menos como a costumamos identificar. O que nos passa é que é um papel em directo, sem esforço, que é o carisma de Spacey em estado puro, ligeiramente temperado por um guião. Nesse sentido, talvez parta em desvantagem na luta pelos prémios, como aconteceu no primeiro ano. Certo é que é impensável que lhe possam negar reconhecimento até ao fim. Frank Underwood não tem culpa de precisar de tão pouco para ser tão arrogantemente bom.

(aqui os emmys do ano passado a explorarem a classe sem pudor)

Há um ano, revi entusiasticamente o piloto, antecipando-o como uma série de culto. Hoje, parece-me seguro dizer que House of Cards se fez até maior. Reconhecida pela crítica, dos emmys aos globos - com Robin Wright a estrear as honras -, tem corrido cada vez mais nas veias dos espectadores, como negrume no organismo dos Underwood. Com duas temporadas completas, diria que o principal factor de sucesso é o facto da série ser tão inteligente a nível comercial. Longe de ser um produto vulgar, teve muita facilidade em cativar pela provocação e pelo jogo sujo. Tem um argumento desamorável e cru, mas abusador na exacta medida em que nos seduz. Jamais é romântica, mas nunca é agreste pelo mero prazer do desconforto. É, em vez, utilitária na sua falta de escrúpulos. Cirúrgica nas distorções emocionais e sexuais que lhe dão cor. Com todos os seus arrojos, não tem problemas em ir às cordas, mas é sempre equilibrada ao fazê-lo.

Tendo um formato particular, ou seja, não sendo teletransmitida nos Estados Unidos, mas antes libertada em pacote na internet, diria que, em vez de série de culto, House of Cards soube adicionar determinado tipo de peculiaridades a um produto de massas. Facto é que, nestas duas temporadas, a série gozou de um capital de confiança que só é devotado às favoritas. Assumiu-se como uma obra nobiliárquica, de excelência e que não resistimos a acompanhar por bom gosto. E é isso que faz eco do essencial, apesar de, infelizmente, não a ter alheado de falências fundas que não seriam de esperar, e que afectaram decisivamente o seu alcance.

Reconhecendo-lhe todos os méritos, sou forçado a deixar claro que, para mim, House of Cards ainda está bastante à margem do seu potencial, e que, nesta altura, já tinha a obrigação de valer mais. Pior do que isso, veio a demonstrar vulnerabilidades primárias que nunca pensei que a fossem afligir. Desde logo ao nível do cast, que é tão bom, quanto é incompreensível a gestão que o argumento faz dele. Entre mortes, saídas de cena e narrativas perdidas, instala-se um caos que nos deixa a todos confusos. Pressionar os pontos certos e não ter amor às perdas é um factor essencial para ter sucesso; fazê-lo de um modo minimalista é ainda mais. Das piores coisas que uma série pode fazer é gerir as suas pessoas por atacado, porque começar a cortá-las sem critério sugere, apenas, que faltaram ideias para fazer melhor. House of Cards prestou-se a esse caminho minado. Há narrativas interrompidas de maneira abrupta e ilógica, sem qualquer necessidade. Há personagens que nem conseguimos perceber o que lá foram fazer. E depois há os tais curtos-circuitos com pessoas focais, que são um manifesto excesso.

O mais grave, contudo, chegou no quadro final. O fim da primeira temporada deixou-me um amargo de boca, pela linearidade, mas considerei-o parte natural do processo. Já todo o desenlace da segunda é absolutamente incompreensível, e o season finale, em particular, é um absurdo. Parece que foi metralhada, numa única hora, matéria que dava para mais meia temporada, assassinando-se etapas e corrompendo-se a coerência da narrativa. Andou tudo demasiado rápido, sem fundamento, especulação, classe, nem criatividade, justamente as características que definiram o tom da série nos seus melhores momentos e a tornaram especial. Foi como fazer um exame de fim de curso só com tópicos. Como se toda a equipa de argumentistas tivesse sido despedida em cima da hora ou se a produtora tivesse cancelado a última meia dúzia de episódios. Foi um tipo de precipitação inexplicável, completamente contranatura ao seu próprio credo, que criou um borrão do tamanho da pintura.

House of Cards continua a ter direcção, contexto, uma grande equipa e um super-craque. Continua, inclusive, a ter uma claque fiel e um vasto número de admiradores. No futuro próximo, todavia, ou arranja um treinador digno desse nome ou caminhará para o esquecimento.

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