"I have no choice but to direct my energies toward the acquisiton of fame and fortune. Frankly, I have no taste for either poverty or honest labor, so writing is the only recourse left for me." Hunter S. Thompson
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
O segredo de Ancelotti
O que sempre me fascinou em Carlo Ancelotti foi não ter a certeza de onde emanava a sua autoridade. Prefiro treinadores de outra casta, não escondo. Mourinho sempre foi o modelo. Ferguson era a instituição, Capello um assassino, e ultimamente rendi-me a Klopp e a Simeone. Um punhado de carismáticos, exuberantes, daqueles que seguiríamos para a guerra de todas as vezes. Irrepreensíveis no táctico, tanto quanto líderes de homens e irascíveis na batalha. Ancelotti sempre foi uma das minhas excepções, pela sua suprema habilidade entre mundos. Explico: é comum que os treinadores se dividam entre feitos e feitios, entre as figuras patriarcais e os que têm fogo nos olhos, entre os agregadores e os reaccionários, muitas vezes entre os bons sensos e as auras. Ancelotti, por seu lado, sempre se dedicou a perverter esse dogma, com a sapiência de um mago.
É um dos "meus" primeiros treinadores, na medida em que presidiu a uma das equipas da minha vida: o brutalizante Milan europeu de início do século. Na sua célebre 'árvore da vida', uma equipa que, a alimentar Sheva ou Pippo Inzaghi, parecia jogar com 11 médios ou mais, partilharam o campo alguns dos mais extraordinários de toda uma geração: Rui Costa, Kaká, Seedorf, Pirlo. Todos no auge. Esse Milan era uma pomada de bem jogar e de melhor dominar. Uma teia quase perfeita que parecia mover-se em piloto automático, não estivesse o piloto tão bem identificado. Se há equipas feitas a partir da costela de um treinador, essa foi uma delas. Numa palavra, aquele Milan era elegante. Impunha a sua reputação sem esforço, como se todos o soubessem respeitar mesmo se ainda não o conhecessem. Era orgânico, natural, fácil na sua venerabilidade. Como o seu treinador.
Costuma dizer-se que um líder que o afirma não é líder nenhum. Ancelotti é esse epíteto. O que sempre me fascinou nele é que nunca tenha de levantar um dedo. Que não faça barulho, que não provoque, que não tenha as boas histórias e o melhor carisma, que nunca seja ou esteja no centro. E que, mesmo assim, lhe brilhe na vista o je ne sais quoi. Que toda a gente que tenha trabalhado com ele o admire tanto e que o palmarés tenha sido tão extraordinário por todos os países onde já treinou. Ancelotti não desperta paixões, como Mourinho ou Klopp. Não é um plenipotenciário, como Ferguson ou Capello. Não é indiferente para menos, como Benítez ou Mancini. É um tipo quase só dele. Um Gandalf do futebol, que nunca tem de gritar, de reagir ou de dar nas vistas. Basta-lhe um esgar luminoso para termos a certeza de que ele sabe todos os segredos do mundo e que mais vale confiar.
Depois do circo do defeso e do incêndio mourinhista, não sabia o que esperar deste Real. Achei a política de transferências idiótica, sabia que o Atlético ia queimar etapas e achava que o Barça era naturalmente mais cicatrizável. Sobrava um trunfo, quiçá solitário, no bafo ora demente de Chamartín: o Real não poderia ter escolhido ninguém melhor para aquele banco. A época nem tem sido amorosa. Primeiro, porque a herança era efectivamente de uma tonelada. Depois, porque o reforço mais caro do mundo passou metade do tempo lesionado e, por último, porque tem-se jogado realmente a primeira liga a três em anos. Até há um par de meses, o mundo merengue achava mesmo que nem em segundo ia ficar. Em Março, está na liderança isolada de La Liga, na final da Taça do Rei, depois de massacrar o rival, e tem espalhado glamour pelo continente fora, ao nível do que de melhor fez o Moudrid.
De Ronaldo não vou falar, pela redundância. A alucinação competitiva própria de uma galáxia trekiana qualquer foi sempre oferecida por igual a qualquer um. Hoje, contudo, parece que todos à sua volta estão melhores. Benzema, depois das infindáveis dores de crescimento, reclama de vez o lugar para que estava destinado, entre os melhores pontas do mundo. Está confiante, eléctrico, imparável, ao que não será estranha a proximidade de Zidane, possibilitada pela diplomacia do treinador. Bale passou metade da época lesionado e as pessoas dizem que, na verdade, está a fazer um óptimo ano de estreia. Foi protegido vez e sobrevez pelo técnico, que o lançou da forma mais sustentada e paciente possível, sabendo sempre potenciar os outros, numa lição de bem gerir (Jesé já vai nas bocas da selecção, imagine-se). Di María, em tempos um vagabundo de pouco compromisso, foi de extremo de classe mundial a um aparente interior de classe espacial. Hoje, em Gelsenkirchen, parecia que tinha passado a carreira toda a ajudar trincos e a carregar jogo no círculo central, à velocidade do som. Modric, o pequeno genial, ressuscitou com uma batuta maior do que ele. Pepe e Marcelo regeneraram-se e até Casillas tem podido voltar a brilhar, mesmo a viver a maior parte no banco.
O que estou a dizer não é que a equipa foi do inferno ao céu. Seria, aliás, um erro primário desvalorizar algo do que Mourinho fez em Madrid, como o próprio Ancelotti reconheceu esta semana, de forma tão inteligente quanto honesta. Mourinho foi o melhor campeão de sempre, ganhou todos os troféus internos, fez três meias-finais europeias e devolveu ao clube a dimensão continental que, é bom não esquecer, andou ostracizada da capital durante anos suficientes. Mais do que isso, diria que é impossível dissociar o que pode vir a ser conseguido este ano do imenso legado português. Certo é que não será fácil fazer melhor. Seja como for, e até ver, este Madrid é um luxo. Uma equipa que abusa capacidade e que não poderia aparentar mais saúde na cabeça. Uma equipa a que a lógica desaconselha o favoritismo, mas que sibila um segredo: o de que sabe como lá chegar. Como o seu treinador.
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