terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Breaking Bad. A supra-série


Ponto prévio: Breaking Bad não é uma das séries da minha vida, portanto estou particularmente à vontade para o que vou escrever a seguir. Curiosamente comecei-a a ver no fim da segunda temporada, bem antes do furor que a envolveu no final. Foi nessa altura que estabeleci com Breaking Bad todos os laços verdadeiramente estruturantes da nossa relação. À partida, e independentemente do meu gosto ter apontado a outros registos, há uma verdade inelutável sobre ela: ninguém que a tenha visto pode dizer, em consciência, que algo daquilo é mau.


À cabeça é, sem grande esforço, a série mais extraordinariamente bem realizada que já vi. Ao contrário do cinema, onde o realizador é sempre uma peça fulcral, as séries têm essa nuance de fazerem-nos parecer secundários. A longitude e o alcance da acção são o que marca, e a câmara é muito mais impessoal, ao ponto de parecer que qualquer um a pode fazer. Não aqui. A realização foi sempre uma parte insubstituível do conceito da série. Devota, cheia, com o dom de canalizar ela própria a mensagem que se estava a passar. Os planos imensos e os silêncios vazios do Novo México desértico, a sua opulência grave e majestática e a forma cirúrgica e perigosa como lidou com os momentos de escalada nervosa, tornaram-na numa absoluta imagem de marca. Se Breaking Bad teve o nível que teve, deve-o, entre todo o resto, à sua coesão e compleição.


Fora o conceito e a direcção, o texto conseguiu ser extraterrestre. Costumo dizer que é fácil identificar um grande argumento quando o vemos, mas Breaking Bad foi o tipo de texto que nem dava para ver chegar. Há episódios que não são bons, são outra coisa qualquer, uma espécie de antimatéria que não sabemos de onde veio, que não faz particular sentido, que não contribui para o evoluir da acção, mas que não é menos do que arte em estado puro. E vai daí, num rasgo subliminar, até tinha tudo a ver com qualquer coisa e o resto do tempo passávamos só a tentar entender como raio alguém foi bom o suficiente para o concretizar assim. Vince Gilligan merecia que, de cada vez que Breaking Bad fosse lembrada, dissessem sempre o seu nome.


Ninguém que a tenha visto pode dizer, em consciência, que algo daquilo é mau. E, no entanto, não me foi suficiente durante tempo que baste. Como uma mulher perfeita, que tem tudo, que é um par ideal, mas que não tem o je ne sais quoi. Vi as duas primeiras temporadas e depois parei. Breaking Bad cansava-me. Era quase sempre boa quando a via, mas era igualmente uma experiência exaustiva. Arrastada, contemplativa, pretensiosa. Compensava, mas aquela química para seduzir-nos ao ecrã, para passar-nos o que não se mede, o que não pode ser executado por uma grande lente, um grande guião e por grandes actores, tendia a rarear. De uma forma ou de outra, acho que lhe faltou isso até ao fim. Uma vulnerabilidade no seu castelo de gelo, algo que pudéssemos assimilar, outra maneira de falar ao espectador. Não sei se me faço entender, ou se mais alguém o partilha, mas tenho pena que a série nunca me tenha inspirado mais. Não no sentido chorável do termo, mas no domínio pessoal. Impressionou, agrediu, deslumbrou, chocou. Mas, seja por fidelidade ao conceito, admito isso, seja por défice de humanidade (com a eterna excepção às costas de Aaron Paul), ficou-me a essa margem.


Escrevo isto porque, como é bom de ver, depois do frenesim da despedida, forcei-me a voltar a ela. As percepções que tinha mantiveram-se até ao fim, mas as primeiras até aumentaram. Breaking Bad foi-se sempre reinventando para melhor. Teve o mérito de nunca se aligeirar, de nunca acomodar-se à sombra dos louros alcançados. O negrume inumano que veio a atingir, a crueldade, o desamor, a amoralidade e o castigo foram de um nível a partir do qual não é possível fazer melhor. A série fez uma escalada corajosa a pulso de ferro, desafiou-se constantemente a si própria e acabou em zénite. Não há nada que possa respeitar numa mais do que isso.


Quando acabou, Sir Anthony Hopkins definiu o cast como o melhor conjunto de actores que vira na vida. Sem tornar isto exaustivo com os secundários (vénia inteira a Dean Norris e Jonathan Banks), o alcance do que fizeram Bryan Cranston e Aaron Paul foi, de facto, hipnotizante. Cranston viveu um lead eterno que dispensa considerações e que passará à História como um símbolo cultural. Aaron Paul, todavia, foi quem sacou os mais absolutamente geniais bocados interpretativos de tudo o que se fez, coisas tão incrivelmente boas que mereciam que aquilo se visse só por causa dele. A ocasional falta de mística valeu para tudo, menos para ele. Nunca para aquele coração colossal, da cabeça aos pés. Que não tenha chegado a ganhar o Globo de Ouro é uma injustiça de todos os tempos.

 

Breaking Bad não é uma das séries da minha vida. Por isso, é tanto mais importante deixar claro que é uma das verdadeiramente melhores que já vi. E no fim tomou-me, de facto, e consumiu-me como um viciado, esmagando-me no gigantismo da sua tragédia. Acabada que está, não me perdoaria se não lhe prestasse esse reconhecimento. Se não deixasse claro que, no fim do dia, não é uma série que tenha a ver com gostos ou com estilos, porque isso não passam de notas de rodapé ao seu carácter obrigatório. Breaking Bad é tão necessária como ler um clássico, com a diferença de que, no futuro, vão-nos invejar por ter sido seus contemporâneos.

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