segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Um natural


A morte agride-nos sempre. A pessoal, claro, mas, com contornos particulares, a mediática. Pela proliferação de testemunhos, pelo bombardeamento de pêsames, pela malha globalizante de reconhecimento. Vimos todos isso nos últimos meses, infelizmente, a contar dos mais diversos quadrantes. Não comparando o que não é comparável, devo dizer que hoje foi um dia especialmente triste. Não foi um estadista que morreu, um desportista da nação ou um James Dean. A partida, porém, de um talento tão extremo, e ainda tão estupidamente novo, doeu como uma bastonada no crânio. Ver, não acreditar e depois haver qualquer coisa de físico nessa repulsa e nessa negação.

Philip Seymour Hoffman não era um ícone. Não era um tipo romanceável, nem era sequer, na maior parte do tempo, o papel principal. Não era camaleónico, excêntrico, nem era um incendiário. Tinha um registo muito próprio, o tipo baixo, com barriga, rosáceas e olhos piscos, ora brusco, pouco galante, nem sequer dócil, tantas vezes impessoal. Seymour Hoffman não era muitas coisas mas era, definitivamente, alguém que já nasceu para fazer aquilo. Ao olhar para ele, acho que podíamos garantir que não foi precisa nenhuma motivação para ser actor. Que não teve de crescer aos poucos, educar-se, proteger-se, procurar um nicho. Seymour Hoffman era daquela casta dos que, nem um dedo tivessem de levantar, e convenceriam-nos de todas as vezes. Com esse manto de genuinidade a grosseira maioria apenas pode sonhar.

O que sempre me fascinou nele foi isso: o impacto aliado à falta de esforço. Não no sentido diletante do termo, mas como fruto lógico da sua monstruosa qualidade. Hoffman actuava com o automatismo de um pintor a criar, de um músico a compor, como se toda a sua vida tivesse sido aquele guião, sem nada de alheio ou de plástico e, mais importante, sem nunca perder a espinha da sua identidade. O carácter verdadeiramente excepcional, a autoridade da presença e a elegância do seu carisma estiveram sempre lá. Sempre. Há boas e más performances, papéis em cheio e casts infelizes. Hoffman era uma daquelas batotas para qualquer realizador, um jogo que ele tornava viciado por fazê-lo tão invariavelmente melhor. Não era só uma mais-valia para o filme, era uma razão em si própria para ir assisti-lo.

Tenho-lhe tamanha consideração e ainda me faltam ver alguns dos seus trabalhos mais substanciais. Um punhado que, sorte egoísta a minha, me fará reafirmar a brutalidade de talento que se perdeu, mas que, infelizmente, nunca poderá compensar tudo o que, com certeza, ter-nos-ia vindo a chegar. Fico com o meu top3, que reflecte, de certa maneira, as suas pequenas coisas. Hoffman teve papéis mais técnicos e mais estilizados que o levaram justamente ao reconhecimento da Academia, mas os meus três são filmes suaves, submersos na sua essência. No carácter, no ideário e no carisma. Filmes que o eternizam como um poeta áspero, um senador que aparentava ser difícil, mas que era só espectacularmente reverenciável. Filmes que o celebram com a aura que ele sempre carregou. Charlie Wilson's War, The Ides of March e The Boat that Rocked. Neste último, sobre um barco que serviu de rádio-pirata à Inglaterra conservadora dos anos 60, uma das suas frases mais memoráveis foi "we're never gonna die". Hoje, inconformável é que ele já não possa viver o suficiente.


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