domingo, 2 de março de 2014

Óscares 86 - ANTEVISÃO

 

Pelo quinto ano de vivência aqui do espaço, vou-me prestar a lançar os dados a uma das noites que é, indefectivelmente, uma das que conservo em mais alta estima. Como sempre, a minha resenha dos Óscares não tem nada de elenco de apostas, e é, na maior parte dos casos, uma negação mais ou menos barulhenta de derrotas esperadas. O que não as torna menos agonizantes nem me desencoraja a vivê-las de forma menos clubística. Com as honras da festa a cargo de Ellen DeGeneres - sendo tão carismática, continua a ser uma incógnita, ainda por cima com o fardo que é suceder a MacFarlane -, fica aqui a minha cartilha, de trás para a frente.


ACTRIZ SECUNDÁRIA
Será uma corrida reservada a duas senhoras que, até agora, dividiram quase irmanamente a temporada dos prémios: Jennifer Lawrence, que estará na cerimónia a defender o título, venceu o Globo de Ouro e o BAFTA, ao passo que a estreante Lupita Nyong'o reclamou o Sindicato de Actores e o prémio da Crítica. Repito uma verdade que já aqui deixei há um mês atrás e que me parece providencial: nunca me verão escrever que Lawrence não merece ganhar seja o que for; todavia, este Óscar também o daria a Lupita Nyong'o que, de resto, me parece efectivamente a favorita. A sua vulnerabilidade inelutável, a desesperança e a desolação que carrega nos olhos e na carne são, de forma merecida, uma das iconografias do sucesso de 12 Years a Slave e um papel que não me parece comparável ao das restantes.

ACTOR SECUNDÁRIO
É uma das minhas obsessões de há semanas para cá, desde que vi Dallas Buyers e desde que a vitória de Jared Leto se tornou num dogma. Sou forçado a bater nesta tecla uma última vez: Leto é crível na pele agreste de um homossexual às portas da morte, mas o papel ganhou o Óscar no momento em que foi escrito. Simples quanto isso. Sendo capaz, a performance não está sequer perto de ser a melhor do ano. A medida pela qual se avaliou foi a do emagrecimento, da degradação física e do transformismo. Isso reflecte um trabalho técnico excepcional, mas não traduz genuína capacidade interpretativa. Pensar que a monumentalidade atroz de Michael Fassbender será desterrada com tamanha e tão perturbadora naturalidade nunca me poderá caber na cabeça. Será a vitória de um papel feito, em piloto automático, sobre quem, com uma caracterização 'comum', consegue-nos agredir só por estar a olhar do outro lado da tela.

ARGUMENTO ADAPTADO
É das categorias mais 'aleatórias' da cerimónia: o Sindicato de Argumentistas galardoou Captain Phillips, o Critics Choice deu o prémio a 12 Years a Slave e os BAFTA, como é costumeiro, deixaram a taça em casa, com Philomena. Para mim, o vencedor seria claro: Billy Ray fez um trabalho sensacional com Captain Phillips e é um exemplo acabado de tudo o que uma adaptação de argumento deve ser, ou seja, de como a gestão magistral da narrativa pode engrandecer decisivamente um filme com linhas tão bem definidas e que, inclusive, sabemos como vai acabar. Gostava de mencionar, ainda assim, Richard Linklater: a suprema obra de arte que foram os Before merecia ser eternizada com mais do que a honra de uma segunda nomeação (Before Sunrise também o fora, em 2004).

ARGUMENTO ORIGINAL
Her.

REALIZADOR
Aqui não há dúvidas, o prémio será mesmo para Alfonso Cuáron, e com toda a justiça. A sua leitura do que podia ser o filme foi visionária e, como se não bastasse, a execução conseguiu ser ainda maior do que isso. Gravity foi a experiência cinematográfica verdadeiramente fascinante do ano e será um daqueles filmes para, daqui a muito tempo, quando se estiver a edificar uma cronologia qualquer de marcos, deixar 2013 à vista. É uma vitória que também faz sentido porque é provável que o filme não tenha mais distinções; noutro contexto, Steve McQueen merecia ter uma palavra a dizer. Com meios e necessidades completamente diferentes, o seu registo em 12 Years a Slave é uma tirada de arte perfeitamente deslumbrante. Por último, a ausência de Spike Jonze (Her) é impensável.

ACTRIZ
Cate Blanchett pode-se dar ao luxo de já ter o texto de agradecimento escrito há semanas, porque não há hecatombe nenhuma que lhe vá roubar o segundo Óscar da carreira. A correr por fora, socorreu-se dos históricos guiões femininos de Woody Allen para bater o peso da concorrência e ter a questão virtualmente arrumada no grande dia. A sua alcoólica, neurótica, em regime acelerado de auto-destruição, apresentou-a a uma luz sob a qual jamais a tínhamos visto e alargou-lhe de forma inquestionável o espectro da carreira. Ainda assim, tenho de salientar o enorme registo de Sandra Bullock, em Gravity. Honesta, crua e vulnerável, foi uma performance de enorme nível que completou o filme excepcionalmente, e que me parece nunca ter chegado a ser valorizada como devia.

ACTOR
É a verdadeira plataforma de frenesim da cerimónia e, através das redes sociais, ganhou nas últimas semanas uma expressão que duvido que tenha paralelo com qualquer outra coisa. A razão é a demanda quase mitológica para que Leonardo DiCaprio chegue ao seu primeiro Óscar. Wolf of Wall Street foi, talvez, a mais sensacional recepção do ano e o motim digital tem crescido de forma exponencial com o aproximar do dia D. Muitas vezes, a multidão não sabe do que está a falar e pode ser perigosa. Esta não é uma delas: DiCaprio, com a enésima prestação extraterreste da carreira, merece mesmo toda a devoção que lhe estão a emprestar e, mais importante, o seu primeiro Óscar. Tudo isto é tanto mais interessante dado o contexto... e a virtual impossibilidade do cenário vir mesmo a concretizar-se. É que, ironia das ironias, as entidades ininteligíveis da Academia e da Crítica já sancionaram, por decreto, que quem ganha é Mat McConaughey (com a única coisa banal que fez nos últimos dois anos; conferir o que já escrevi para Jared Leto). Ou, no pior dos casos, como nos BAFTA, Chiwetel Ejiofor. Só porque sim. Será definitivamente o tema fervente da noite e um dos envelopes dourados mais esperados de que me lembro.

FILME
Por fim, a razão por excelência. 2013 foi um ano espectacular para quem gosta de bom cinema. Talvez seja redudante dizer isto, talvez seja do gosto ou talvez sejam sempre mas, no ano que passou, acumularam-se ases atrás de ases, como dá gosto. Como sempre, a Academia deverá fazer jus à sua regra de ouro: premiar o politicamente mediano. O mais clássico e menos arriscado, o mais equilibrado e menos genial. Sinceramente, desde que sigo os Óscares, nunca vi o melhor filme do ano ganhar Melhor Filme do ano. Para 2013 não será excepção. Com um vasto grau de certeza, o vencedor será 12 Years a Slave. Que é um filme de peso a muitos níveis, mas que é só um filme bom num ano de enormes. Um filme, para todos os efeitos, premiável pelo decalque ao tipo-ideal da Academia: porque tem época, majestade, técnica, lobby.

O melhor filme de 2013 foi Her, que já vi tarde e a más horas, e sobre o qual, infelizmente, ainda não pude escrever. Her é perfeito. É tudo o que o cinema pode ser no seu auge: tacto, talento, bom gosto, criatividade e génio. Ousadia, mensagem, metáfora, cor e música. Tudo condensado num produto final incrivelmente leve, que inebria tanto quanto apaixona. Que um filme destes não tenha possibilidades de ganhar é criminoso.

Tenho igualmente de fazer um acto de contrição por ainda não ter falado de American Hustle neste texto, que foi o meu favorito desde o momento em que o vi e que, provavelmente, será hoje desterrado ao esquecimento, sem um único galhardete para memória futura. Reafirmo-o as vezes que forem precisas: pelo segundo ano seguido!, David O. Russell presentou-nos com uma autêntica jóia, com graus de humanidade e grandeza de personagens como mais ninguém é capaz de criar, por sistema, no mercado actual. Não foi no ano passado, não será neste, mas o reconhecimento para tão grande talento chegará inevitavelmente. Uma última nota para Inside Llewyn Davis, que sujeitaram ao ridículo de nem dignificar com uma nomeação: com os dois acima, completa a minha tríade de melhores do ano.

No resto, já são horas de entrar em estágio. Aproveitemos o espectáculo na expectativa de que um dia também andemos por lá e esperemos convictamente pelas únicas vitórias que valem a pena: as impossíveis.

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