sexta-feira, 21 de março de 2014

O peso do mundo


"Do you ever ask yourself if you lived up to the expectations?"
Lady Mary Crawley, Downton Abbey

Lembro-me do tempo em que achava que Quaresma era tão bom como Ronaldo. Achava isto com a honestidade de uma criança, sem partidarismos nem concessões. Estava lá a monstruosidade técnica, a fantasia, o génio, a vertigem, eram iguais. Claro que, na altura, eram ambos miúdos inconsequentes, irremediavelmente mais perto de falharem do que de chegarem ao topo do mundo, mas a excepcionalidade de um talento reconhece-se sempre quando a vemos. Quaresma e Ronaldo eram da mesma casta, nasceram com as mesmas capacidades inatas. Estavam destinados a fazerem coisas parecidas e saíram do Sporting ao mesmo tempo. Li algures que, nesse determinante Verão de 2003, aconselharam vivamente a Quaresma que fosse para o Arsenal, crescer com Wenger. Ele, contudo, teve outras ideias. Foi para a Liga das Estrelas, porque o Barça era o Barça. Já Ronaldo ouviu o que lhe disseram e toda a gente sabe como é que isso acabou.

Não digo isto com qualquer menosprezo, mas a verdade é que nunca foram iguais, ele e Ronaldo. Nunca se é, claro, e é injusto alguma vez comparar-se como tal. Injusto mas, tantas vezes, inevitável. Mesmo nos melhores anos do Porto, Quaresma não me voltou a conquistar. Enquanto Ronaldo ganhava mundo ano após ano, Quaresma regressara a casa com aquele abismo de qualidade na mala. De certa forma, acho que é isso que nunca lhe consegui perdoar. Não a arrogância, não a impessoalidade, não a errância imprópria dos campeões, mas que tenha desbaratado tantas vezes um tão grandioso talento. Quaresma foi o melhor da liga enquanto esteve no Porto, mas ser o melhor desta liga fazia-o pequeno. Ele sabia disso e essa é uma nuvem da qual ninguém se pode livrar. Quando Mourinho o foi resgatar para o Inter, confesso que meti as fichas todas. Era a hora. Um projecto com tempo e espaço para dar certo e um grandíssimo futebolista finalmente maturado.

Ter falhado em Milão é o ponto definidor de toda a sua carreira. Uma tragédia infinitamente maior do que na Catalunha, seis anos antes. Porque foi nos campos nerazzurri que Quaresma teve, por fim, a certeza de que não ia conseguir. De que todo aquele virtuosismo e toda aquela atitude não eram acompanhados da resiliência que forja os eternos. Não quero com isto dizer que Quaresma seja mau profissional, coisa que, de resto, nem está documentada. Nem acho que tenha falhado por pretensão ou por indolência. Acho, simplesmente, que não tinha o que era preciso a nível emocional. Ao tipo da cara austera e dos modos graves faltou, por ironia do destino, o sangue frio, o juízo certo, a capacidade de lidar com a pressão e com o esforço, o nervo. No fim das contas, Quaresma foi devorado pela sombra do que poderia ter sido. Tinha tantas condições naturais para vingar que a impossibilidade do contrário tornou-se, ela própria, na razão do seu fracasso. Quaresma tem um talento monstruoso, que o levou a ter oportunidades de que poucos se podem gabar. Barcelona, Inter, Chelsea. No resto, era só humano. Um tipo falível, para quem o preço do talento foi quase sempre alto demais. 10 anos depois do adeus a Alcochete, Ronaldo preparava-se para ser melhor do mundo pela segunda vez, enquanto ele estava de sabática nos Emirados Árabes. Talvez não seja grato compará-los, mas era inevitável. E dificilmente poderia ser mais cru.

Por tudo isto, apostava que, aos 30 anos, Quaresma já não poderia ser uma solução, e nunca para um Porto irreconhecível, sem rede e em degradação acelerada. Que voltasse de seis anos de baixa competição e de seis meses de férias para ser o mais produtivo jogador da equipa e o líder da sua retoma era tão provável como viver na Terra do Nunca. Era demagogia, era torná-lo num vendilhão de sonhos impossíveis. Porque ao Porto esvaíram-se quase todas as opções, o seu regresso não foi um reforço; foi, na verdade, um acto de fé.

O que tem acontecido nos últimos três meses, e que teve ontem auge na relva sacrossanta do San Paolo, é o futebol em tudo o que ele tem de mais fascinante. Na 3ª ou na 4ª vida, depois de um milhão de oportunidades perdidas e quando já não seria razoável dar nada por ele, foi face a todas as probabilidades que Quaresma encontrou, por fim, a transcendência que lhe fugiu a carreira inteira. Já não vai a tempo de ser um dos melhores do mundo, não foi a tempo de ser campeão e nem sei se ainda vai a tempo do Mundial. Mas ter aceite que já não tem de ir a tempo de nada é a sua grande vitória. Quaresma já não deixará de ser o miúdo imprevisível a quem Bolöni puxava as orelhas, mas a centelha, essa, continua lá. Viva. Talvez o problema tenha sido sempre a percepção. Como Marlon Brando celebrou no monumental Apocalypse Now, "é o julgamento que nos derrota". Se calhar Quaresma podia ter sido outra coisa qualquer, maior. Ao vê-lo, porém, esfumar-se entre os defesas do Nápoles, a irradiar magia daquelas botas, tem-se a certeza de que, apesar de tudo, ser ele próprio valeu a pena. O Brasil, não custa lembrar, também é um bom lugar para se ser feliz.

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