segunda-feira, 3 de março de 2014

Óscares 86 - BALANÇO


Acho que a pior coisa que se pode dizer de qualquer grande espectáculo é que decorreu tudo como era esperado. Não porque não tenha acontecido um desastre ou nenhuma vergonha, mas porque ninguém quer pagar bilhete se já souber o fim. Se a surpresa tem de fazer parte do dia-a-dia, para o mundo do entretenimento é estritamente vital. Mais do que isso, a subversão do provável e o espanto de última hora, o twist, são a própria essência do cinema. Pode ser uma falsa percepção, mas acho que, nesta fase da nossa Era, os Óscares têm perdido parte substancial da sua capacidade de deslumbramento.

É verdade que as pessoas esquecem-se que a cerimónia é o reflexo dos votos de um clube. Os tais 6 mil membros da Academia de Artes e Ciências gozam do direito de voto e ninguém tem nada a ver com isso; o facto do clube deles ser especial para o resto do mundo é só um pormenor. É seguro, aliás, dizer que, em boa medida, os Óscares sempre terão sido previsíveis. Mas hoje, com tanta exposição prematura de opiniões, com uma disseminação tão fácil de pensamento único e com um lobismo tão impactante, acho que o que sobrava da pureza dos Óscares está mais ameaçado do que nunca. Não digo isto só pela desilusão da cerimónia de ontem ter debitado, a regra e esquadro, um por um, todos os vencedores pré-aquecidos. Escrevo porque tenho muita pena que os Óscares sejam, cada vez mais, vistos como prémios "políticos", que não merecem assim tanta consideração. E, sobretudo, por achar que quem tira à noite maior um Benigni a escalar uma plateia ou o entusiasmo estarrecido de dois miúdos, quem lhe tira a ilusão, tira-lhe tudo.


Não é um caso perdido, claro que não, e para parte substancial dos fiéis, a festa das festas será sempre uma proposta muito difícil de recusar. E se este ano a enunciação de laureados não trouxe magia, foi um prazer presenciar o melhor hosting que já vi. Depois de um monólogo morno e vagamente fugidio nada o faria prever, mas Ellen DeGeneres arrombou autenticamente o Dolby Theatre, com uma liderança de gala que, sinceramente, será quase impossível de emular e que meteu o nível muito, mas muito nas nuvens. Sou um fã eterno da forma gervasiana de fazer, mas os Óscares pedem um engenho elegante que, achava, já se concretizara com brilho em Hugh Jackman ou Seth MacFarlane. DeGeneres optou por uma fuga para o futuro e reinventou todo um conceito, mercê de uma interacção histórica com a plateia e com as redes sociais. A dada altura, acredito que gente nos quatro cantos do mundo se tenha sentido parte daquilo em directo, e essa alucinação impagável coloca-a num verdadeiro Olimpo de tudo o que já se fez. O facto de ter sido a cerimónia mais vista em 10 anos completa a ideia. Absolutamente fenomenal.


A realização justifica igualmente o enaltecimento, num registo leve, pouco exuberante, mas sempre tremendamente agradável. Os momentos musicais, doutras vezes descurados, foram na mouche, os clips foram coloridos que baste e o trunfo residiu nas inusitadas quebras de ritmo, com a mítica selfie, com as pizzas, etc, que lhe conferiram o tal toque imprevisível e pessoal. Muito bom. Ao nível dos discursos, os melhores foram, como quase sempre, os quatro da interpretação, com o momento da noite a morar claramente com Lupita Nyong'o. McConaughey e Blanchett têm o calejamento, Leto elaborou demais, mas Nyong'o encantou verdadeiramente a sala, num momento irresistível de genuína honestidade e deslumbramento.


Sobre os vencedores, emergem três de forma mais ou menos indiscutível. 12 Years não vacilou e formalizou mesmo a consagração, com o bónus de 'Argumento Adaptado', que estava em aberto, num total de três grandes prémios. Respeitando o filme, já disse o que achava na antevisão, e gostava só de evidenciar duas nuances curiosas: Michael Fassbender e Steve McQueen que foram, para mim, os expoentes máximos da obra, ficaram exactamente como não agraciados; Brad Pitt, por sua vez, colheu a ironia de chegar, na pele de produtor, ao primeiro Óscar da carreira (exacto, ele também não tinha nenhum...).


Mercê do impacto técnico, Gravity acabou por sair da sombra que lhe estaria reservada e teve a sacola maior, com nada menos do que 7 Óscares, brilhantemente encabeçados por Alfonso Cuáron (saliento, ainda, Fotografia, com a primeira vitória, à sexta nomeação, de um génio chamado Emmanuel Lubezki). É uma medida de reconhecimento francamente justa para um filme excepcional, de um alcance que vai perdurar por muitos anos e que não merecia ficar fora das notícias.


Finalmente, Dallas Buyers também confirmou os dois prémios masculinos de interpretação e passa aos livros com um halo que é dezenas de vezes maior do que a qualidade do filme. Não vou continuar a insistir no mesmo mas, honestamente, nunca poderei perceber a forma inculcada como as vitórias de McConaughey e Leto se tornaram tão inevitáveis nos últimos meses, à luz de tão extraordinária concorrência. A glória de Dallas Buyers é um erro histórico que o tempo provará.


Sobre os meus favoritos, Her manteve-se felizmente no lado certo dos números e garantiu 'Argumento Original', como tão genialmente mereceu. Todavia, acho que fiquei mais aliviado do que contente com a vitória - podia acabar em Dallas Buyers, nunca se sabe -, até porque, de uma certa forma, encaro-a como um prémio redutor: Her é um filme demasiado bom para ter sido balizado em consolações e jamais aspirar a honras maiores. Ironicamente, a vitória de Spike Jonze alienou a única possibilidade viável do seu camarada O. Russell e do meu outro favorito. O bestial American Hustle - o segundo ano seguido em que David O. Russell nomeou um filme nas 7 grandes categorias! - passou absoluta e ingratamente ao lado, perdendo ainda Secundária - tinha sido Jennifer Lawrence a salvar a honra do convento no ano passado - e Filme, onde se "dizia" ter uma hipótese. Mais um para o trágico buraco negro da Academia.


Para acabar, pouco mais haverá a dizer sobre DiCaprio. O facto de, mesmo assim, ter sido ele a figura da noite explica quase tudo. Mesmo que isto soe gasto, a convicção das pessoas representará sempre muito mais do que qualquer estatueta, e se não foi à 4ª - fora a idiotice de vezes em que nem o nomearam: Django, Departed, Catch Me... -, será necessariamente numa das próximas dez. Por eventualidade, num filme pior do que estes todos, como a Academia gosta de fazer.

Sobra desejar que 2014 seja um ano com a mesma qualidade farta que acabamos de experimentar, mas com a consciência que faltou e sem o veneno que são os vencedores por decreto.

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