quarta-feira, 5 de março de 2014

Porque foi uma honra


"People always think of us as rivals but he was among the very few I liked and even fewer that I respected. He remains the only person I envied."
Niki Lauda sobre James Hunt (Rush)

O desporto é, por definição, um jogo de interacções emocionais. Entre treinadores e jogadores, entre jogadores e adeptos, entre adeptos e críticos e entre cada um deles em particular. É, igualmente, o espaço onde essa emocionalidade atinge os patamares de maior excepção. O desporto edifica heróis e vilões, constrói fés e incendeia as paixões mais proféticas. A idolatria não é igualável, põe quase tudo em causa e faz dos adversários, não raras vezes, maiores do que inimigos. É por isso que, para mim, não há nada de mais singularmente grandificante do que admirar um verdadeiro rival. Um dos duros, um dos terrivelmente temíveis, um dos que faz vida negra e que nunca, nunca vai perdoar uma oportunidade. Puyol foi o capitão da equipa mais radical que vi na vida. Uma que dizem ter reinventado o jogo e que, garantem, foi a melhor que já jogou. O Barça de Guardiola não era só forte ou, sequer, muito melhor do que os outros. O Barça de Guardiola foi o adversário impossível.

Adversário, para mim, por duas bases fundamentais: porque esteve no caminho dos meus e porque sou, por princípio, a antítese das equipas providenciais. Para mim, a beleza daquele carrossel orquestral esgotou-se na sua inevitabilidade de vitória, reforçada, depois, na insuportável presunção de ser perfeito. O Barça era o modelo do sonho, o tipo-ideal em cada um dos seus filamentos, o princípio e o fim de tudo o que é bom... e não podia ser batido. Esses são os casos em que eu fico respeitosamente do outro lado. Sei reconhecer talento e capacidade, e o mérito, sempre. Esse Barça abusou em cada qual. Era plenipotenciário e inatacável. A minha única vitória era poder não gostar, era sintetizá-lo até à condição de instigador de medo. Às vezes penso se, com o tempo, não me vou arrepender de não ter querido mais a esse Barça e de os ter vilificado a todos. Um, porém, foi sempre especial.

Puyol era a prova de que até as maiores máquinas têm um coração. Não foi o central mais talentoso nem o defesa mais brilhante que vi jogar mas foi, indiscutivelmente, um dos dois ou três homens de maior carácter que já vi em campo. Um que se mediu sempre em mais do que cada sprint vertiginoso, do que cada corte elástico e limítrofe, do que na agressividade legionária de quem disputa cada bola por vida ou morte. Porque Puyol foi sempre o líder nas coisas que não se vêem, o exemplo nos pormenores que nunca se vão saber. O seu gesto que mais me marcou foi um episódio de segundos, apanhado por acaso numa câmara secundária e destinado a ser ignorado pelas manchetes. Era o auge do sanguinismo entre o Barça e o Real de Mourinho. Cada atitude, cada toque, cada olhar era questão de celeuma, era o fósforo passível de explodir o barril de pólvora. Estávamos no Bernabéu, num canto defensivo, com a claque do Madrid de bafo no pescoço adversário. Nisto, chove um par de isqueiros na área catalã e Piqué não perde tempo. Num reflexo, agarra um e presta-se a parar tudo, agitando-o em direcção ao árbitro. O capitão, contudo, decidiu fazer diferente. Tirou-lhe o isqueiro da mão, jogou-o para fora e ordenou-lhe que voltasse calado à posição. Puyol é isto. A lisura de carácter, a seriedade, esta desarmante altivez competitiva sobre todas as coisas.

Numa equipa que, algures no caminho, se obcecou em parecer mais do que ser, e que usou de todos os meios para alimentar esse sufoco imaculado, Puyol era o bloco de genuinidade que insistia em bonificar tudo à sua volta. Lembro-me de pensar tantas vezes em como o Barça não o merecia. Mas lá continuava ele, obstinado à sua missão e à sua tropa, inapelavelmente devoto à única causa que amou na vida inteira. A ser, em si mesmo, a própria razão que lhe deu sentido. Nunca invejei Messi, nem o tiki-taka, nem nenhuma noite insuperável do Camp Nou. Nem uma. Invejei-lhes Puyol. Hoje, dia em que anunciou o seu último ano, não podia deixar de escrever isto. Foi ele o adversário que mais respeitei e o que mais honestamente admirei.

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